Contrato antissocial

O caso do congolês Moïse Kabagambe, espancado até a morte, é sintoma desta sociedade. Um crime bárbaro. Um crime que envolve racismo e xenofobia

Ilustração: Junião

Imaginem por um minuto uma sociedade sem leis. Sem direitos e deveres. O homem em “estado da natureza”, vivendo pelo instinto e sem razão. Cada um por si. Matando, roubando, cometendo toda sorte de crimes sem freios para saciar suas vontades e necessidades. O caos.

Contra esse cenário desolador e irracional os homens decidiram que era necessário firmar um contrato social. Um modelo onde cada indivíduo cedia parte de seus direitos ao Estado e às instituições e aceitava deveres em troca de uma convivência mais pacífica e direitos. Direitos esses que só poderiam ser garantidos se outros entendessem e respeitassem seus limites.

O modelo funciona aliado à certeza de punição a quem infringe as leis e também por um Estado que entende seu papel e trata seus cidadãos e cidadãs como igualmente portadores de direitos e deveres, como determina nossa Constituição. Não é o que acontece no Brasil de hoje.

Do incentivo ao armamentismo ao exemplo diário de um presidente que fomenta o ódio, o preconceito e a intolerância, a mensagem é clara: o governo brasileiro aceita e defende que cada indivíduo aja em liberdade sem as travas da lei. Não importam os feminicídios, os crimes de racismo, de tortura. Vale até emperrar investigações e vazar informações sigilosas se assim interessa ao presidente. Um mandato onde prevaleceu a máxima de que os fins justificam os meios. E isso tem repercussão direta na sociedade, especialmente na parte que ainda defende este governo e acha que liberdade significa liberdade para matar.

O caso do congolês Moïse Kabagambe, espancado até a morte, é sintoma desta sociedade. Um crime bárbaro. Um crime que envolve racismo e xenofobia. Que escancara a falência do contrato social e a face mais desumana de um ser humano. Não é possível que haja quem veja as imagens do jovem sendo assassinado e ache normal, não se comova e se indigne. Mas há. Há até quem diga que a culpa é da vítima. E para esses é preciso dar uma mensagem clara: a punição exemplar e célere.

Por todos os estrangeiros que vieram em busca de um futuro melhor. Por todos os negros e negras que carregam o peso insustentável do preconceito. Pela imensa maioria da população que tentam invisibilizar e que são vítimas de uma política de segurança ineficaz.

Contra isso temos que nos insurgir. Não virá do governo o exemplo ou a ação. Deve vir de nosso protesto diário. Da nossa indignação constante. Da cobrança por justiça. Para ele e todos os outros que morreram pura e simplesmente porque são os alvos prioritários de quem quer de volta o ”estado de natureza”. De quem quer que a lei não prevaleça. Dos que defendem que apenas alguns poucos são sujeitos de direito.

É por Moïse. Mas não é só por Moïse. É por nossa humanidade. É por todos e todas que ainda vivem na incerteza e no medo de que uma bala perdida os alcance. De que suas vozes sejam silenciadas pela violência e pelo preconceito. De que o futuro lhes reserve não direitos, mas apenas o dever de aguentarem calados.

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