Presidente do Ipea defende boicote à indústria no Brasil; setor reage

Carlos Von Doellinger defendeu que o País deixe de apoiar o setor industrial e invista no agronegócio e na mineração

O presidente bolsonarista do Ipea, Carlos Von Doellinger

Pela primeira vez desde o início da gestão Jair Bolsonaro, um gestor federal abriu o jogo. Coube ao presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Von Doellinger, admitir que o governo bolsonarista deve boicotar a indústria brasileira e investir no agronegócio, fazendo o País regredir a mero exportador de commodities.

A fala de Doellinger provocou mal-estar e forte reação no setor industrial. A visão geral é que o Brasil não pode ser comparado com países com população muito menor, como Austrália, Chile e Canadá. Na opinião do setor, é preciso, sim, desenvolver a indústria como fonte de geração de empregos e de aumento da renda nacional.

Presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade criticou duramente a posição de Doellinger. “Ele, lamentavelmente, não tem a mínima noção da importância do segmento industrial para a produtividade e o desenvolvimento dos demais setores da economia, e como dinamizador da economia nacional”, disse Andrade, manifestando também o posicionamento do Fórum Nacional da Indústria, que congrega cerca de 70 associações setoriais.

“Não estou subestimando a importância dos setores agrícola e mineral para a economia nacional. Mas o fato é que o Brasil se transformaria em uma roça, a fazenda do mundo, exportando apenas commodities e matérias-primas, assim como empregos de qualidade, para as economias mais desenvolvidas”, afirma Andrade.

Segundo a CNI, apenas a indústria manufatureira nacional é responsável por 25% da arrecadação de tributos federais e por 23% da arrecadação previdenciária patronal. Responde também por 50,6% das exportações brasileiras de bens e serviços e por 65% dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Em função de sua extensa cadeia de fornecedores, cada R$ 1 produzido na indústria de transformação gera R$ 2,40 na economia nacional como um todo. Nos demais setores, o valor é menor: R$ 1,66, na agricultura, e R$ 1,49, nos segmentos de comércio e serviços.

Para o diretor de relações institucionais da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), André Cordeiro, o raciocínio de que o Brasil deveria apoiar apenas as atividades agrícolas e minerais repete a lógica da medida tomada pela rainha Maria 1ª. Há mais de dois séculos, a monarca, conhecida como “A Louca”, proibiu no Brasil fábricas e manufaturas para não atrapalhar essas outras atividades.

“Isso não deu certo. Só a indústria é capaz de gerar maior renda e bem-estar para a população”, diz Cordeiro, mencionando os dados sobre agregação de valor na indústria. “A Austrália tem apenas 22 milhões de habitantes – o Brasil não pode se dar ao luxo de concentrar atividades. O Brasil não pode prescindir de uma indústria grande e de base tecnológica.”

Na opinião de Cordeiro, o problema do Brasil é seu elevado custo para se produzir, em termos tributários e de outras obrigações. Nesse sentido, explica ele, não poderia nem ser considerado alto o volume de mais de R$ 300 bilhões em gastos tributários, que representam apenas um quinto do chamado “custo Brasil”. “Nossa indústria é competitiva e eficiente. Nossos grandes problemas são logística, custo de capital alto, falta de segurança jurídica e uma carga tributária elevada”, salientou.

O presidente-executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte, demonstrou bastante contrariedade com as declarações de Doellinger. Para ele, é como se o gestor bolsonarista dissesse que a Ford fez bem em sair do Brasil. “Num país com indústria ampla e diversificada, é impressionante ouvir algo assim – é uma desconexão com a realidade brutal”, disse Belmonte.

“Não somos necessariamente competitivos porque temos o governo mais caro do mundo”, agregou, referindo-se questões como custo tributário, energético e logístico. “Não estamos pedindo proteção – mas, sim, regras claras. Nossa carga tributária é muito mais alta do que de serviços e agro, é uma questão mais ampla de reforma tributária.”

Para o vice-presidente da Fiesp e presidente da Associação Brasileira da Indústria de Plástico (Abiplast), José Ricardo Roriz Coelho, “é lamentável que o presidente de uma fundação ligada ao Ministério da Economia tenha este conceito equivocado do papel da indústria”. Segundo Coelho, “os países que tiveram participação expressiva da indústria no PIB chegaram muito mais rápido ao grau de desenvolvimento”, disse ele, reforçando que a competitividade de setores como a agricultura foi influenciada pela indústria

Para o consultor Welber Barral, sócio da BMJ Consultores Associados, como teoria geral, o Brasil tem de aproveitar suas vantagens comparativas. Mas um país de mais de 200 milhões de habitantes teria dificuldade para criar renda e emprego somente com a produção agrícola, que remunera pouco o trabalhador e ainda passa por um processo de mecanização. O setor de serviços tampouco é desenvolvido o suficiente para absorver os trabalhadores. “Se diminuir a indústria, a agricultura não tem como absorver a mão de obra”, destacou. “Na prática, o risco de problemas sociais é muito alto.”

Barral lembrou que mesmo os Estados Unidos – que é um grande exportador de commodities e tem um setor de serviços desenvolvido – não abriu mão da indústria. A Austrália, com uma população de cerca de 25 milhões de pessoas, teria mais facilidade de se dedicar ao setor que tem mais vantagem competitiva.

Conforme o sócio da BMJ Consultores Associados, a indústria vem sendo penalizada pelo sistema tributário desde a Constituição de 1988. Já o setor agrícola exportador praticamente não paga imposto, assim como o da mineração. E o segmento dos serviços é beneficiado, por exemplo, com regimes especiais. “Na prática, o Brasil tem muito a dar em competitividade para a indústria”, ressaltou.

Para o professor da UnB, José Oreiro, o presidente do Ipea fala como se a indústria fosse “algo que está acima da capacidade cognitiva dos brasileiros”. Oreiro não poupa críticas: “Ele diz que devemos nos contentar com nossas vantagens comparativas na produção de soja e minério de ferro. É um argumento ridículo e totalmente contrário à evidência empírica disponível”.

De acordo com o professor, entre 1930 e 1980, “o Brasil cresceu a uma taxa média de 8% ao ano puxado pelo crescimento do setor manufatureiro. O período de redução do crescimento e posterior estagnação da economia brasileira coincidiu precisamente com a desindustrialização”. Oreiro conclui: “Vantagens competitivas não são um dado da ‘natureza’; mas são construídas ao longo do tempo”.

Com informações do Valor Econômico

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