Sobre o Atlântico Negro de Clóvis de Moura

Na data do Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, que marcou este domingo, 21 de março, o professor universitário e integrante da Unegro, Richard Santos, traz neste artigo as ideias do escritor, jornalista e pensador comunista Clóvis Moura. “Podemos encontrar caminhos para interpretar sócio-historicamente a realidade brasileira sob o manto da morte e do genocídio”

Clóvis Moura. Arquivo Pessoal

Ao tempo que temos visto uma série de novos intelectuais públicos se destacarem ao propor novas visões e perspectivas sobre o Pensamento Negro Contemporâneo no Brasil, é da necessidade de uma práxis radical que constatamos o pulsar da obra e o legado de Clóvis Moura.

Intelectual fundamental para compreendermos a história brasileira, Clóvis Moura ainda hoje nos lega ferramentais para além das fronteiras nacionais. Ao trilharmos seus caminhos teóricos-metodológicos temos a oportunidade de vislumbrar as relações humanas e de dominação social estabelecidas ao longo do atlântico negro.

No dia que se completa 61 anos do massacre de Sharpeville acontecido em em Joanesburgo, África do Sul, em 21 de março de 1960, instituído pela Organização das Nações Unidas como diaInternacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, é em Clóvis Steiger de Assis Moura que podemos encontrar caminhos para interpretar sócio-históricamente a realidade brasileira sob o manto da morte e do genocídio programado, como bem denunciou seu contemporâneo Abdias Nascimento.

Naquilo que a antropóloga baiana Goli Guerreiro conceitua como “terceira diáspora”, podemos enquadrá-lo como interlocutor referencial entre os dois lados desse rio chamado atlântico.

Para alguns povos desse atlântico negro o tempo é uma entidade venerada e cultuada. Quiçá, seja ele, o senhor tempo que possa nos trazer respostas concretas e possibilitar às gerações futuras compreensão empírica sobre as brutalidades que ligam o massacre sul-africano de mais de meio século atrás à eliminação da população negra brasileira que se intensifica com a pandemia da Covid 19 escancarando nossas mazelas e o projeto nacional de branqueamento populacional.

Antes do tempo e suas respostas, ele que tem seu próprio tempo, e sujeitado às demandas e ansiedades de nossa era tecnológica, nosso tempo material, quiçá possa eu articular algumas ferramentas teóricas consagradas por Clóvis Moura para ilustrar em poucas linhas o seu legado e a relação intestinal do colonialismo-capitalismo neoliberal a que estamos submetidos.

Clovis de Assis Moura (1925-2003) é um intelectual brasileiro, nordestino, responsável por uma significativa produção bibliográfica sobre as populações negras no Brasil e nas Américas, e fundamental intérprete para a compreensão das questões raciais no processo de formação da sociedade escravista brasileira. Compreendendo o termo escravista como o principal molde social brasileiro em vigor ainda hoje e que baseia as relações sociais e interpretações raciais do país.

O imaginário de perspectiva patrimonialista, escravista e formador da consciência social no Brasil é o responsável pelos caminhos e descaminhos políticos de nossa jovem nação americana.

Clóvis Moura, pouco conhecido nesse século XXI entre intelectuais e pesquisadores contemporâneos da realidade social brasileira, pouco conhecido diante de sua estatura, contribuição intelectual e atuação política no passado recente, transitou pelos mais diversos campos de atuação no meio intelectual e político nacional.

Esse homem negro nascido na cidade de Amarante, Piauí no ano de 1925 e falecido em 23 de dezembro de 2003, nos legou instrumentos teóricos que me permite enquadrá-lo como um dos pioneiros na desconstrução da colonialidade do saber e do poder no Brasil.

Ao lado de nomes como Alberto Guerreiro Ramos, Nelson Carneiro, Antonieta de Barros, Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus, Mestre Didi, Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento, entre outras e outros intelectuais negros e negras fundamentais para a compreensão anticolonial da realidade brasileira, nos alimentou e alimenta com um sem número de elaborações para a interpretação de nossa realidade, instrumentais teóricos absurdamente atuais que denotam o calibre de sua contribuição para o tempo presente. 

