“Cidades temporárias” do RS podem piorar vida de desabrigados

Para especialistas, alternativa não garante estruturas adequadas e pode piorar trauma de pessoas já abaladas. Uso de imóveis desocupados seria melhor saída

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Tão logo veio à tona, a ideia de criar “cidades temporárias” ou “provisórias”, a serem usadas para abrigar pessoas que perderam suas casas durante as enchentes, suscitou uma série de críticas de parlamentares e especialistas. Ainda que possa parecer uma boa solução para o momento de emergência, a ideia pode trazer outros problemas. 

Anunciada oficialmente na sexta-feira (17) pelo governo de Eduardo Leite (RS), a ideia é que sejam criadas quatro estruturas: no Complexo Cultural do Porto Seco, em Porto Alegre; no Centro Olímpico em Canoas; e no Centro de Eventos em São Leopoldo. Ainda não foi definido o quarto espaço, em Guaíba.

Segundo o governo estadual, os municípios foram definidos por terem cerca de 70% de seus cidadãos vivendo em abrigos. Além de seus próprios habitantes, esses locais também receberam moradores de Eldorado do Sul, que tem mais de 70% de sua área urbana inundada. 

Ao todo, o estado tem mais de 581 mil pessoas desalojadas, das quais 76 mil vivendo em abrigos. No caso de Canoas, uma das cidades mais atingidas da Região Metropolitana, 21 mil cidadãos estavam vivendo nesses locais até a última terça-feira (14). 

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Contrária às “cidades temporárias” — que se assemelham a campos de refugiados — a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB) criticou a iniciativa e usou como exemplo o caso de Porto Alegre, da qual já foi vereadora e liderança da luta por moradia. “Há muito tempo, falamos dessa cidade que não tem uma política habitacional. E nós estamos pagando a conta agora. As cidades provisórias não podem ser depósitos de pessoas”. 

Ela argumentou, ainda, que há alternativas melhores para a população desalojada. “Nós temos alternativa: Porto Alegre tem muitos imóveis vazios, o município tem muito patrimônio entregue à especulação imobiliária e agora precisamos cobrar a fatura e fazer com que o povo ocupe o que é seu direito”. 

Líder do PCdoB na Câmara de Porto Alegre, a vereadora Abigail Pereira, a Biga, salientou que o Porto Seco, onde acontecem os desfiles de escolas de samba, “não tem estrutura para abrigar pessoas. Não há esgoto adequado, nem iluminação suficiente. Além disso, o local é úmido e frio, sendo totalmente insalubre para moradia, ainda mais, em barracas”. 

A parlamentar disse que a ideia é “absurda” e concorda que “existem diversos prédios públicos e privados em Porto Alegre que estão desocupados e poderiam suprir as necessidades de abrigamento digno a estas pessoas”. 

As ligas responsáveis pelo carnaval oficial da capital gaúcha, Ucegapa e Uespa, também destacaram esses problemas e acrescentaram que o “Complexo Cultural do Porto Seco é a casa do carnaval, local de armazenamento de materiais e não de pessoas”. 

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Para além dos problemas específicos em torno do local escolhido em Porto Alegre, especialistas apontam outras questões que permeiam o uso desse tipo de estrutura de maneira geral. 

Em artigo publicado no site Sul21, Fernando Freitas Fuão,  professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio  Grande Sul, destaca que “a população abrigada permanece em estado de choque, vivendo já há mais de três semanas em pequenos abrigos improvisados, sem eira nem beira. Alguns políticos querem que essas  pessoas se desloquem mais uma vez, desta vez para uma cidade abrigo, a ser construída”. 

Para ele, “se a enchente constituiu um trauma, o novo deslocamento será uma erosão psicológica; e não haverá balizas para medir os níveis. Não se pode acabar com a esperança do retorno à casa. Voltar a sua casa é um imperativo, assim como relutar abandoná-la, algo análogo a abandonar a existência”. 

Por isso, defende a associação de outras medidas que permitam a essas pessoas viveram de maneira mais digna. Inicialmente, o pagamento de auxílio para garantir a compra de móveis e eletrodomésticos básicos e também um valor destinado à reforma, “enquanto se efetivam as obras vitais de contenção das águas com tecnologias adequadas e atualizadas”. 

Ao site Brasil de Fato, Márcia Falcão, pesquisadora do Observatório das Metrópoles, declarou que “as cidades temporárias não têm estruturas de educação, saúde, nem acesso a transporte coletivo para que as pessoas possam minimamente retomar suas vidas”. E acrescentou: “Entendemos que a situação é extraordinária. Mas, ainda assim, alocar pessoas em grandes acampamentos é a pior solução”.

Com agências

(PL)

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