Combater negacionismo climático e planejar cidades

Para professor da UFRGS, planejamento urbano tem de estar associado ao planejamento ambiental e social e negacionismo deve ser combatido

Porto Alegre inundada - no destaque, o estádio do Grêmio. Foto: Mauricio Tonetto/Secom/via Fotos Públicas

A catástrofe ambiental enfrentada pelo Rio Grande do Sul é mais um caso a demonstrar, de maneira extrema, a destruição causada pelo neoliberalismo e pelo negacionismo. Os efeitos da crise climática somados à continuidade do desmatamento, à desordem urbana, ao descaso de autoridades e setores econômicos com a questão ambiental e social —marcas registradas do capitalismo — formou o cenário ideal para o desenrolar de um desastre de proporções nunca vistas no Brasil. 

Fechar os olhos para isso já não é mais possível. Se por anos a sociedade e os governos ignoraram o processo de destruição em marcha — seja porque seus efeitos atingiam, sobretudo, as populações mais pobres, seja por incompreensão ou negligência —, desta vez a onda de destruição foi, literalmente, tão grande e profunda que é impossível ignorar a necessidade de mudanças estruturais, sob pena de sério risco à vida e ao país. 

Para entender o que desencadeou tudo isso e as maneiras de preparar as cidades para essa nova realidade climática, o Portal Vermelho conversou com Paulo Roberto Rodrigues Soares, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.

Um dos aspectos que ele destacou é a necessidade de repensar o planejamento urbano, de maneira a evitar a ocupação de áreas propícias a alagamentos e que podem cumprir papel importante como “esponjas”. Para isso, é preciso também garantir habitações populares em outras áreas que não ofereçam risco aos moradores e que estejam conectadas à cidade — e não apartadas como em geral acontece, com a formação de bairros periféricos desassistidos e em locais impróprios. 

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Neste sentido, é importante salientar que mesmo que as enchentes atuais tenha atingido populações de classes sociais distintas, foram novamente os mais pobres os principais afetados. Estudo feito pelo Observatório das Metrópoles mostra que as águas em Porto Alegre e em cidades da Região Metropolitana ocuparam, sobretudo, os bairros socialmente mais vulneráveis. 

Por tudo isso, diz Soares, “o planejamento urbano tem de estar, cada vez mais, associado ao planejamento ambiental e social”. Além disso, explica, “é preciso haver educação ambiental e científica já para a população, de maneira a combater o negacionismo climático e o falso consenso neoliberal de que qualquer planejamento é interferência na liberdade econômica”. 

Leia a entrevista abaixo. 

Características do RS

“Ao tratar das causas e impactos dessa enchente, é preciso, primeiro, falar da geografia do Rio Grande do Sul, que tem a serra, os vales e a planície, onde está o estuário do Guaíba e o delta do Jacuí. Toda essa chuva começa na serra, desce pelos vales e termina na Região Metropolitana, no delta de Jacuí e no entorno do lago ou rio — o termo a ser usado ainda é uma controvérsia — do Guaíba. 

Essa região concentra quase 60% da população do Rio Grande do Sul, cerca de seis milhões de habitantes, e uns 55% do PIB do estado. Boa parte da indústria se concentra nessas três regiões: Metropolitana, Serra e Vale do Taquari. Além disso, tem a agricultura familiar — parte dela muito integrada ao agronegócio, como é o caso dos aviários, da produção de suínos, aves e de laticínios. Tudo isso foi gerando uma ocupação muito veloz nas últimas décadas. E essa mudança impactou fortemente no meio ambiente, com desmatamentos e ocupação de encostas, dos vales e das várzeas”. 

Sequência de eventos extremos

“Além disso, é preciso levar em consideração que tivermos três eventos extremos seguidos: as chuvas de setembro e de novembro de 2023 e esta de agora. Então, o solo já vinha bastante agredido e permeabilizado, e a gente ainda teve uma primavera bastante chuvosa, no contexto do El Niño. 

