A ciência e a saúde: breve retrospectiva e lições de um ano desastroso

A lição de que o obscurantismo anda sempre de mãos dadas com a tragédia humanitária nunca foi tão pedagógica quanto nesta pandemia

Foto: Lula Marques

É perfeitamente possível negar a ciência sem sentir os efeitos imediatos de tal ato. Afinal, a conta do aquecimento global, da exposição crônica a agrotóxicos e do tabagismo não costuma chegar no dia seguinte. Assim, por um certo tempo e irreflexivamente, pode-se até mesmo aceitar que a ciência tenha pouca relevância para o decurso das nossas vidas. Entretanto, a atual emergência sanitária da Covid-19 prova o contrário: onde falta ciência, sobra retrocesso e os efeitos aparecem no dia seguinte.

Quando a polarização política e a ideologização dão as cartas nas estratégias de enfrentamento de uma crise sanitária grave como esta, abrem-se oportunidades perigosas para o fluxo de informações equivocadas e, sobretudo, para a conformação de atitudes e ações que acentuam as graves consequências da pandemia, ao invés de amenizá-la.

Uma breve retrospectiva do trágico ano de 2020 ilustra bem os percalços ocasionados pela negação da ciência, pelas fragilidades na educação científica e pelas disputas político-partidárias entre diferentes níveis hierárquicos do governo.

Em meados de março, ante uma pandemia que já se anunciava avassaladora em modelos epidemiológicos – ainda que com algum grau compreensível de imprecisão, dada a incerteza de dados e cenários –, delineou-se uma evidente cisão mundial.

Medidas de isolamento social

De um lado, governos que primam pela ciência e pelo conhecimento se renderam aos fatos e implementaram medidas paliativas contra a disseminação da pandemia. Essas ações foram orquestradas pelas autoridades médicas, sanitárias e científicas, com especial atenção para a comunicação de riscos em situação de emergências, reconhecida pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos principais pilares de respostas às pandemias.

De outro lado, governos resistentes ou alheios aos avanços do conhecimento seguiram seus instintos particulares, negando ou minimizando a crise, como se pudessem domar o novo coronavírus pela bravata, com divulgação de informações contraditórias e promoção de embates e disputas entre instâncias decisórias, resultando na falta de coordenação adequada das ações.

A imprudência no combate precoce da pandemia custou caro. Medidas de isolamento social, que se mostraram tão importantes na mitigação da circulação do vírus em todo o mundo, deram fôlego aos sistemas de saúde para receberem uma multidão de doentes. No entanto, essas medidas não só deixaram de serem implementadas em muitos locais do país, como foram rechaçadas pelo governo federal, que clamava por imediata abertura econômica, enquanto o contágio pelo vírus se descontrolava e vitimava a população, especialmente a parcela mais social e economicamente vulnerável.

Negação da ciência

O discurso do governo federal se baseia na falsa dicotomia entre saúde e economia. Enquanto isso, a comunidade científica, por meio de estudos, análises e projeções, trazia à luz evidências de que a retração econômica não se devia ao isolamento social por si, mas à incapacidade de controle da pandemia.

A equivocada aposta do governo federal na hidroxicloroquina como o elixir da pandemia não retrocedeu nem mesmo ante à clareza de evidências provenientes de diversos estudos bem controlados – alguns conduzidos, inclusive, por cientistas brasileiros – que demonstraram a ineficácia desse medicamento na Covid-19 (profilática ou tardiamente). A negação da ciência, adotada como política de estado, primou pelas falhas na coordenação dos sistemas nacional, estaduais e municipais de saúde, mesmo diante da aterradora perda de mais de 181 mil brasileiros, números atualizados até a conclusão deste artigo.

Na lamentável ausência de tratamentos ou vacinas eficazes, restavam as medidas preventivas não-farmacológicas: distanciamento social, higienização e uso de máscaras. Simples? Não para quem governa de costas para a ciência, desprezando os riscos da pandemia.

Afora a malograda campanha nacional em prol da hidroxicloroquina, não vimos sequer uma grande ação coordenada em nível federal com vistas ao combate da doença. Ao contrário, a má gestão atingiu também questões de logística na distribuição de testes diagnósticos que estão a expirar, e que poderiam ter auxiliado a melhor entender o espalhamento e a distribuição geográfica da doença, facilitando seu enfrentamento.

Financiamentos cortados

Durante a pandemia, a ciência brasileira recebeu recursos minguados. Estudos epidemiológicos tiveram seus financiamentos cortados. Os principais centros de pesquisa e universidades – locais onde as possíveis soluções para a crise sanitária são geradas – continuaram a sofrer com reduções orçamentárias, que resultaram em comprometimento da infraestrutura essencial e do financiamento dos recursos humanos especializados.

Não obstante a redução do financiamento à ciência, é da ciência que deverá surgir o respiro contra a pandemia. Os primeiros ensaios clínicos de fase 3 – com ativa participação de cientistas e instituições brasileiras – têm gerado resultados que sugerem a proximidade de uma ou mais vacinas eficazes para a Covid-19. É interessante notar que mesmo em um período de parcos recursos para pesquisa, a ciência brasileira está entre as que mais publicaram estudos sobre a Covid-19: das 168.546 publicações científicas relacionadas à doença publicadas em todo o mundo, 4.029 são assinadas por pesquisadores que trabalham no Brasil, de acordo um levantamento realizado pela Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica. Isso coloca o país na 11ª posição no ranking mundial sobre o tema, à frente mesmo de alguns países desenvolvidos.

Em relação ao futuro, enquanto o Brasil vive um aumento dos casos de Covid-19, é crucial enfrentar o discurso contrário à vacinação alicerçado em informações falsas e preconceituosas. A sociedade brasileira necessita de planos transparentes e bem fundamentados para garantir uma estrutura logística que permita a ampla vacinação de toda a população, dando prioridade inicialmente à mais desfavorecida socioeconomicamente. Decerto, permanece o desafio de fortalecimento da saúde pública e dos sistemas de vigilância para enfrentamento de novas doenças infecciosas que devem surgir e se expandir com velocidade cada vez maior, considerando a rápida expansão das ações humanas que levam à degradação ambiental.

Tragédia humanitária

O ano de 2020 deixou tristezas e perdas, mas os ensinamentos deste período não devem ser ignorados. A lição de que o obscurantismo anda sempre de mãos dadas com a tragédia humanitária nunca foi tão pedagógica quanto nesta pandemia. Caberá à história responsabilizar aqueles que escamotearam a ciência e a saúde de um país em nome de convicções e interesses pessoais, para que os erros jamais se repitam.

Os impactos negativos da crise sanitária alcançaram a saúde física e mental, o emprego e segurança alimentar, a educação, o comportamento e a qualidade de vida dos brasileiros. Grupos minoritários e socialmente vulneráveis foram assimetricamente atingidos pela pandemia. O retrocesso social deverá ser sentido por décadas, pondo em risco toda uma geração. É impossível vislumbrar qualquer saída para uma crise dessa monta que não passe pela política pública responsável e devidamente informada pelo conhecimento científico.

A Coalizão Ciência e Sociedade congrega cientistas de instituições ensino e pesquisa em todas as regiões do Brasil.

Fonte: Direto da Ciência

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