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O racismo, seus desdobramentos e o direito à vida

As ações para a preservação e valorização da vida de negros e negras precisam ser transversais e multilaterais, com governos, instituições e sociedade civil atuando em conjunto.

Foto: El Pais

A história brasileira é marcada por uma sociedade fortemente hierarquizada, por mais de cinco séculos de extermínio de povos indígenas, escravização e exclusão de negros e negras, e de privilégios concedidos aos europeus, que receberam terras, títulos e outros mecanismos de incentivos para trabalharem e construírem seus patrimônios.

Ao longo desse período, que também foi de luta por parte do povo, o Estado brasileiro implementou diversas formas de perseguição e violação de direitos a negras, negros e indígenas, consolidando uma organização social marcada pelas desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais que ainda hoje incidem na vida do país.

O racismo no Brasil é estruturante pois segregou os que produzem as riquezas dos que usufruem dessas. Também foi institucionalizado ao tornar as instituições públicas – que funcionam de forma intrinsecamente racializada – instrumentos de exclusão. O mito da democracia racial, ainda presente no imaginário da sociedade brasileira, contribui para a negação dessa realidade. De acordo com a filósofa brasileira Sueli Carneiro: “o racismo penetra os diferentes campos da vida social e produz seus resultados, estruturando profundamente o escopo de democracia no Brasil, reduzindo a abrangência da cidadania por estar na base da criação e manutenção de preconceitos, ou seja, ideias e imagens estereotipadas e inferiorizantes acerca da diferença do outro e do outro diferente, justificando o tratamento desigual (discriminação).”

Na véspera do 20 de novembro de 2020, Dia Nacional da Consciência Negra, o país se chocou com as imagens do assassinato homem negro por dois seguranças — um deles policial militar temporário, fora de serviço —, numa loja da rede de supermercados Carrefour, localizada na zona Norte de Porto Alegre. O episódio gerou manifestações de repúdio nas redes sociais e em todo o país. A vítima se chamava João Alberto Silveira Freitas, tinha 40 anos, estava acompanhado da sua esposa e foi espancado até a morte.

Nessa data tivemos a manifestação de indignação de várias personalidades políticas, jurídicas e culturais, além de lideranças sociais. Os ministros do Supremo Tribunal Federal(STF) Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes também se posicionaram em suas redes sociais. Gilmar Mendes definiu o episódio como um “crime bárbaro”.

A Convergência Negra, frente nacional que reúne o maior número de organizações do movimento negro brasileiro, divulgou nota pública exigindo responsabilização civil e criminal, apontando a necessidade de vencer a discriminação institucionalizada nas corporações e afirmando que o combate ao racismo passa por mudanças políticas e econômicas.

O caso de Alberto Freitas não é isolado. A população negra está entre os piores e mais perversos indicadores de violência, desemprego, adoecimentos físicos e psicológicos, um genocídio. O racismo é uma arma ideológica, um sistema de poder que produz baixa autoestima, riscos, vulnerabilidades e consequentemente, desigualdades. A marginalização
e subalternização da população negra criou no imaginário coletivo a ideia de que um corpo negro é um perigo, não tem lugar, e pode ser descartado sem qualquer direito ou respeito.

O arcebispo sul-africano, Desmond Tutu lembra que “se ficarmos neutros perante uma injustiça, escolhemos o lado do opressor”, já a intelectual e ativista negra, Lélia Gonzalez afirmou que “Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo, negros, brancos, todos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos prática de conscientização da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil o Brasil chegar efetivamente a uma democracia racial”.

A Câmara dos Deputados aprovou a criação de uma comissão externa para acompanhar os desdobramentos do caso de Alberto Freitas, além da realização de uma agenda parlamentar que vem dialogando com os movimentos sociais a fim de eleger ações afirmativas para o enfrentamento ao racismo no Brasil e a criação de um grupo de trabalho de juristas para propor uma legislação mais efetiva no sentido de coibir os racismos. A rede de supermercados criou uma comissão de lideranças e estudiosos para formular um conjunto de ações de enfrentamento ao racismo a serem desenvolvidas na e pela corporação.

As ações para a preservação e valorização da vida de negros e negras precisam ser transversais e multilaterais, com governos, instituições e sociedade civil atuando em conjunto. Devemos agir favorecendo políticas afirmativas que possibilitem acesso a saúde, renda, educação, terra, entre diversas outras necessidades. Para haver essa possibilidade é necessário que haja figuras comprometidas com um combate profundo ao racismo nos espaços de poder. Negros e negras nos poderes executivo, legislativo e judiciário, que possam proporcionar uma mudança simbólica e estrutural.

A educação é uma ferramenta poderosa e indispensável, tem um papel central no fomento da emancipação do nosso povo, na formação de cidadãos e cidadãs responsáveis pela construção de valores e princípios que promovam a equidade de direitos com base na Constituição e nos marcos legais internacionais. É preciso urgentemente implementar
a lei 10.639 – que garante o ensino de cultura e história africana e afro-brasileira – como ferramenta para ressignificar o lugar de mulheres e homens negros na sociedade. Um lugar de “não-morte”, de resistência, construção e reconstrução, e sobretudo de liberdade.

Como disse a cantora Nina Simone: “Liberdade é não ter medo”, liberdade é ter o direito de nascer e viver com dignidade, exercer nossa cidadania, de poder sair das nossas casas e voltarmos vivos.

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