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Tudo isso fez com que a água descesse numa velocidade muito grande desde a serra, passando por esses vales que já estavam ocupados, essas planícies de inundação, chegando então à Região Metropolitana, onde há uma estagnação da água, por conta do Guaíba, que é um grande estuário dos rios Jacuí, Caí, Taquari, Gravataí e dos Sinos. Ou seja, é toda uma rede hídrica que desemboca ali e essa água não sai na mesma velocidade com que ela chega, de maneira que temos essa inundação até agora em Porto Alegre”. 

Falhas no sistema de proteção

“Fora isso, nós temos também outras causas, como as falhas no sistema de proteção, especialmente no caso de Porto Alegre, que tem esse sistema formado por diques, bombas e comportas. Temos tido notícias de que a manutenção não estava ocorrendo a contento. E, além destas, houve falhas no sistema de alerta — mas não por parte dos meteorologistas e dos cientistas porque já nos dias anteriores, os órgãos de meteorologia, tanto públicos como privados, estavam anunciando que a chuva seria de grandes proporções. E o próprio Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS também já estava alertando sobre o aumento do nível do Guaíba”. 

Desigualdade entre os afetados

“É importante destacar o fato de que essa situação afeta desigualmente a população, especialmente na região metropolitana, como nas cidades de Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo. São os bairros periféricos os mais afetados. 

O Observatório das Metrópoles está lançando alguns mapas, elaborados pelo André Augustin, mostrando que as áreas de menor renda foram as mais afetadas. Em Porto Alegre, são exemplos bairros da Zona Norte — como o Humaitá e o Sarandi, que foram bastante afetados e tem uma população de baixa renda —, assim como ocorreu em cidades como Alvorada e Cachoeirinha. Mas, tem uma parte, uma parcela da população de baixa renda de Porto Alegre, que está nos morros, como a Lomba do Pinheiro que, felizmente, por essa localização, não foi totalmente atingida”. 

Imagem: elaboração de André Augustin/Observatório das Metrópoles

Planejamento urbano e ambiental

“O planejamento urbano tem de estar, cada vez mais, associado ao planejamento ambiental e social.É preciso pensar um novo modelo, diferente do das últimas décadas, que teve muita dispersão urbana. 

Os dados do Censo de 2022 mostraram uma grande quantidade de imóveis desocupados em Porto Alegre, cerca de 20%. Temos uma produção muito grande de moradias, mas para o mercado. O imóvel, especialmente os apartamentos, se transformaram num investimento — é comum uma mesma pessoa ter várias unidades num mesmo edifício. Também estão sendo produzidas habitações para aluguel temporário, para plataformas como o Airbnb. Isso tudo está gerando uma produção talvez excessiva no espaço urbano. 

Outro modelo que está disseminado é o de condomínios fechados de alto padrão e pouca densidade em áreas baixas — onde estão as várzeas e os banhados, que serviriam como esponjas. É preciso repensar esses modelos e o uso desses cinturões verdes e planejar cidades mais compactas, menos dispersas”. 

Imagem: elaboração de André Augustin/Observatório das Metrópoles

Habitação social

“Por outro lado, a gente tem que pensar também numa política de habitação social que promova moradias de qualidade e mais bem localizadas para a população de baixa renda, porque geralmente muitos desses empreendimentos são distantes, desconectados do espaço urbano, em terrenos ruins, com declividade ou muito baixos. E isso quer dizer investir mais. Por que moradias como os conjuntos habitacionais populares são feitos em terrenos piores? Porque assim o Estado, especialmente, paga menos. Ou seja, é preciso investir em terrenos melhores para a habitação social e coibir os vazios urbanos”. 

