Pneumologista critica recusa do governo por tratamento científico eficaz para covid-19

O médico Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), lamenta como absurda a falta de um protocolo de tratamento para covid em todo o país, sendo que ele já existe e é eficaz.

O pneumologista Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho comanda a UTI Respiratória do Incor, criada por ele há 40 anos – Foto: Marcos Santos/Reprodução

Em meio a uma pandemia que já dura dois anos, o governo brasileiro ainda não tem uma recomendação oficial com um conjunto de procedimentos de como tratar pacientes de covid-19. Mas o conhecimento para tal existe! A prova disso está nos protocolos de tratamento desenvolvidos pelo professor Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), e por um grupo de especialistas por ele coordenado.

“É um conjunto de recomendações sobre como os profissionais de saúde devem atuar no atendimento a pacientes com covid-19, desde a internação até a alta”, descreve o médico, destacando que o grupo congrega professores das melhores universidades do País.

Em março do ano passado, Carvalho recebeu o convite do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para assumir uma espécie de “secretaria especial” para o combate à covid-19. “Foi numa visita que ele fez ao Complexo do HC. Eu não conhecia o ministro. Disse a ele que não poderia aceitar o convite devido a diversos compromissos aqui em São Paulo, mas me coloquei à disposição para auxiliar da melhor forma possível”, conta Carvalho.

 Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, aos 68 anos, possui uma história respeitável à frente da Divisão de Pneumologia do Incor – Foto: Marcos Santos/Reprodução

Meses depois, em julho de 2021, o então secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, Hélio Angotti Neto, solicitou a Carvalho um protocolo de tratamento ambulatorial para a covid-19. O protocolo contendo as diretrizes de tratamento foi aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).

Mesmo considerando toda essa situação como “absurda”, Carvalho diz: “Não me considero vencido!”

Mas a reviravolta veio em janeiro deste ano, quando Angotti divulgou um extenso documento que continha uma nota técnica comparando tecnologias de combate à doença e citando a hidroxicloroquina como eficaz e segura. A mesma nota dizia que as vacinas não eram “nem eficazes nem seguras”. Dias depois, ainda em janeiro (24), Angotti assinou uma nova versão do documento retirando a nota técnica, mas citando que as recomendações elaboradas pelo grupo coordenado por Carvalho careciam de comprovações científicas.

A reação

No último dia 4 de fevereiro, Carvalho apresentou um recurso administrativo contra a decisão ministerial de não dar publicidade oficial às diretrizes elaboradas por sua equipe e aprovadas pela Conitec. O recurso também contém recomendações contra a prescrição do “kit covid” a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em nova reviravolta, desde o dia 16, Angotti não é mais o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde. Ele foi designado a assumir a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, no lugar de Mayra Pinheiro. Para o lugar de Angotti, assumiu a diretora do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos, Sandra de Castro Barros.

Como ressalta Carvalho, “enquanto Angotti ‘caiu pra cima’ a decisão ‘caiu no colo de Queiroga’”. O médico da FMUSP acredita que o ministro da Saúde aprove o documento. “Confio que ele honre o compromisso. Afinal, Queiroga tem um histórico respeitável”, destaca Carvalho.

Chegamos a ‘pilotar’ 20 UTIs monitorando uma média de 500 pacientes por dia

Mesmo considerando tudo “muito desgastante”, Carvalho mostra a mesma disposição de seus tempos de residente do curso de Medicina da FMUSP. “Nossa equipe se reuniu quase que diariamente, mesmo em finais de semana. E tudo isso de forma voluntária e em prol da população”, destaca o médico. Mesmo considerando toda essa situação como “absurda”, Carvalho diz: “Não me considero vencido!”.

A história

O que levou Carvalho a ser convidado por Marcelo Queiroga para colaborar com o Ministério da Saúde foi a sua respeitável história e desempenho à frente da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas da FMUSP. Lá, ele comanda a UTI Respiratória, criada por ele mesmo, há cerca de 40 anos.

 Fachada do Incor HCFMUSP – Foto: USP Imagens/Reprodução

Ele lembra do primeiro caso de covid-19 no Hospital Albert Einstein, em fevereiro de 2020. Em março daquele ano, foram iniciados os preparos na UTI do HC.

“Foi quando fizemos diversas interlocuções com profissionais de quase todo o mundo sobre a utilização de protocolos específicos contendo procedimentos para o tratamento da doença”, conta.

Esses procedimentos foram então apresentados à Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo e passaram a ser oficiais no Estado. “Desenvolvemos até um aplicativo para celular gratuito que apresentava o protocolo de ventilação mecânica para o tratamento da doença”, destaca Carvalho. “Chegamos a ‘pilotar’ 20 UTIs monitorando uma média de 500 pacientes por dia.”

UTI é para quem gosta de emoções. Imagine você ter de atender dez leitos em emergências. Eu ficava muitas vezes sozinho como responsável pelo plantão

A experiência de Carvalho em UTI vem desde sua luta para a instalação de uma UTI em pneumologia, ainda nos tempos de sua residência médica. “A Pneumologia não tinha UTI. Em 1979, eu e meu colega Alexandre de Oliveira Ribeiro abrimos uma UTI respiratória”, recorda-se.

Nesta primeira investida, Carvalho estava no segundo ano de sua residência médica. Contudo, a unidade passou por problemas e foi fechada algumas vezes, até que em 1982 a UTI foi reaberta e não mais fechou. “Alexandre morreu há dois anos”, lamenta Carvalho.

Em toda essa história, Carvalho sobrevivia com a bolsa de residência médica e com ganhos obtidos em plantões nos finais de semana em hospitais privados. “Entrava no sábado à noite e deixava o plantão no domingo, também à noite. Eram cerca de 70 a 80 horas semanais de trabalho”, contabiliza o médico. E foi depois do sexto ano do curso de Medicina que Carvalho optou por especializar-se em Terapia Intensiva.

Ele sempre considerou aquela “adrenalina” interessante. “UTI é para quem gosta de emoções. Imagine você ter de atender dez leitos em emergências. Eu ficava muitas vezes sozinho como responsável pelo plantão”, lembra.

Na década de 1990, Carvalho e seu colega Marcelo Amato foram os pioneiros num estudo que ganhou o mundo. “Em 1995 fui orientador de Marcelo em sua tese de doutorado, que trazia inovações na ventilação mecânica aplicada em pacientes que necessitavam do procedimento”, conta.

O título da pesquisa é Uma nova abordagem de ventilação mecânica na S.D.R.A.: efeitos sobre a função pulmonar e mortalidade. Carvalho lembra que somente em 1998 foi publicado o artigo científico no The New England Journal of Medicine.

“Demorou para que os revisores se convencessem de que alguns ‘malucos’ e desconhecidos aqui do Brasil tivessem desenvolvido uma técnica de ventilação tão eficiente”, recorda. O fato é que a doença conhecida como Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA) passou a ter uma técnica de tratamento que foi adotada como padrão em todo o mundo.

Com informações do Jornal da USP