Gemidos e agonia da indústria brasileira, por José A. de Lima Cardoso
Em cinco anos, Brasil perdeu 36 mil fábricas e passou a participar com meros 1,19% na produção global
Publicado 09/08/2021 13:19
A Pesquisa Industrial Anual (PIA) 2019, divulgada no dia 21 de julho pelo IBGE, mostra que, em 2019, o setor mais produtivo da indústria foi o de petróleo e gás, e o segundo setor foi o de produtos derivados de petróleo. Isto possibilita a geração dos empregos que pagam alguns dos melhores salários da indústria. Não foi por acaso que a principal motivação econômica do golpe de 2016 foi o petróleo. Na medida em que os poços vão sendo vendidos para fundos de investimentos, estes liquidam salários e benefícios, aumentando suas margens de lucratividade.
Com base na elevada produtividade, o setor pode gerar grandes investimentos, como ocorreu em 2013, ano em que a Petrobrás investiu sozinha o equivalente a R$ 150 bilhões em valores atuais. Esse era o período em que apesar de a Petrobrás ser uma espécie de “nação amiga” (pois respondia por 10% de todo o investimento no País), a mídia comercial, e o senso comum, afirmavam que a empresa estava quebrada.
A participação do Brasil na produção industrial mundial caiu de 1,24%, em 2018, para 1,19%, em 2019, atingindo o piso da série histórica que começa em 1990. Apesar das perdas, o Brasil tinha conseguido se manter entre os dez maiores produtores no ranking mundial até 2014. Em 2019, recuou para a 16ª posição. Com a recessão econômica brasileira, entre 2014-2016 o ritmo de perda de relevância da indústria do país no mundo se intensificou. Em 2014, o Brasil era o 10º maior produtor industrial do mundo, mas perdeu posições a cada ano e em 2019, foi superado pela Espanha, caindo para a 16ª posição.
A crise da indústria, que já vinha ocorrendo de forma estrutural, desde a década de 1980, foi colocada em um patamar mais profundo com o golpe, que foi também contra a indústria. Os golpistas querem que o Brasil se torne em definitivo um mero vendedor de matérias-primas agrícolas e minerais para o mundo rico. Afinal de contas, neocolônia não precisa de indústria.
O desempenho das exportações da indústria de transformação brasileira no mundo também revela a perda de competitividade do Brasil. A participação do Brasil nas exportações mundiais da indústria de transformação chegou, em 2019, à cerca de 0,82%, igualando o menor percentual da série histórica, registrado em 1999. A perda de relevância do Brasil nas exportações mundiais da indústria de transformação ocorreu mesmo diante da depreciação do real nos últimos anos, que deveria estimular exportações. Isso não ocorreu, em função da gravidade da crise geral brasileira, incluindo a crise política trazida pelo golpe.
A indústria brasileira é uma das que mais apresentaram recuo no mundo em quase 50 anos. Levantamento encomendado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), revela que o setor no Brasil teve a terceira maior retração entre 30 países, desde o ano de 1970, ficando atrás apenas de Austrália e Reino Unido. Os dados da pesquisa levam em conta o resultado da produção industrial até 2017, de lá para cá o setor recuou mais ainda. Nos dois países que apresentaram declínio na produção industrial mais forte que a do Brasil (Austrália e Reino Unido) a renda da população estava subindo quando a queda do desempenho da indústria começou a recuar em relação ao PIB. Quando o peso da indústria em relação ao PIB cai porque as famílias estão consumindo mais serviços, pode ser considerado uma trajetória natural, verificada nos países ricos.
Mas no Brasil ocorreu uma desindustrialização prematura. A indústria começou a perder peso na estrutura produtiva antes da renda da população subir. Nos últimos anos, inclusive, a redução do peso da indústria no PIB ocorre simultaneamente à queda da renda per capita. Mas temos que considerar que a posição de países como EUA e Japão, assim como a Europa, ocupam posições na divisão internacional do trabalho diferentes da do Brasil. O desenvolvimento dos países imperialistas e dos países pobres é de fato desigual e combinado. Ou seja, com a atual divisão internacional do trabalho, nunca iremos atingir o patamar de vida que têm as populações dos países ricos. A nossa pobreza está relacionada à riqueza deles.