Negacionismo climático

“Além disso, é preciso haver educação ambiental e científica já para a população, de maneira a combater o negacionismo climático e o falso consenso neoliberal de que qualquer planejamento é interferência na liberdade econômica. Aqui no Rio Grande do Sul houve um afrouxamento das leis ambientais, permitindo, por exemplo, obras em represas, açudes e em áreas de preservação. O governo estadual e os deputados que aprovaram isso o fizeram em nome da ‘liberdade das pessoas’, da ‘liberdade econômica’, da não interferência na propriedade privada. E agora todos estão vendo que essa é uma falsa ideia, porque no final das contas a pessoa acaba tendo danos irreversíveis até mesmo na sua propriedade. Isso também tem que ser combatido com certa educação ambiental e social que desfaça esses falsos consensos”.

Imagem: elaboração de André Augustin/Observatório das Metrópoles

Muito disso a gente pode creditar a essa conjuntura de avanço ultraliberal e negacionista que a gente está vivendo no nosso país. Isso vale para o governo federal anterior, mas vale muito também para o nosso Congresso, inclusive o atual, onde há um pacote anti-ambiental para ser votado, além de várias iniciativas da bancada do agronegócio que promovem desmatamento, relaxamento de leis ambientais; tudo isso é nefasto”. 

Retrocessos em Porto Alegre e no RS

“No caso de Porto Alegre, temos as duas últimas administrações — de Nelson Marchezan Jr. (PDSB) e de  Sebastião Melo (MDB) —, além da Câmara de Vereadores formada, em sua maioria, por vereadores que pregam essas posturas. O próprio vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes, é um negacionista climático. E também é um pregador dessa chamada ‘liberdade econômica’ em que o setor privado tudo pode e o mercado é que vai regular as coisas.

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O governador Eduardo Leite (PSDB), por sua vez, tem usado como desculpa para as mudanças no código ambiental o fato de que estaria modernizando a legislação e acompanhando as alterações feitas em nível federal, que foram para pior — porque ocorreram na gestão Bolsonaro, com o ministro do ‘passar a boiada”, Ricardo Salles, no Meio Ambiente. Esse argumento não é verdade. O Rio Grande do Sul, inclusive, foi um estado pioneiro na criação de legislações ambientais. A primeira lei dos agrotóxicos, por exemplo, foi do Rio Grande do Sul. Então, acompanhar a legislação federal, nesse caso, significou regredir, num estado que sempre esteve adiante nas lutas e na legislação ambientais.

Sucateamento público 

“Além disso, também tem a questão do sucateamento do próprio estado. Os últimos governos, de José Ivo Sartori (MDB) e de Leite, vêm desestruturando e desvalorizando o corpo técnico, extinguindo órgãos públicos e de pesquisa. O Sartori começou com o fim da Fundação de Economia e Estatística e da Fundação Zoobotânica, órgãos de pesquisa que faziam estudos estratégicos; depois o Leite  jogou a pá de cal em muitos desses órgãos. Para os governos retomarem seu papel, é preciso também valorizar seu corpo técnico-científico, suas estruturas de pesquisa e, no caso das leis ambientais, mudar esse processo de destruição atual”. 

Cidades-esponja

“O Brasil já tem cidades-esponja naturais, como é o próprio caso aqui de Porto Alegre, com todo o delta e Eldorado do Sul, áreas baixas e que não necessariamente poderiam estar ocupadas. Mas a gente sabe também que existem causas sociais para essa ocupação. Muitas pessoas, por exemplo, são excluídas, expulsas, da cidade formal, do mercado, e têm que buscar suas alternativas.

São Paulo, por exemplo, que tem uma outra configuração geográfica, tem toda a área de proteção dos mananciais, a Zona Sul e Sudoeste, a represa Billings, a Guarapiranga, e essas áreas foram muito ocupadas. O Rio de Janeiro é outro exemplo, com a ocupação dos morros e da Barra da Tijuca, que é um grande banhado, e que foi super-ocupada, com grandes condomínios. Já temos muitas esponjas naturais estabelecidas e que não foram respeitadas e agora a gente está tendo as consequências disso nesse evento climático extremo que a gente está enfrentando”.