As voltas que o mundo dá

Democracia, já se disse, é processo. E ao longo desse processo de afirmação democrática o Chile tem dado sinais inequívocos de maturidade política

Presidente chileno Gabriel Boric I Foto: Reprodução

O Chile foi palco de uma das mais sanguinárias e longevas ditaduras militares dentre tantas que se instalaram na América Latina nos anos 1960 e 1970. O golpe foi desfechado pelo general Augusto Pinochet contra o governo constitucional de Salvador Allende, a 11 de setembro de 1973. As imagens, chocantes, do bombardeio aéreo ao Palácio de La Moneda, são reveladoras da violência do golpe.

O regime ditatorial perdurou até o ano de 1990. Contabiliza-se, segundo o último relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, a Comissão Valech, assim chamada em honra do arcebispo Sérgio Valech, seu presidente até o ano de 2010, um saldo sombrio de cerca de quarenta mil vítimas, dentre as quais três mil, duzentas e vinte e cinco pessoas mortas ou desaparecidas.

Com o golpe, levado a cabo sob o patrocínio do governo estadunidense, como hoje é sabido, foi abruptamente abortado o processo de construção da “via chilena para o socialismo”, experimento único de implantação do socialismo por meios pacíficos. A sanha golpista ceifou a vida de Allende, morto de forma heroica no assalto ao palácio presidencial.

Democracia, já se disse, é processo. E ao longo desse processo de afirmação democrática o Chile tem dado sinais inequívocos de maturidade política. Em pleno processo constituinte, em que se busca dotar o país de uma nova carta política que sepulte de vez os restos da ordem constitucional autoritária decaída, guinda-se à presidência o pro-gressista Gabriel Boric. A composição de seu ministério, há pouco anunciada, prenuncia tempos de respeito à legalidade democrática e aos direitos humanos, importante sinali-zação nesta quadra de retrocesso mundial nestas pautas.

Mais da metade do ministério é composto por mulheres. Para ficarmos em apenas dois exemplos, indicativos do salto civilizatório que se antevê, o ministério da defesa terá à frente a deputada Maya Alejandra Fernández Allende. A neta de Salvador Allende chefiará as forças armadas chilenas, as mesmas que golpearam a democracia e levaram seu avô à morte. Na pasta das relações exteriores, a advogada Antonia Urrejola Noguera, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com forte atuação no campo da justiça transicional, no combate aos discursos de ódio e na defesa dos direitos dos povos indígenas.

O longo período ditatorial a que foi submetido o país do poeta Pablo Neruda, ele próprio uma de suas vítimas, deixou marcas profundas na ordem jurídico-política, na cul-tura das instituições e na alma do povo chileno. Nem poderia ser diferente. Somente um processo de radicalização democrática, a exemplo do que se vê em curso no país andino, onde os crimes do autoritarismo são objeto de permanente relembrança e servem mesmo de guia para a ação governamental e formulação de políticas públicas, poderá promover a estabilidade política, o respeito aos postulados do estado democrático de direito e o desenvolvimento com justiça social.   

Devemos aprender com o exemplo.

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