“O Ocidente é o culpado pelo conflito que está por baixo desta guerra”

Para Hector Saint Pierre, coordenador do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, guerra na Ucrânia é resultado de uma disputa mais ampla entre EUA e China e Rússia pela hegemonia internacional. Rússia estaria seguindo doutrina militar que privilegia cercos, e não destruição total, para minimizar baixas civis.

Imagem acima: rua de Kiev após bombardeio russo em 22/02. Crédito: UNDP Ukraine.

A notícia de que Rússia e Ucrânia iniciaram uma nova rodada de negociações no começo desta semana acendeu a esperança de que  poderia estar no horizonte um cessar-fogo, talvez o primeiro passo para uma eventual cessação das hostilidades. No entanto, para Hector Saint Pierre, docente da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca, e coordenador-executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, o processo de negociações que pode efetivamente resultar num acordo de paz ainda está longe de acontecer.

Em entrevista, ele analisa o atual quadro de operações após pouco mais de um mês de combates, e apresenta uma análise do conflito diferente da que tem sido veiculada pela maior parte da mídia ocidental.

Esta semana, após pouco mais de um mês de conflito, Rússia e Ucrânia voltaram a se sentar à mesa de negociações. A paz está próxima?

Hector Saint Pierre: Isso é o início das negociações, que vão ser prolongadas. Normalmente um processo de negociações é escalonado: primeiro discute-se o que está em jogo, o que se vai negociar, e depois é que se sentam à mesa os tomadores de decisão. Esses não fazem parte da negociação. Eles já vão com o campo aberto, já sabem o que se vai assinar. Minha impressão é que estas negociações se vão prolongar porque, na realidade, o Putin agora pode negociar uma rendição incondicional, o que significa uma paz imposta.

Acho que essa estrutura de negociação, por enquanto, é muito incipiente. Só se vai chegar a algum acordo com a participação de atores internacionais de peso, além de obviamente Rússia e Ucrânia. Vai ser preciso um acordo internacional pensado, talvez conduzido pela China, mas com atores importantes, talvez a França, Alemanha, os EUA… Enfim, tem que ser um acordo costurado, um ‘concerto’ entre vários países para reconhecer este acordo e garantir a realização dele.

Acho que a abertura desta nova rodada de conversas significa que as sanções econômicas estão pesando mais na Europa e no Ocidente do que na Rússia.  Ainda acho que o Biden pode vir a criar alguma turbulência nesse processo de negociação, porque o interesse para o Biden é a manutenção da guerra para sangrar a Rússia. Mas a guerra não está sangrando a Rússia. Os russos estão tranquilos, estão em posições consolidadas, a parte de Donbass está trabalhando com rublos, estão criando governos em algumas prefeituras com militares e civis.

Que balanço é possível fazer após um mês de conflito? Alguém está claramente em vantagem?

Hector: Acho que o vencedor já está claramente definido. E mais: achei que a solução do conflito estava dada na primeira noite de ataques. Naquela noite, houve 118 unidades militares atacadas e destruídas pelas forças russas. Foram destruídos 13 centros de comando e controle e 11 pistas de aterrissagens – é importante notar que foram atacadas as pistas de aterrissagens e não os aviões. Isso mostra um interesse das forças russas em evitar que os aviões os ataquem ou que possam ingressar aviões estrangeiros para deixar material bélico e apoiar a guerra. Também foi destruída a maioria das defesas anti-aéreas ucranianas. Nessa noite a Ucrânia ficou sem força aérea e sem poder dar cobertura as suas tropas e sem capacidade de combate aéreo, sem defesa antiaérea.

Imaginei, após o primeiro dia, que o Zelensky iria renunciar e buscar uma negociação. O que os russos estavam pedindo não era algo de outro mundo. Na realidade, eram compromissos já acordados em um tratado assinado na cidade de Minsk, na Bielorrúsia, depois de 2014, que reconhecia a autonomia das províncias rebeldes do Donbass.

Imaginei que a guerra já tinha acabado e que as coisas se absorveriam da melhor maneira possível, mas o Biden não deixou o Zelensky se render. Aí o Zelensky continuou a guerra. A Rússia então iniciou o segundo passo, que era a invasão pelo leste, tentando juntar o Donbass com a península da Crimeia, e conseguiu na semana passada.

A superioridade russa é incontestável, não há como reverter essa vitória. Zelensky já está modulando seu discurso, muito embora o Biden tenha ido à reunião da OTAN no fim de semana passado com “pintura de guerra”. A ideia do Biden é se fortalecer internamente. Na época dos ataques ao Iraque em 2003, o presidente George W. Bush estava com 22% de aprovação popular para disputar a reeleição. Tudo indicava que ele iria perder. Daí, ele iniciou o ataque ao Iraque contra a vontade da ONU, e se reelegeu.

