Educadores e estudantes se opõem a projeto de escolas militarizadas em São Paulo

Ao Vermelho, especialistas apontam problemas surgidos durante a breve implantação do programa bolsonarista

Estudantes protestavam contra projeto que entrega gestão de escolas a militares, quando foram brutalizados por policiais dentro da Assembleia Legislativa

A tarde da última terça-feira (21) entrou para a história da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) pelo contrassenso da cena de uma tropa de choque da polícia militar reprimindo de forma violenta um grupo de lideranças estudantis, que acompanhavam uma votação polêmica. Os deputados da base governista, submissos aos ditames do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), aprovaram o projeto que institui as escolas cívico-militares no estado em meio as cenas de adolescentes sendo algemados e presos.

Com a prisão de sete jovens, entre os detidos, a presidenta da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (Upes), Luiza Martins, entidades e personalidades ligadas à educação e ao parlamento consideram que houve total desrespeito à Constituição, aos direitos humanos e aos direitos de livre manifestação. O Portal Vermelho consultou lideranças estudantis, educadores e representantes dos professores que acompanham desde o início a implementação do projeto bolsonarista das escolas, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), e os problemas graves que surgiram da gestão militarizada.

Autoritarismo fascista

A presidenta da União Paulista de Estudantes Secundaristas (UPES), Luiza Martins, detida de forma violenta durante a votação na Alesp, diz que o tratamento testemunhado nos corredores do legislativo são uma demonstração de que “policiais não sabem lidar com os estudantes e não devem estar dentro das escolas públicas do estado de São Paulo”.

A líder estudantil comentou sobre a natureza regressiva da proposta de escolas cívico-militares. “É um grande retrocesso, tanto que esse projeto já foi vetado nacionalmente, justamente por conta do conteúdo. Aqui no estado de São Paulo, principalmente, nós temos uma das polícias militares mais agressivas do nosso país… que tem mais ocorrências, até mesmo de ilegalidades que são feitas durante as operações da polícia militar, a gente está falando que essas mesmas pessoas estarão dentro das nossas escolas”, afirma.

A presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Manuella Mirella, também testemunhou pessoalmente a violência na Alesp: “Primeiro a gente estava presente, estudantes universitários também na luta com os estudantes secundaristas, quando fomos surpreendidos de forma truculenta pela polícia.” Mirella destacou a violência da abordagem policial, que, segundo ela, foi desproporcional e chocante.

“O projeto de escolas cívico-militares representa um grande retrocesso. A mesma polícia que bateu nos estudantes na Alesp é a mesma que vai ensinar as crianças nas escolas. Esse é um modelo, um projeto de Estado representado pelo autoritarismo, a violência, o fascismo, que não combina com uma educação transformadora, transversal, que nós acreditamos.”

A presidenta da UNE enfatizou que a ação violenta da polícia não desmotivou os manifestantes. “A gente vem acompanhando os estudantes que foram detidos. Prestamos nossa solidariedade, acompanhamos, fizemos vigília e ato em frente ao local [a delegacia]. Nós, inclusive, colocamos nosso apoio jurídico à disposição dos estudantes. A forma como a polícia agiu naquele momento foi totalmente desproporcional ao modelo de manifestação que estava sendo feito.”

Apesar da repressão, o projeto de escolas cívico-militares foi aprovado, o que, segundo Mirella, reflete um modelo de Brasil que não aceita a pluralidade de ideias e a liberdade. “Então, esse é um retrato desse projeto de Brasil, que a gente não quer que esteja nas nossas escolas.”

Manuella afirmou que o movimento estudantil continuará na luta contra o projeto e a repressão. “A gente vai continuar na luta contra o projeto, que é reflexo de um projeto de Brasil em que não cabe a pluralidade de ideias, que não cabe a liberdade e nós não iremos aceitar enquanto movimento estudantil.”

A educadora Madalena Guasco Peixoto, diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP, também fez uma declaração contra o modelo das escolas cívico-militares, destacando a questão dos recursos que são desviados para o Pecim.

