Eleição na África do Sul pode revelar perda de hegemonia do Congresso Nacional Africano

Após 30 anos no poder, o partido de Mandela enfrenta como opositores ex-lideranças do CNA, além da poderosa direita vocalizadora dos interesses brancos

Uma série de cartazes eleitorais de vários partidos políticos são exibidos em postes em Pretória, África do Sul, quinta-feira, 16 de maio de 2024.

Nesta quarta-feira (29), os sul-africanos se dirigirão às urnas para eleições em nível nacional e provincial. Será a 7ª eleição geral desde o fim do apartheid em 1994, quando Nelson Mandela foi eleito presidente com o Congresso Nacional Africano (CNA) conquistando 62,5% das cadeiras no parlamento. Três décadas após esse marco histórico, o CNA enfrenta um cenário bem mais desafiador com o desgaste natural de 30 anos no poder. Para analisar este cenário, o Portal Vermelho consultou Ana Prestes, analista internacional e secretária de Relações Internacionais do PCdoB, e Flávia Loss, professora de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP).

Desde 1994, o CNA tem dominado a política sul-africana, mas seu apoio vem diminuindo ao longo dos anos. Atualmente, o partido possui 230 das 400 cadeiras no parlamento, mas enfrenta dificuldades para manter essa maioria nas próximas eleições. “A situação do CNA já não é mais tão confortável nas eleições e terá muita dificuldade para obter sozinho mais de 50% das cadeiras do parlamento nacional,” comenta Ana Prestes.

A necessidade de alianças, possivelmente com o segundo partido mais votado, se torna uma realidade iminente. O problema é que o segundo partido mais votado, atualmente com 21% do Congresso, tem sido a Aliança Democrática, único partido liderado por um homem branco, John Steenhuissen, que os sul-africanos entendem como um partido de vocalização dos interesses dessa minoria. O partido de direita tem lutado contra a política de cotas para negros, por exemplo.

Com uma população de 62 milhões de pessoas, dos quais 27,7 milhões estão registradas para votar, a África do Sul verá uma eleição marcada pela diversidade. Esta eleição também será histórica por permitir pela primeira vez a participação de candidatos independentes, não filiados a nenhum partido político, o que por si só expressa um pouco da desilusão com os partidos dominantes.

O órgão de gestão eleitoral da África do Sul, o IEC, autorizou 14.889 candidatos, incluindo 70 partidos políticos e 11 independentes, para disputar 887 assentos na votação de maio. Quem alcançar mais de 50% dos votos decide quem será o presidente do país, que geralmente é a principal liderança do partido. Se o ANC garantir mais de 50% dos assentos, o Presidente Cyril Ramaphosa, 71 anos, será muito provavelmente reeleito como presidente para cumprir o seu segundo e último mandato de cinco anos.

Veja como o poder crescente do partido African National Congress nas primeiras eleições, vem caindo gradualmente, com chances de sua maior perda de votos nesta eleição, segundo as pesquisas de opinião:

Desilusão e desemprego

O crescente desinteresse entre a juventude é o destaque para a professora Flávia, que observa as transformações no panorama eleitoral e as influências que dominam as escolhas dos jovens votantes.

A analista internacional Flávia Loss

“A gente está muito acostumado a observar a África do Sul sempre apoiada no legado do Mandela. Agora o que a gente vê é uma situação diferente”, explica Flávia. Embora Nelson Mandela permaneça uma figura icônica na memória coletiva do país, as novas gerações estão demonstrando um distanciamento gradual dessa liderança histórica. “Cerca de 42% do eleitorado para as eleições agora de quarta-feira tem menos de 40 anos,” observa, ressaltando a predominância dos jovens entre os votantes.

Flávia se refere ao olhar distanciado que a juventude que nunca conheceu o apartheid tem do próprio Mandela e seu partido, o CNA. É comum essa juventude reverenciar a figura mítica do líder anti-apartheid com reservas, lamentando o fato dele ter “cedido demais” à elite branca do país. Até hoje não se avançou numa reforma agrária substantiva no país, por exemplo, o que faz com que as riquezas ainda estejam concentradas nas mãos dessa minoria de 8% da população.

Os jovens sul-africanos enfrentam desafios que vão além da política, como uma taxa de desemprego alarmante que ultrapassa 30%, ou seja, de cada três sul-africanos, um está desempregado devido à baixa industrialização da economia após o apartheid. O problema é particularmente grave entre os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 34 anos. O desemprego neste grupo é de 45,5%, superior à média nacional.

A população em geral também enfrenta problemas no sistema de saúde, subfinanciamento da educação, violência crescente, apagões constantes de energia elétrica, dificuldades de acesso a água e moradia em barracos para cerca de 20% dos cidadãos. “Com uma taxa de desemprego tão alta você não consegue pensar como vai ser sua vida no futuro,” comenta Flávia. Esse cenário contribui para um sentimento generalizado de desesperança e desilusão com o processo político tantos anos depois de derrotar o regime de apartheid.

Redes sociais: uma nova arena de influência

Esse fenômeno não é exclusivo da África do Sul. A falta de entusiasmo e a desesperança em relação à política são tendências observadas em muitas partes do mundo. “Isso tem acontecido no mundo todo, então não seria diferente na África do Sul com essa juventude,” afirma Flávia.