Por exemplo, os EUA, para manter o padrão de vida que mantém para uma parte da população – uma parte, apenas, já que o país tem 50 milhões de pobres –, precisa drenar riqueza do mundo todo. Os golpes recentes na América Latina estão relacionados a esse fenômeno. Um dos objetivos dos EUA, ao coordenar esse, golpes, foi rapinar recursos dos países atrasados. Petróleo no Brasil, lítio na Bolívia e assim por diante. Além das oportunidades que aparecem com as privatizações (vejam o que está sendo a entrega da Eletrobrás, um verdadeiro “negócio da China” para os países ricos, no qual a companhia será oferecida por 10% ou 15% do seu valor, conforme previsões).
Em geral, nos demais países onde houve desindustrialização, a perda da participação da indústria no crescimento do país continuou sendo acompanhada do crescimento do PIB per capita. A desindustrialização do Brasil é precoce não só porque a indústria perdeu participação muito cedo no produto, mas porque a renda per capita avançou muito pouco. Nos países onde a indústria perdeu participação na produção de riqueza o capital industrial se deslocou para setores dinâmicos dos serviços. São esses países que investem pesadas somas na indústria 4.0, que integra diversas tecnologias. Nos EUA, por exemplo, a indústria perde participação, mas os segmentos que conseguem se manter são os de elevado desenvolvimento tecnológico, que surfam nas inovações da indústria 4.0. As empresas que produziam computadores, por exemplo, agregaram mais tecnologia e migraram para a área de softwares.
No Brasil, com um governo cujo projeto nacional é de ser capacho dos países ricos, além de ser de economia subdesenvolvida, a desindustrialização ocorre de forma anárquica, com grande perda tecnológica. No Brasil cerca de dois terços da produção industrial é de baixa ou média tecnologia, tem baixo dinamismo. Boa parte da indústria “aperta ainda muito parafuso”. Os capitais que migram para serviços o fazem em serviços de menor qualidade, muitas vezes na economia informal. É comum empresários abandonarem a fabricação de determinado produto e passarem a importá-lo da Ásia, especialmente China. Se o governo, por seu turno, tem projeto nacional subalterno, não tem senso de preservação da indústria, a maioria do empresariado nem sabe do que se trata. Quem duvidar disso, analise com calma a posição dos empresários (de todos os tamanhos) sobre a destruição da Petrobrás perseguida pelos golpistas de 2016. É de um desinteresse pelos destinos do Brasil, que chega a estarrecer.
Em 1980, o parque industrial brasileiro correspondia a 4,11% da indústria mundial. A China, atual gigante industrial, na época tinha uma participação de 1,65% e ultrapassou o Brasil ainda nos anos 1990. O caso da China é único e foi precedido de uma revolução popular, em 1949. É bastante diferente, claro, do brasileiro. No Brasil, há sete anos consecutivos, desde a recessão iniciada em 2014, cai o número de indústrias no território nacional. Segundo um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), entre 2015 e 2020 foram extintas 36,6 mil empresas industriais. O número equivale a quase 17 estabelecimentos industriais liquidados todo dia. Há seis anos, o país tinha 384,7 mil estabelecimentos industriais, porém no final do ano passado, o número tinha caído para 348,1 mil.
A fatia da indústria da transformação no PIB, de 11%, é o patamar mais baixo da série histórica iniciada em 1946 (75 anos atrás). O problema conjuntural, ligado à crise, e o estrutural (desindustrialização), coincidem com um período no qual o mundo atravessa a chamada 4ª Revolução Industrial. O Brasil precisava bilhões em pesquisa e inovação industrial neste momento, procurando pelo menos, congelar a histórica defasagem científico-técnica que tem o país em relação aos países imperialistas.
Não será um governo de golpistas que irá se preocupar com pesquisa e competitividade da indústria brasileira. O orçamento total previsto para o MCTI neste ano é de R$ 8,3 bilhões. Só que o valor destinado a “despesas discricionárias” (ou seja, efetivamente disponível para pesquisa), é de apenas R$ 2,7 bilhões, 15% a menos do que em 2020 e 58% a menos do que em 2015.
Além do mais, os terraplanistas que estão no poder estão destruindo as universidades públicas, que é quem faz pesquisa e inovação. No período mais recente, o País voltou a apresentar o fenômeno chamado de “fuga de cérebros”, que é a transferência de estudiosos de ponta, em todos os setores, para os países ricos. Ou seja, o Brasil gasta dinheiro público para formar esses “cérebros” e quem se beneficia do retorno que eles podem dar, após a maturidade científica, são os países ricos.
Estamos em meio ao que se chama de uma “tempestade perfeita” com a pior crise dos últimos cem anos. Na indústria essa tempestade perfeita se manifesta através da desindustrialização, desemprego, precarização do trabalho, queda dos salários reais, internacionalização do setor. Não sairemos dessa encalacrada sem gemidos e ranger de dentes.