Em geral, os comentaristas ocidentais estão falando sobre o atolamento das tropas russas, de um alongamento da guerra, de erros logísticos. Mas, na verdade, a Rússia adotou outra doutrina militar, de cerco e de arraste. A ideia é evitar vítimas civis. E isso ficou claro no primeiro momento, naquela primeira noite de que falei. Eles atingiram todos aqueles alvos, um bombardeio profundo, e houve 137 mortos. Obviamente que nem mesmo uma morte na guerra se justifica. Mas, do ponto de vista operacional, numa perspectiva fria e desumana, 137 vítimas é um número baixo para um ataque daquela profundidade. Atacaram em todas as frentes e desarticularam o exército ucraniano.

Hoje o exército russo está posicionado no que se chama de fixações de frentes. Não são cercos de aniquilamento, com objetivo de aniquilar o exército ucraniano, mas sim para fixá-lo em frentes a fim de  cercá-lo. O cerco e o desgaste significam impedir a entrada de alimentos e tudo o mais.

A Rússia tem a supremacia aérea. A Ucrânia não tem cobertura aérea, não tem defesa antiaérea acima de 5 mil metros de altitude. Os portos estão tomados pelos russos, o Mar Negro está tomado pelos russos. Eles conseguem acertar um míssil na fronteira com a Polônia com extrema precisão. A guerra já está decidida, não há possibilidade de reversão. A possibilidade é que os EUA provoquem alguma alteração, algum impacto ou alguma questão que afete a OTAN para postergar ou prolongar a guerra. Esta me parece a ideia de Biden neste momento.

Após um mês de guerra, já se pode falar em alguma ruptura irreparável nas relações internacionais entre as grandes potências?

Hector: Ruptura por enquanto não. O que acho que aconteceu, a partir do começo do século 21, foi uma percepção por parte dos EUA de uma inimizade em relação à China. Se você lembrar, a partir da visita de Nixon à China, quando Mao Tsé-Tung ainda estava vivo, houve um acordo entre China e EUA justamente para evitar que a China se aproximasse da Rússia, e a Rússia  se mantivesse como inimigo preferencial.

Foram feitos grandes investimentos norte-americanos na China. O país melhorou no aspecto econômico, no financeiro, tecnológico, até um ponto no qual a economia chinesa começou a preocupar os EUA. Quando terminou a Guerra Fria, na década de 1990, dissolveu-se o Pacto de Varsóvia e aquele inimigo deixa de existir. Começou-se então a se falar de “novas ameaças” contra o Ocidente. Falou-se em empregar as forças armadas para lidar com o crime organizado, o narcotráfico, as migrações. Mas os EUA precisavam de um grande inimigo, grande o suficiente para exigir o emprego de forças armadas robustas. Isso ocorre devido à ação do complexo industrial militar. É ele quem financia as eleições norte-americanas, tanto através do partido republicano quanto do democrata, eles devem sua existência financeira ao complexo industrial militar. Por isso, parte da política externa norte-americana é ditada por esse complexo industrial militar.

No começo deste século 21, começou-se a colocar a China como alvo preferencial dos EUA. Naquele momento caiu um avião espião norte-americano numa ilha chinesa. Esse foi um momento importante da conflitividade entre China e EUA. Os EUA estavam discutindo, no Congresso norte-americano, a projeção estratégica para o Pacífico e desviaram o orçamento da defesa para os estaleiros da costa do Pacífico, o que significava uma alteração importante da frente.

Então veio o 11 de Setembro, e os EUA se voltaram novamente para o Leste, correndo atrás de um inimigo invisível, no que eu chamei de ‘década do sonambulismo estratégico’.  Os EUA se atolaram no Iraque e no Afeganistão. Entraram em guerras que não conseguiam vencer, e das quais não conseguiam sair, e a OTAN estava junto com eles. Enquanto isso, a China continuava a crescer e se expandir. Passou pela África criando infraestrutura, investindo muito dinheiro. E chegou ao Atlântico Sul, com a construção de portos militares, para países africanos da costa do Atlântico Sul. Isso é importante quando pensamos que pelo Atlântico Sul passam 80% do comércio chinês. Num eventual conflito bélico com a China, o Atlântico Sul seria fechado para bloquear a passagem tanto dos insumos que vão para a China, quanto das mercadorias manufaturadas que ela exporta.

