E se os jogadores da Seleção peitarem de verdade Bolsonaro e a CBF?

É possível que empresários e patrocinadores forcem seus “jogadores-clientes” a entrarem em campo – mas mesmo esse argumento é relativo. Não há clamor popular pela realização de um evento de baixo prestígio esportivo em plena pandemia

É atribuída a Sir Alfred Hitchcock (1899-1980), o “mestre do suspense”, uma das mais conhecidas citações sobre a relação entre diretores e artistas: “Eu nunca disse que atores são gado. O que eu disse é que todos os atores devem ser tratados como gado”. À parte a sinceridade do cineasta britânico, sabemos que a lógica autoritária de seu pensamento vai além do universo do cinema. Hitchcock expressa, na realidade, como chefes e dirigentes enxergam – e querem comandar – seus subordinados de modo geral.

Pois foi justamente assim – como gados – que os jogadores da Seleção Brasileira se sentiram quando a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e o governo Jair Bolsonaro anunciaram o acerto para trazer ao País a Copa América 2021. Tratando o Brasil como uma “grande pátria desimportante”, cartolas e governantes esperavam que os atletas repetissem os versos de Cazuza: “Em nenhum instante / Eu vou te trair / Não, não vou te trair”.

Deu-se o contrário. Conforme anuncia o jornal espanhol As nesta sexta-feira (4), os jogadores bateram o martelo: nenhum deles jogará a Copa América, prevista para o período de 13 de junho a 9 de julho. Não bastasse o flagelo da pandemia no Brasil, pesou para os atletas a postura desrespeitosa e irresponsável da entidade, alinhada uma vez mais ao negacionismo bolsonarista. Nas palavras do As, eles se sentiram “traídos e usados” pela CBF, “principalmente por seu presidente, Rogério Caboclo”.

“Os jogadores da Seleção Brasileira manifestaram insatisfação por não terem sido consultados”, confirma, em seu blog, o jornalista Juca Kfouri. “Comunicaram ao técnico Tite, e ao presidente da CBF, que além de se sentirem excluídos, ouviram de muitos jogadores sul-americanos, que jogam na Europa, a contrariedade também deles com a realização do torneio num dos epicentros da pandemia”.

Daí a determinação dos brasileiros, segundo o jornal As, de convencerem atletas de outros países a também boicotarem a principal competição da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol), numa rebelião sem precedentes. Antes da Copa América, a Seleção vai a campo nesta sexta-feira (4), contra o Equador, e na próxima terça (8), contra o Paraguai, em confrontos pelas Eliminatórias da Copa-2022. Antes disso, segundo o técnico Tite, os jogadores não se pronunciarão – não publicamente:

“Temos uma opinião muito clara e fomos lealmente, eu e Juninho, externando ao presidente (da CBF) qual a nossa opinião. Depois, pedimos aos atletas para focarem apenas no jogo contra o Equador. Na sequência, solicitaram uma conversa direta ao presidente. A partir daí, a posição dos atletas também ficou clara”, disse Tite. “Temos uma posição, mas não vamos externar isso agora. Temos uma prioridade agora de jogar bem e ganhar o jogo contra o Equador. Entendemos que, depois dessa Data Fifa, as situações vão ficar claras. Depois desses dois jogos, vou externar a minha posição.”

É possível que empresários e patrocinadores forcem seus “jogadores-clientes” a entrarem em campo – mas mesmo esse argumento é relativo. Não há clamor popular pela realização de um evento de baixo prestígio esportivo em plena pandemia. Além do mais, quem garante que a imagem controversa de uma Copa América nesse contexto não chamuscará seus anunciantes, dando ao torneio um caráter tóxico?

Em manifesto “contra a Copa da Morte e a elitização do futebol”, a Frente Nacional pelo Futebol Popular já anunciou que haverá protestos. “Convidamos as torcidas e coletivos ligados ao futebol para que tomemos a frente dos estádios no dia 13/06, dia da abertura da ‘Cepa América’, para protestar contra mais esse desrespeito brutal aos familiares e às vítimas da Covid-19”, aponta o texto.

Assim, pode ser que a Copa América 2021 realmente aconteça, conforme anseiam a Conmebol, a CBF e o governo Bolsonaro. Pode ser que a bola efetivamente role em meio à terceira onda da pandemia no País. Enfim, pode ser que o desatino prevaleça. Mas, se os jogadores realmente peitarem os presidentes negacionistas da CBF e da República, a desmoralização da entidade e do governo será estrepitosa. Quem luta contra o descalabro terá o que comemorar!

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