As redes sociais emergem como uma força significativa na tentativa de mobilizar o eleitorado jovem. “A influência das redes sociais é um fenômeno digno de menção,” destaca Flávia. Candidatos de diferentes espectros políticos, incluindo o Partido Comunista e a Aliança Democrática, estão investindo em campanhas online para atrair os jovens eleitores.

No entanto, apesar desses esforços, as pesquisas e as conversas na mídia sul-africana indicam uma persistente baixa adesão entre os jovens. “Mesmo assim, você sente nas pesquisas, nas conversas, no que tem sido divulgado pela mídia sul-africana, um desinteresse, um desalento muito forte,” aponta ela.

O desafio de preservar a democracia

A perda de confiança na democracia é um dos aspectos mais preocupantes desse cenário. “Pensando na África do Sul, uma democracia conquistada a duras penas, uma democracia construída com muito esforço,” enfatiza Flávia, destacando a importância de preservar esse legado.

O descolamento da juventude da figura de Mandela e da importância da democracia é alarmante. “É um pouco assustador uma juventude que se descola dessa imagem, de que independentemente do que esteja acontecendo é muito importante a preservação dessa democracia,” conclui a professora.

À medida que a África do Sul se prepara para as eleições, o desafio maior pode não ser apenas quem será eleito, mas como reconquistar a confiança e o engajamento dos jovens na democracia e no futuro do país.

Ana Prestes destaca cinco partidos principais na corrida para conquistar a maioria no parlamento nacional:

  1. CNA (Congresso Nacional Africano) – O partido dominante desde o fim do apartheid.
  2. DA (Aliança Democrática) – Principal partido de oposição, representando principalmente a minoria branca e com uma linha liberal de direita.
  3. MK (Umkhonto we Sizwe) – Partido fundado pelo ex-presidente Jacob Zuma, forte na região de KwaZulu-Natal que estreia na disputa.
  4. EFF (Combatentes pela Liberdade Econômica) – Liderado por Julius Malema, com um discurso mais à esquerda e 11% das cadeiras.
  5. IFP (Partido da Liberdade Inkhata) – Outra força política significativa no cenário eleitoral com 3,5% dos assentos.

Impactos econômicos e sociais

A erosão do apoio ao CNA é atribuída a uma combinação de fatores, segundo a dirigente do PCdoB. Problemas econômicos e sociais não resolvidos, somados a escândalos de corrupção, como os envolvendo Jacob Zuma, enfraqueceram a confiança popular. “Os problemas econômicos e sociais que não se resolveram e os casos de corrupção envolvendo autoridades do governo, em especial com a queda de Jacob Zuma, contribuíram muito para isso,” explica Ana Prestes.

Interessantemente, muitos dos atuais rivais do CNA são figuras que já estiveram dentro do partido. Jacob Zuma, que agora lidera o MK, e Julius Malema, que fundou o EFF após romper com O CNA, exemplificam essa dinâmica. “O próprio Zuma e Julius Malema do EFF, que é um líder que vem da juventude do partido e rompeu por um discurso mais à esquerda,” destaca Ana.

Apelo à classe trabalhadora

O Partido Comunista da África do Sul (SACP), aliado tradicional do CNA, fez um apelo à classe trabalhadora para apoiar o partido nas próximas eleições. “Façamos todo o possível para votar no CNA. Vamos unir-nos com força e propósito, levantar as nossas vozes através do poder do voto e deixar a nossa marca pela transformação democrática e pelo desenvolvimento para todos,” diz a nota do SACP.

O partido destaca os avanços obtidos sob o governo do CNA, como direitos humanos, acesso à moradia, água, eletrificação, educação e saúde, mas também reconhece os desafios persistentes, incluindo a exploração capitalista e a necessidade de um estado mais desenvolvimentista e democrático.

O SACP criticou duramente o sistema capitalista e as políticas neoliberais que, segundo o partido, privam o Estado dos recursos necessários para resolver problemas sociais. “A noção de que o setor empresarial privado pode resolver os nossos desafios sociais não tem credibilidade,” afirmou. Em vez disso, o partido defende um Estado desenvolvimentista democrático, capaz de servir diretamente ao povo e ampliar as oportunidades de envolvimento público na produção e fornecimento de bens e serviços.

O SACP reafirmou seu apoio à justiça para o povo palestino, elogiando os esforços do governo liderado pelo ANC em prol desta causa. “Uma votação no CNA na quarta-feira é também uma votação a favor da continuação dos esforços para garantir justiça ao povo palestino e a outros povos em todo o mundo que procuram libertar-se da ocupação, da opressão e da agressão imperialista.”

Futuro incerto

Com a erosão do apoio popular e a possibilidade de uma eleição sem maioria clara para o CNA, o futuro político da África do Sul permanece incerto. “Muito provavelmente o resultado das urnas irá forçar uma composição do CNA com o segundo partido mais votado,” antecipa Ana Prestes. “Hoje o grande questionamento é sobre qual linha vira com a segunda votação, uma mais à esquerda puxada por Malema que já foi líder da juventude do CNA no passado, rompeu e fundou seu próprio partido, ou a linha liberal da minoria branca do DA, que coaduna com as ideias do ocidente”.

As eleições atuais são descritas como as mais incertas e nebulosas dos últimos tempos. “São as eleições mais incertas, mais nebulosas. A gente não sabe o que vai sair como resultado,” admite Flávia.

Independente de quem vencer, seja a coalizão governista ou a oposição, o desânimo entre a população jovem é uma preocupação constante. “Ainda que continue a coalizão governista ou que venha essa oposição, esse desalento vai continuar,” alerta.

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