Durante o governo Trump, o inimigo preferencial e comercial era a China. E Trump procurou aproximação com a Rússia, a Rússia virou ‘amiguinha’ do Trump, e inclusive os democratas acusaram o partido republicano de usar a infraestrutura de TI russa para modular a percepção dos norte-americanos, empregando algoritmos que teriam auxiliado a vitória de Trump nas eleições. O Biden ganhou as eleições, mas ganhou por pouco, de maneira bastante contestada. Já durante o governo, Biden se retirou do Afeganistão por um decreto, sem consultar a OTAN. Isso criou um mal-estar muito grande entre a OTAN e os EUA. Uma OTAN, na realidade, lobotomizada. Estamos num mundo no qual a mediocridade diplomática e política é gritante. Em outras situações não teria havido essa guerra. Com Angela Merkel não teria havido esta guerra. Mas hoje a Europa está lobotomizada.

Tudo isso que estou dizendo significa que há um movimento nas camadas tectônicas mais profundas da segurança internacional, que é onde se expressam as estruturas estratégicas das grandes potências. As grandes potências são China, Rússia e EUA. Há um avanço da China e da Rússia no campo do comércio; hoje 100 países fazem a maior parte de seu comércio com a China. A Europa depende da China e da Rússia não só no aspecto energético, mas também alimentar. A Rússia é o celeiro do trigo que comem os europeus, além do gás e petróleo. A Alemanha depende da tecnologia chinesa; então é um mundo interdependente. Os EUA, diante da perspectiva de perderem espaço, iniciam esta guerra. Estou colocando a culpa em Biden, e não sou o primeiro a fazê-lo. Os EUA, o Ocidente são os culpados por este conflito. E não estou falando da guerra em si, mas do conflito que está por baixo desta guerra.

É um conflito entre as grandes potências. O que está em jogo neste momento é uma disputa de hegemonia internacional. Há uma parte que propõe um mundo unilateral, regido por regras ditadas unilateralmente. É o que podemos chamar de uma autocracia internacional. Contra isso há uma proposta que foi mais ou menos formalizada na declaração de Putin e Xi Jinping na reunião de Pequim, durante as olimpíadas de inverno, que fala de “um mundo multipolar de isonomias normativas, onde todos os estados têm o mesmo direito para discutir suas questões”. Eles propõem o multilateralismo contra um unilateralismo. É isso o que está em jogo, é um “basta” às imposições unilaterais.

A OTAN foi se estendendo para Leste até um ponto de colocar a Rússia no que Sun Tzu chama de ‘o campo da morte’. O campo da morte é quando se executa uma manobra militar e se coloca o inimigo de costas para um rio, uma montanha ou dentro de um cerco, obrigando este inimigo a resistir até a morte. E aí se redobra o esforço bélico. A Rússia foi colocada nessa situação. A OTAN não precisava chegar à Geórgia nem à Ucrânia. Chegou apenas como uma ação provocativa, para provocar a Rússia.

O objetivo aqui é sacrificar a Ucrânia para sangrar a Rússia e isolar a China. É  isso o que está por trás da guerra. Ninguém se importa com os ucranianos.

Foram cinco ondas de expansão da OTAN até que ela se aproximasse da fronteira russa. A partir daí, frear esta expansão se transformou numa questão existencial. E vários importantes analistas norte-americanos denunciaram que seria uma questão existencial para a Rússia, e que ela responderia à altura. E a Rússia respondeu. Essa guerra não tem sentido, poderia ter sido impedida atendendo-se às exigências de Putin, que são absolutamente justas. Teria bastado negociar com a Rússia para que não houvesse guerra. A guerra foi provocada e quem provocou a guerra foi o Ocidente. Mais  especificamente, Biden, o governo norte-americano.

E o que vai acontecer? Mais de 3 milhões de ucranianos vão chegar à Europa, que já nem tem condições de bancar os próprios europeus que estavam lá. Sem o gás russo, haverá uma inflação de entre 20% e 30% na Europa. E vários países europeus estão elevando seu orçamento militar para satisfazer às demandas do complexo industrial militar. Para isso vão ter que tirar recursos da saúde pública, da educação, da infraestrutura. E os que hoje estão gritando na rua pela Ucrânia, “amamos Ucrânia, somos Ucrânia”, amanhã vão estar chorando na fila do supermercado e odiando aquele ucraniano que veio tirar o emprego deles.

Quais são os possíveis desdobramentos? O conflito pode escalar ainda mais?

Hector: O que está em jogo aqui é esse jogo de hegemonias; se não fosse por isso, essa guerra já estaria pronta para ser terminada. Acho que neste momento o governo russo vai exigir mais do que já exigiu, porque tem condições inclusive de demandar uma rendição incondicional. Acho que vai negociar pontos como o reconhecimento da soberania russa sobre a península da Crimeia, a independência das províncias autônomas de Donbass, o não alinhamento da Ucrânia com a OTAN, o compromisso de que o país nunca entrará na OTAN e de que nunca irá adquirir armamento nuclear. Mas duvido que o Biden aceite isso. A manutenção da tensão internacional é um bom negócio para o complexo industrial militar, e esse é um problema para ser analisado.

Do Jornal da UNESP