Moura, pioneiramente nos informa que o sujeito negro, submetido as “cidadanias mutiladas” conforme cunhou Milton Santos é considerado “mau cidadão” quando ciente das “barragens de peneiramento” criadas na sociedade brasileira, barragens que bloqueiam a mobilidade de classe da população negra e criam os sujeitos desidentificados. Esse sujeito desidentificado membro da Maioria Minorizada[1], ao descobrir-se no núcleo duro desse dispositivo de alijamento social, rebela-se e busca por meio da sociedade civil organizada ou mesmo de forma individual denunciar as formas de exclusão e extermínio de seu corpo e apagamento intelectual, passa a exigir que as elites hegemônicas reconfigurem os códigos sociais por ele decodificado.

Ao mesmo tempo que exige essa reconfiguração dos modos sociais criados pela elite hegemônica, dirá Moura em “O Negro: de bom escravo a mau cidadão?”, originalmente publicado em 1977 e republicado em 1997, que esse sujeito que consegue decodificar os códigos sociais que formam as barragens de peneiramento, atuará de forma individual ou organizada elevando a voz contra a opressão e na conscientização de sua comunidade e uma tomada de posição frente ao problema identificado.

Sua vasta obra nos apresenta os caminhos traçados para que a população negra acesse espaços de poder, atue para a reconfiguração do sistema imposto e tenha a capacidade de se re-identificar, digo, de se reconhecer e ser reconhecido como sujeito constituinte de processos de decisões político-sociais transformadoras da realidade histórica.

Contemplando o processo da economia escravista, da realidade posta a partir do dia 14 de maio de 1888, uma imagem que uso para dizer da situação da população negra no pós abolição, ao longo de sua carreira Moura trabalhou incansavelmente para compreender e publicizar os processos de resistência negra na sociedade brasileira, e de contribuição dessa massa de invisibilizados à formação nacional.

No âmbito do Pensamento Social brasileiro, os intelectuais submetidos aos interesses hegemônicos e reprodutores da visão colonialista foram duramente criticados por Moura[2] em “As injustiças de Clio”, e em outros escritos não tão específicos, por terem contribuído fortemente para a criação de um imaginário social racista relacionado aos sujeitos negros, vinculando-as e/ou secundando a criação do ideário colonial e subalternizador. Associando o negro ao mal, ao não belo, indesejado e eliminável. Como alude Muniz Sodré no livro “Claros e Escuros[3]”, essa articulação de subjugação da população negra brasileira é o que da base para o estamento da branquitude, a construção de uma sociedade de identidade branca e a negação da contribuição civilizatória do elemento negro.

É deste espectro que vimos a eliminação preferível dos corpos, saberes e presença negra na sociedade brasileira. Todo esse processo de formação de consciência e imaginário Clóvis Moura classificará no âmbito das barragens constituídas e que operam como instrumentos deformadores da consciência da sociedade acerca do negro e seus direitos de cidadania integral.

Deste modo é que Clóvis Moura nos apresenta os signos e ferramentais que instrumentalizam o que se convencionou chamar contemporaneamente de “racismo estrutural”. São códigos e interjeições políticas e sociais que se consagram na alienação social, violência do imaginário e assassinato permitido dos sujeitos negros, fazendo com que todos os cerceamentos e impedimentos “invisíveis”, não auscultados, vividas pela comunidade negra historicamente sejam transmitidas à geração subsequente como um arquivo de signos negativos relacionados a essa comunidade.

Elementos significantes que se interpretam como uma sentença que imputa um sistemático fracasso social relacionado a esse grupo específico, de não brancos. O que nos permitirá cunhar a esse corpo coletivo humano como uma Maioria Minorizada.

Por fim, essas barragens de peneiramento, denunciadas por Moura, secundam a necropolítica, e possibilitam a perpetuação dos privilégios brancos, que o digam os dados de morte, vacinação e mortos preferenciais relacionados à Covid 19 no Brasil.

Richard Santos é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia. Pós-doutor em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da UFBA. Membro da UNEGRO.


[1] Ver- Maioria Minorizada – um dispositivo analítico de racialidade. Richard santos. Editora telha: Rio de Janeiro, 2020.

[2] As injustiças de Clio. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.

[3] MUNIZ, Sodré. Claros e escuros: identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. 3º ed. Petrópolis. RJ: Vozes, 2015.