Extrema-direita e neoliberalismo, um romance inusitado?

Trabalho, Direito e contemporaneidade sob a égide da precarização neoliberal.

A classe trabalhadora brasileira vive em tempos de precarização e destruição de direitos. Isso é concreto.

Mas como podem setores da classe trabalhadora não organizada irem às ruas em defesa de um governo que atua flagrantemente contra seus interesses de ascensão econômica, conquista de direitos e de melhorias na qualidade de vida?

Para responder a essa questão, é necessária a análise da relação intrínseca entre o neoliberalismo e a nova extrema-direita brasileira no processo político-jurídico que culmina na neoliberalização das relações de trabalho da contemporaneidade nacional, identificando as correlações entre estas duas forças e pelo histórico destas experiências no país durante um período determinado entre as “Jornadas de Junho” de 2013 e o início da pandemia do Covid-19 em março de 2020.

Desta forma, este artigo se justifica tanto pela necessidade de se trazer o debate da relação entre o neoliberalismo e a extrema-direita e sua influência nos processos de modificação das relações sociais no capitalismo para o arcabouço do Direito – uma vez que já ocorre em outras áreas das ciências humanas-, quanto pela iminência do debate sobre a neoliberalização das relações de trabalho na contemporaneidade e seus impactos na realidade material da condição de produção e reprodução da vida do proletariado brasileiro do século XXI.

A problemática de pesquisa revolve em torno da elucidação de quais são as implicações da ascensão da nova extrema-direita brasileira no processo político-jurídico de neoliberalização das relações de trabalho e do Direito do Trabalho na história recente do país.

Segundo Karl Polanyi (2000, p. 42), historicamente, a chave do sistema institucional na ordem liberal estava nas leis ditadas pelo mercado, definidas empiricamente como contratos reais entre vendedores e compradores sujeitos à oferta e à procura, sob a intermediação do preço. A frustração da não-realização do equilíbrio pretendido nas relações de mercado e, ao contrário disso, a tendência à concentração de capital e aprofundamento das desigualdades em alcance mundial demonstraram a insustentabilidade de um sistema pautado no mercado autorregulável. Na perspectiva da institucionalidade que se forja, o primado da luta pelo direito também encontra aplicação nas disputas e tensões sociais que concernem às relações de trabalho. A luta é o poder relativo das forças sociais em disputa é, portanto, o princípio da luta de classes.

Ao longo desse processo, a concepção mercantil e patrimonial do trabalho foi substituída pela percepção do trabalho como algo inseparável da pessoa do trabalhador, cravando nas relações contratuais privadas a força do estatuto público, a norma jurídica, seja na figura das leis, da jurisprudência ou dos costumes (MASCARO, 2015, p.72). Os acordos entre trabalhadores e patrões por meio da intermediação dos sindicatos e entes públicos passaram a constituir um contraponto ao papel estabelecido pelo contrato individual, em que, em regra, prevalece o arbítrio patronal.

O trabalhador foi, assim, se tornando sujeito do Direito do Trabalho, na medida em que as prerrogativas de representação e ação coletivas (formação de sindicatos, direito de greve e liberdade de contratação coletiva do trabalho) podiam ser conquistadas e asseguradas. Em suma, o Direito do Trabalho passou a conferir caráter público às relações sociais desenvolvidas na esfera privada, colocando-se na contramão do contratualismo liberal ortodoxo. No lugar de direitos e deveres definidos em termos individuais, a lei passou a definir salários e condições de trabalho. Reconhecia-se o trabalhador como parte integrante de um coletivo cujo estatuto social ultrapassava a dimensão individual do contrato de trabalho.

Desta forma, o “sistema brasileiro” de relações de trabalho foi elaborado a partir de um conjunto complexo de influências internacionais ousadas e progressistas, com inspirações na Constituição da República de Weimar (1918-1919), nos princípios da Organização Internacional do Trabalho, OIT, (que desde sua constituição, em 1919, reconhece a assimetria das relações entre capital e trabalho), nos arranjos corporativistas e no catolicismo social (doutrina social da Igreja Católica, conforme as Encíclicas Rerum Novarum, 1891 e Quadragesimo Anno, (1931), no New Deal estadunidense (1933-1937) e no poder normativo das cortes trabalhistas australianas (BIAVASCHI, 2007, p. 23).

Sendo assim, o Direito e a Justiça do Trabalho, se tornaram obstáculos ao livre trânsito do desejo insaciável de acumulação abstrata que move o capitalismo (BELLUZZO, 2013, p. 121), e portanto, são eleitos como elementos centrais da neoliberalização das relações de trabalho regressivas em curso. Por um lado, a tela de proteção social é reduzida substantivamente e inverte-se a fonte prevalente do direito do trabalho para centrá-la no encontro livre das vontades iguais. Assiste-se, desse modo, à reedição do que se consolidara no século XIX: a autonomia das vontades individuais passa a ser preponderante, ampliando-se as margens de liberdade de contratação e, por decorrência, o poder de mando dos empregadores.

Ocorre que a plataforma econômica ultra-neoliberal, já rechaçada nas urnas entre os anos de 2002 e 2014, carece de instrumentos de convencimento da classe trabalhadora desorganizada a fim da criação de consenso hegemônico para ser implementada. É neste ínterim em que se insere a ascensão da nova extrema-direita brasileira, que surge com o objetivo de criar mecanismos de cooptação política do eleitorado, a partir de pautas conservadoras, com o objetivo de promover uma “virada” na mentalidade do proletariado, que passa a atuar contra seus próprios interesses, em nome da defesa de um “bem maior”.

