De Camões a Pessoa: análise literária de Errante de Adriana Calcanhoto

Ontem de Camões, hoje de Pessoa e amanhã uma errante, sem residência e poesia fixa. Cá dentro, o relento. Era isso o amor?

No ano de 2023, a cantora, compositora e intéprete Adriana Calcanhotto, lança seu décimo terceiro albúm de estúdio, o albúm de título “Errante”. Marcada por um jeito irreverente em suas interpretações, dotada de violão e melodias intermitentes, Adriana parece voltar a essência de sua trilogia do mar nos albúns como Marítmo (1998), Maré (2008) e Margem (2019). No albúm Errante, Adriana parece fazer uma rebusca de uma identidade perdida, talvez, pelos desígnios do mar, esse mar a que configura todos os seus movimentos, a procura do leão que sempre cavalgou.

Pois, em Marítmo (1998), ou, como mais propriamente dito, “ritmo do mar”, que contém canções como “Vambora”, “Mais Feliz”, “Vamos Comer Caetano”, dentre outras. Um albúm que mostra a versão de uma Adriana em movimento, no leme das águas, “sem amarras, barco embriagado ao mar”, como na canção “Inverno” e não colocada no disco daquele mesmo ano. Isto dito, uma Adriana condicionada ao “movimento da proa”, sem rota e sem destino, talvez como Roberto em “Ritmo de Aventura” (1967), mas em ritmo desacelerado, marasiada da vida.

Já em Maré (2008), lançado em Portugal, ao trazer faixas como “Seu Pensamento”, “Mulher Sem Razão”, “Sem Saída”, “Sargaço Mar”, dentre outras, descreve uma Adriana conflituosa, num encontro com ás águas de si mesma, mas ainda sem rota e sem destino, detalhando o sentimento como imensidão incontrolável, pintada pelas cores do oceano que a invoca dentro de suas águas. Maré é o segundo albúm da trilogia, e embora conflitante, vem com uma pegada de soul, mais sensualizada, como se o mar coubesse dentro de todas as mulheres sem razão, mas alteradas com o balanço do mar, um recuo das águas que agora parecem a inundar.

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Diferente dos dois albúns ateriores da trilogia, Margem (2019), sugere uma Adriana atravessada pelas águas, mas ainda com sina de marinheiro. O disco vem recheado de um rompimento do mundo-das-águas, detalhadamente oceânico, com críticas ecológicas e o canto de Ogunté, odu descrito por Adriana como espírito de força, determinação e controle do mar. Margem traduz uma travessia desde o movimento, confronto e por fim, o outro oceano, a sua colina de calvário em faixas descritas “Príncipe das Marés”, “Era Pra Ser”, “Tua” e outras mais faixas que detalham um espírito nômade que vem se desenhado na arte cantada por Adriana.

Em seu albúm Errante (2023), há sultilmente, uma travessia marítma para o fogo perecível como em canções ditas “Era Isso o Amor?, com durabilidade questionada em lamúrias que vão de Camões a Fernado Pessoa, afinal, o amor é essa chama latente que arde sem se ver? “Quem te disse?”, pergunta Adriana.

O amor é esse jogo de “cartas marcadas”? Arder, arder, queimar e retira-se sem aviso? Ou o amor é nada menos que a roda-do-dia, ditosa aquela flama, que se atreve a apagar seus ardores e tormentos na vista de que o mundo deva tremer?

Como e com que causa pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o Amor?

Adriana faz uma troca de figura de linguagem de sua arte, ao “largar tudo” todo esse encontro das águas, para apostar todas fichas nessa “Prova dos Nove”, precisa o amor ser comparado ao tão “desejo ardente” em Camões e ser o fundo da vida em Pessoa? Ou ele é essa “partida mentirosa”, esse “Horário de Verão”, que precisa se ajustar a saudade no fim do dia, quando na verdade, suas camisetas seguem nas gavetas e as suas havaianas pretas, seguem no corredor? Do mar aos anéis de fumaça, “Reticências”.

Tudo seu, tudo seu, ainda….

“Pra Lhe Dizer”, ou vos dizer a verdade, tudo que há na construção da identidade rebuscada por Adriana em seu décimo terceiro diário decantado, se transforma na identidade não unida e tampouco acorrentada, tudo o que não foi levado pelo mar-da-vida. Fragmentos de “coração almirante” e louco que abandona a profissão do mar e vive sempre sozinho, como a errante de seu destino que nunca cessa.

O mar abandonado agora, como diria Fernado Pessoa, “foca nos músculos cansados de parar”.
A vida decantada de Adriana é infiel no ermo porto e contra destino, é “nômade”, amplexa da manhã, pura e salgada e como a arte, que “jamais admtirá (“Jamais Admitirei”), mesmo sob cruel tortura e com requintes de loucura, ninguém vai ouvir dizer que Adriana inverteu os papéis do verbo amar e “levou para o samba a nossa fantasia” da ideia construída de “amor” e “querer”.

Essa com certeza, será a sua deixa, sua colina de calvário, o “destino” nômade que ela jamais conseguirá escapar, boiando á tona, a vida errante, tendo um amor em cada porto, amor-de-marinheiro, dentro da noite voraz, detrás do avesso do véu, atravessando essa vontade nua.

No breu das noites de hotel, no clarão, no vasto, Adriana sempre será “algo que jamais se esclareceu”, sua e só, Adriana é o gás que faz essa canção na areia, na neve marinha, do dentro do dia, sua e só.

Ontem de Camões, hoje de Pessoa e amanhã uma errante, sem residência e poesia fixa. Cá dentro, o relento. Era isso o amor?

Mentiras…

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