O papel das imagens nas narrativas pandêmicas

Artigo de professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) analisa o papel das imagens na formação de opinião e nos embates ideológicos em tempos de covid-19: as imagens viralizadas dos negacionistas, e as imagens silenciadas da ciência.

À esquerda: escavadeiras durante construção do Hospital Huoshenshan, dedicado a pacientes com covid-19, em Wuhan, China. À direita: escavadeira abre cova coletiva no Cemitério Público de Tarumã, Manaus, Brasil

“Qual a lógica, ou as lógicas que estão em jogo nas maneiras pelas quais pessoas, movimentos sociais, forças políticas se apropriam de certos mecanismos de produção e circulação de imagens e sons? Em que medida o mapeamento de imagens pode ajudar a entender a formação de opinião no mundo contemporâneo?” Essas são algumas das questões que a professora Esther Hamburger, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) busca responder por meio de suas pesquisas.

Nos últimos anos, uma das principais vertentes de seu trabalho tem sido a análise de imagens relacionadas a importantes eventos da atualidade, investigando o papel dessas imagens na formação de narrativas em um momento histórico marcado pela enxurrada de informações e pela crise da democracia. Segundo a professora, “há uma inegável dimensão cultural” organizada ao redor “da atualização de imaginários em um mundo que em alguma medida se articula em torno do controle estético e político de visualidades e visibilidades.”

A pedido da ReVista – Harvard Review of Latin America, publicação da prestigiada Universidade de Harvard, a docente estende estas reflexões para o contexto da atual crise sanitária no artigo Guerra de Imagens e Mensagens. Diante da constatação de que a pandemia vem sendo objeto de análise principalmente nos campos da medicina, economia e ciência política, Esther afirma que pensar as imagens pandêmicas e seus efeitos nas “opiniões públicas do mundo” é fundamental para compreender o momento que atravessamos.

Esther Hamburguer - Foto: FAPESP
Esther Hamburger – Foto: FAPESP

“A crise intensifica fluxos de imagens e sons, nos transformamos em imagens ao realizar diversas atividades online. Olhamos não necessariamente para o mundo, segundo a metáfora renascentista de Aberti – reapropriada seguidamente ao longo de séculos a cada nova tecnologia, perspectivas, fotografia, cinema, televisão, internet –, olhamos para nós mesmos.”

Imagens podem estabelecer as mais diversas relações entre si, de maneira explícita ou sutil, dando origem a variados sentidos. Uma das relações mais perturbadoras identificadas no artigo de Esther é a rima visual entre as imagens da construção de um hospital em Wuhan, na China, e as imagens da abertura de uma cova coletiva no cemitério de Tarumã, em Manaus. As imagens revelam formas, cores e movimentos semelhantes, que carregam, no entanto, significados completamente distintos. “A semelhança entre elas, acentuada pelo fato de que elas tomam circuitos semelhantes, ajuda a apontar as diferenças entre a reação pró-ativa – ainda que tardia –, na China, e a reação acanhada, solapada pela falta de solidariedade e de coordenação do governo brasileiro”, diz a professora.

No artigo, Esther explica também como a ausência de imagens é tão eloquente quanto o seu oposto, especialmente quando se considera as estratégias do negacionismo. Enquanto há uma intensa produção e distribuição de imagens que desestimulam o uso de máscaras, a adesão a medidas de isolamento e a vacinação em massa, as imagens do colapso nos sistemas de saúde, dos esforços dos institutos de pesquisa e das ações de resistência e solidariedade (sobretudo em comunidades empobrecidas) parecem enfrentar mais obstáculos para viralizar nas redes. O resultado é a invisibilização de discursos e fatos que desafiam as narrativas de negação e apontam outras possibilidades de enfrentamento à crise provocada pela pandemia.

“A agenda emergente para um planeta desafiado por problemas ambientais múltiplos e por desigualdades sociais, raciais e étnicas deveria ocupar as telas. Talvez as doações e a solidariedade nunca tenham sido tão fortes, mas são invisíveis. É possível usar algoritmos para promover a produção compartilhada e democrática de conhecimento?”, pergunta a professora.

Ao citar a “antropologia reversa” de Davi Kopenawa (líder político Yanomami) e Ailton Krenak (ambientalista), Esther parece sugerir que a resposta se encontra alguns passos antes, no questionamento do modo de vida e produção vigente. Para fomentar esse debate, é necessário promover “contra-imagens”, nas palavras da docente, como o vídeo A Mensagem do Xamã, produzido pelo Instituto Socioambiental para uma campanha contra o garimpo ilegal em território Yanomami. O fluxo intenso de imagens do vídeo sintetiza, a um só tempo, as adversidades e potencialidades reveladas pela atual crise. 

Guerra de Imagens e Mensagens está disponível na íntegra, em português, espanhol e inglês, no site da ReVista – Harvard Review of Latin America.

Artigo faz parte do projeto de pesquisa Em um mundo de telas

O artigo Guerra de Imagens e Mensagens integra o projeto Em um mundo de telas, que Esther Hamburger concebeu durante seu estágio como professora e pesquisadora visitante no Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Harvard, em 2015.

O projeto conta com Bolsa Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e tem como um de seus eixos a investigação das formas “pelas quais as imagens reverberam no mundo, interagem com pessoas, corpos, outras imagens, e assim participam da definição da vida contemporânea”, segundo a docente. 

O texto também se relaciona com a participação de Esther na rede internacional de pesquisa Crises of Democracy, coordenada na USP pela professora Laura Izarra, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

A análise de imagens de eventos contemporâneos, sua circulação e suas mediações também é explorada por Esther Hamburger no artigo Guerra das Imagens, publicado na revista Rapsódia, no capítulo “Saímos do Facebook” da coletânea Pluralidade Urbana em São Paulo (Editora 34, org. Heitor Frúgoli e Lúcio Kowarick), e no artigo Visibilidade, visualidade e performance em 11 de setembro de 2001, publicado em 2013 na revista anual da Compós.

São Paulo, Brasil. Retrato de Antonio Ednaldo da Silva perto de um ferro velho na frente da casa dele em Paraisópolis, que revela a invisibilidade das condições habitacionais de uma grande parcela da população submetida à pandemia. Crédito: Gui Christ/The National Geographic Society. Gui Christ venceu em terceiro lugar (empatado) o concurso “Documentando o Impacto da Covid-19 com Fotografia: Isolamento coletivo na América Latina” curado em uma colaboração da ReVista e com o programa de Artes, Cultura e Filme do DRCLAS.

Da Assessoria de Comunicação da ECA para o Jornal da USP