Para o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp (2017. p. 18), as reformas neoliberais do trabalho constituem um processo de disputa política, de interesses de classe e de semântica, uma vez que se atribui ao conceito de “modernização” significados distintos. A bandeira da “modernização” das relações de trabalho oculta um passado que, mais uma vez, se ancora no presente. A primazia do negociado sobre o legislado, o desmonte da CLT e o ataque à Justiça do Trabalho voltam à agenda política como um reflexo do entrelaçamento entre o programa econômico neoliberal e a política de extrema-direita que dá sustentação à defesa da retirada de direitos.

O Brasil vive uma maré montante de autoritarismo neoliberal, resultante da convergência de três processos: a crise das economias, dos sistemas políticos e das instituições de representação após a crise financeira global iniciada em 2007; a decomposição das democracias neoliberais; e o sequestro do descontentamento de massas pela extrema-direita. Grandes grupos sociais perceberam suas perdas no neoliberalismo maduro e, em paralelo, tendem a desconfiar cada vez mais das instituições democráticas neoliberais que apoiam a reprodução desse sistema de acumulação e ignoram as insatisfações dos “perdedores”. Ao mesmo tempo, esses grupos são, de forma sistemática, levados por políticos da nova extrema-direita a responsabilizar “os outros” pelos desastres infligidos pelo neoliberalismo – em particular, pobres, imigrantes, países estrangeiros, o “comunismo” ou religiões localmente minoritárias (FRASER, 2017, p. 50).

O paradoxo da relação entre o neoliberalismo e a nova extrema-direita é que esta última promove a personalização da política por meio de líderes “espetaculares”, operando à revelia de instituições intermediárias, e que estão fortemente comprometidos tanto com esse sistema de acumulação quanto com a expansão de seu poder pessoal. Curiosamente, esses líderes promovem programas econômicos que atingem de modo direto sua própria base política, alimentando formas radicalizadas de globalização e financeirização que entregam ainda mais poder à elite neoliberal. A sociedade é dividida ainda mais profundamente, os salários caem, a estrutura tributária torna-se mais regressiva, as proteções sociais são corroídas, as economias se tornam mais desequilibradas e a pobreza tende a crescer. A frustração de massa se intensifica, alimentando o descontentamento desfocado. Segue-se que o neoliberalismo autoritário é intrinsecamente instável e gera condições para o avanço de formas contemporâneas de autoritarismo  (MÉSZÁROS, apud ANTUNES, 2015, p. 40-43).

O ponto principal a ser demonstrado é a radical desconstrução de direitos, advinda da Lei. 13.467/17, uma vez que subordina a positivação destas conquistas históricas da classe trabalhadora à negociação coletiva e individual, entre empregadores e empregados, cria novas modalidades de contratação precárias, rebaixa a remuneração, dificulta o acesso à seguridade social e amplia o poder discricionário das empresas, desequilibrando a balança da justiça em favor do capital e em detrimento do trabalho, a fim de criar uma massa amorfa de trabalhadores precarizados, lumpenizados, ressentidos, que acabam sujeitos ao desígnio de líderes populistas de extrema-direita que trazem, em sua retórica putrefata, a saída para a crise que eles mesmos criaram e/ou deram sustentação política.

Destaca-se que há um enfraquecimento das instituições públicas mediante a redução do papel da Justiça do Trabalho, da não fiscalização das normas de proteção ao trabalho e das restrições do acesso dos trabalhadores à Justiça. Há, também, o comprometimento das finanças públicas e das fontes de financiamento da seguridade social, na medida em que as mudanças propostas pelas reformas (como a disseminação de contratos precários, o rebaixamento da remuneração e o pagamento de remuneração como não salário) afetam a composição do fundo público e a sustentação da ordem econômica constitucional.

O principal ponto de encontro entre o neoliberalismo e a extrema-direita está justamente no ódio à democracia, às instituições democráticas e aos espaços de construção de poder popular (RANCIÈRE, 2019, p. 93-95). A ampliação da vulnerabilidade sujeita o trabalhador às oscilações da atividade econômica, incentiva a rotatividade, reforça o processo de mercantilização da força de trabalho precarizada e amplia a insegurança quanto à jornada, remuneração, aposentadoria etc., causando a deterioração das condições de vida e de trabalho com impactos negativos sobre a saúde física e psicológica dos trabalhadores, transformando o mercado de trabalho em uma máquina de moer corpos, mentes e vidas da classe trabalhadora.

Observou-se, a critério de considerações finais, que a relação entre o neoliberalismo e a extrema-direita, apesar de contraditória, é profunda e duradoura, em uma espécie de simbiose dialética em que uma dá causa e, ao mesmo tempo, retroalimenta a outra, de forma a inflingir duras feridas ao corpo do Estado de Bem-Estar Social.

Ou seja, para contra-atacar a luta Antifascista deve ser também, e antes de tudo, uma luta Anticapitalistas.

Referências

ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviço na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

BELLUZZO, L. G. O capital e suas metamorfoses. São Paulo: Unesp, 2013.

BIAVASCHI, M. B. O Direito do Trabalho no Brasil – 1930-1942: a construção do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007.

BONAVIDES, P. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

FRASER. N. Do Neoliberalismo Progressista a Trump – a além. American Affairs, v. 1, n. 4, p. 46-64, inverno de 2017. Tradução de Paulo S. C. Neves.

GALVÃO, A. et al. (orgs). Contribuição crítica à reforma trabalhista. Campinas: CESIT/IE/UNICAMP, 2017.

GALLEGO, E. S. (org.). O Ódio como Política: A reinvenção das direitas no Brasil. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 17- 26.

MASCARO, A. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2015.

MÉSZÁROS, I. Desemprego e precarização: um grande desafio para a esquerda. In: ANTUNES, R. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. 1. ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 27-44.

POLANYI, K. A grande transformação: as origens do nosso tempo. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

RANCIÈRE, J. Ódio à Democracia. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

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