Ela também criticou o foco excessivo na disciplina, em detrimento da função educadora da escola. “A escola militar preocupa-se mais com disciplina do que com educar, desvirtuando totalmente o sentido educador e mediador da escola, para se tornar ambientes autoritários cercado de punições, medo e abusos”, afirmou.

Madalena destaca que as primeiras experiências em Goiás mostram que o projeto pedagógico é uniformemente autoritário. “A escola militar atenta contra a gestão democrática, que é um princípio constitucional”, resumiu Madalena.

Ela compartilhou preocupações levantadas em pesquisas acadêmicas, que apontam que essas instituições se tornam antidemocráticas, excludentes e persecutórias. “A criança não pode olhar no olho do superior, não pode abraçar o amigo na escola, a estética não aceita cabelo afro, tornando a escola antidemocrática, excludente e persecutória, com castigos militares”, contou.

Madalena manifestou sua condenação ao governador Tarcísio de Freitas e ao governo do estado de São Paulo pela condução truculenta do processo e pela violência infligida aos estudantes. “É inadmissível que, em um estado democrático de direito, estudantes sejam agredidos e detidos por exercerem seu direito legítimo de manifestação contra uma medida que contraria os princípios da educação democrática”, declarou.

Ela criticou o uso da força policial para reprimir manifestantes e a aprovação do projeto. “O uso da força policial para reprimir manifestantes e a aprovação precipitada do projeto são ações que violam os direitos fundamentais dos cidadãos e ferem os princípios básicos da convivência civilizada”, afirmou.

A professora Francisca Seixas, diretora da Secretaria de Assuntos Educacionais e Culturais da Apeoesp e diretora de Saúde da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação (CNTE), faz críticas ao programa de escolas cívico-militares, originado durante o governo de Jair Bolsonaro e agora promovido pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

A sindicalista afirma que o programa das escolas cívico-militares, introduzido durante o governo Bolsonaro, trouxe inúmeros problemas para a educação pública no país. “Com mentalidade tão reacionária quanto Bolsonaro, Tarcísio se esforça para conquistar a extrema-direita a todo custo em seu projeto de se candidatar à Presidência da República em 2026”, declarou. Ela acusou o governador de agir em direção oposta à democracia e aos interesses da maioria da população brasileira.

Claudio Fonseca, presidente do Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (Sinpeem), também faz critica semelhantes. Ele fez referência aos acontecimentos na Assembleia Legislativa.

“Se escola cívico-militar fosse boa, Tarcísio não precisaria usar violência policial para aprovar seu projeto”, argumentou, parabenizando os estudantes que se manifestaram contra a medida. Segundo ele, a violência policial contra os manifestantes estudantis é um reflexo da natureza autoritária e reacionária desse modelo de educação.

Defensor de uma pedagogia baseada na persuasão democrática e na construção coletiva do conhecimento, o professor Fonseca argumentou que as escolas cívico-militares associam a educação a métodos de coação. “Escola cívico-militar é atraso e negação do papel transformador da educação democrática. É a opção de quem não investe de fato em educação e não valoriza seus profissionais e alunos”, afirmou, destacando que esse modelo não se alinha com os princípios de uma educação de qualidade e inclusiva.

Custo alto e desvalorização da carreira docente

A estudante Luiza criticou o gasto da educação com o projeto, enquanto se alega falta de recursos para investir na carreira docente. “Mobilizamos estudantes de todo o estado e fomos à Assembleia para mostrar nosso descontentamento com o projeto por diversas questões, incluindo a falta de preparo dos policiais para lidar com os jovens e o gasto público desnecessário em segurança ao invés de investimento nos professores”, disse Luiza.

A professora Madalena também critica a aplicação inadequada de recursos no Pecim. “A escola militar também é uma privatização, que deixa nas mãos de associações da Polícia Militar a responsabilidade pela gestão, recebendo recursos públicos para isso”, disse a educadora.

Madalena destacou a injustiça salarial, onde policiais militares aposentados são contratados com salários superiores aos dos professores, perpetuando a desvalorização da carreira docente e a militarização do ambiente escolar.

A Professora Francisca também chamou a atenção para a disparidade salarial entre os agentes escolares e os policiais militares que atuarão como inspetores nas escolas cívico-militares. “Em São Paulo, um agente escolar recebe R$ 1.878,60 por mês, enquanto os PMs que agirão como bedéis receberão R$ 6.034, mais de três vezes superior. Lembrando que o piso salarial dos professores no estado é de R$ 5.050”, destacou, evidenciando uma injustiça em relação aos trabalhadores da educação.

Baixo desempenho

Sobre a justificativa do secretário da Educação, Renato Feder, de melhoria na qualidade da educação, Luiza rebateu as alegações do governo, apontando para a falta de evidências concretas de sucesso das escolas cívico-militares. “Não existe uma justificativa e nem um argumento palpável de melhora de notas do Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] que possa justificar essa proposta aqui no Estado de São Paulo”, ressalta.

Francisca destacou que o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, abandonou esse programa, optando por investir na melhoria da educação pública para todos. Ela mencionou os resultados obtidos pelas escolas cívico-militares no Paraná, onde Feder também liderou a secretaria de educação. “A média das escolas cívico-militares no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi 4,6 no Paraná no ano passado, enquanto a média nas escolas regulares foi 4,9. Em São Paulo, as escolas públicas registraram média 5,3”, comparou.

Fonseca também questionou a eficácia das escolas cívico-militares em termos de desempenho acadêmico. “Nenhuma das cem escolas com melhor desempenho nos exames nacionais de aferição da aprendizagem é cívico-militar”, destacou, refutando a ideia de que esse modelo oferece melhores resultados. Além disso, ele apontou que essas escolas custam ao Estado o dobro de uma escola tradicional, sem entregar resultados proporcionais.

Noticiário policial

Embora muitas comunidades vulneráveis à violência e ao tráfico tenham inicialmente apoiado o modelo, acreditando que ele garantiria a segurança de seus filhos, Madalena observou que muitos já se arrependem. “Já houve denúncias de coronel com comportamentos inadequados de assédio sexual com meninas”, revelou.

O sindicalista do Simpeem critica a propaganda que apresenta as escolas cívico-militares como solução para problemas como baixo rendimento escolar, violência e falta de espírito cívico. Segundo ele, essa narrativa não corresponde à realidade nas instituições onde esse modelo já foi implementado. “Há denúncias de assédio, ameaças, abuso de autoridade, violência contra menores e até ocorrências de abusos sexuais”, revelou Fonseca, apontando para graves problemas que têm surgido nessas escolas.

Aterrorizados(as) com a exposição de seus filhos a situações vexatórias e tratamento degradante nas escolas cívico-militares do Paraná, pais e mães têm procurado o Ministério Público para denunciar atitudes de monitores militares. A 2ª Promotoria de Justiça da Criança e do Adolescente de Curitiba abriu um procedimento administrativo para apurar as denúncias e solicitar providências. Por tratar de direitos da criança e do adolescente, o processo tramita em segredo de justiça.

Os casos no Paraná, com suas mais de 300 escolas do tipo, chamam a atenção para a falta de ação dos militares diante de situações violentas nas imediações das escolas, tornando-as ainda mais inseguranças. São mencionadas também punições físicas e humilhações de estudantes que não cumprem as rigorosas regras estéticas que uniformizam a aparência das crianças. Os país apontam a falta de alternativa a outros projetos pedagógicos em seus bairros.

Denúncias de importunação sexual e abuso sexual de vulnerável também têm emergido dessas escolas em vários estados onde foram implementadas. Houve caso de militar acusado por 12 crianças em escola de Florianópolis. Algumas das meninas foram humilhadas pela coordenação da escola, quando pediram ajuda e orientação. Professores que testemunham as denúncias temem represálias por se posicionarem e procuram os sindicatos, dado o clima de autoritarismo nas escolas.

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