Brasil Paralelo mira licenciatura para formar novos professores

Empresa se baseia em teorias ultrapassadas e é amplamente criticada por historiadores por suas narrativas conservadoras e revisionistas

O monarquista e bolsonarista, Rafael Nogueira, é coordenador e também professor nos cursos da Brasil Paralelo | Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A empresa de entretenimento Brasil Paralelo, conhecida por suas produções de narrativas históricas frequentemente contestadas por historiadores profissionais, virou notícia na última semana por conta de duas situações diversas. Uma delas foi a repercussão de uma postagem no Instagram feita pela CEO e cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, na qual a empresária agradecia pelo convite que receberá para o evento “We Who Wrestle With God”, palestra do psicólogo canadense Jordan Peterson, autor conhecido por suas posições conservadoras. No post, Junqueira agradece o convite e marca o perfil de Peterson, além dos perfis da Brasil Paralelo e da Fronteiras do Pensamento, respectivamente apoiadora e organizadora do evento.

A empresária postou o convite como story no Instagram. A publicação ficou disponível tempo suficiente para gerar diversas mensagens críticas de correntistas do Nubank que ameaçaram cancelar suas contas, alegando relação entre o banco e a empresa. Uma dessas mensagens dizia: “Olha, se você tá no @nubank pensa se deve realmente usufruir deste serviço… CEO da Nubank divulgando evento do Brasil Paralelo é bizarro e nojento”. Outras mensagens explicavam o procedimento para o cancelamento da conta. A repercussão negativa foi grande o suficiente para que o Nubank emitisse nota afirmando ter um comportamento “apartidário” e não se associar a “movimentos políticos, religiosos ou ideológicos”.

A outra situação envolvendo a Brasil Paralelo foi a publicação de uma reportagem da Agência Pública mostrando como a empresa de entretenimento ligada à extrema direita vem agora investindo no ensino superior EAD, na formação de professores. O curso a distância (EAD) de licenciatura em história do Centro Universitário Ítalo Brasileiro, aprovado pelo MEC durante o governo Bolsonaro, funciona em parceria com a Brasil Paralelo e é coordenado pelo bolsonarista e monarquista Rafael Nogueira, que foi presidente da Biblioteca Nacional em 2019 e 2020.

Amanda Audi, jornalista da Agência Pública, matriculou-se no curso para fazer a reportagem. Ela explica que a ligação da universidade com a produtora de conteúdo conservador/reacionário chegou a ser anunciada na página que divulgava o vestibular (sendo posteriormente retirada por conta da repercussão da reportagem): “Somando-se ao cenário da educação brasileira e a real necessidade de educadores competentes e comprometidos em prol da qualidade da educação, a Brasil Paralelo, em parceria com o Centro Universitário Ítalo Brasileiro, oferece o vestibular especial de licenciatura em História”, dizia o texto, juntamente à logo da Brasil Paralelo.  

Ainda de acordo com a reportagem, a visão reacionária da produtora de conteúdo faz parte da base curricular do curso, que se propõe a “não omitir a versão cristã da História”, e alguns dos professores são diretamente ligados à Brasil Paralelo. O conteúdo das aulas é muito parecido com as produções da empresa. Por ter uma “visão cristã”, o curso defende, por exemplo, a atuação dos jesuítas contra indígenas, que os reis eram enviados divinos e as Cruzadas promovidas pela Igreja Católica foram algo necessário. Quem conclui o curso está apto a dar aulas de história para estudantes da educação infantil e ensinos fundamental e médio.

Para se matricular no curso do Centro Universitário Ítalo Brasileiro, Amanda Audi conta que só precisou escrever dois parágrafos sobre um tema proposto – “consequências da pandemia” –, coisa que ela fez usando o ChatGPT. Já o coordenador do curso, Rafael Nogueira, além de monarquista e bolsonarista, é também professor em cursos da Brasil Paralelo e discípulo do falecido ideólogo Olavo de Carvalho, de quem decorre o termo “olavismo”, um arremedo de teorias anticomunistas e reacionárias que inclui grande aversão às universidades, à mídia, à classe artística e à esquerda de um modo geral. O olavismo e a Brasil Paralelo possuem clara interseção de conteúdos e ideias e dão lastro ideológico ao bolsonarismo.

Seguindo os padrões dos docentes do curso, Lucas Ribeiro Fernandes, professor da disciplina Brasil Colonial 1, se diz um fã da monarquia brasileira, especialmente da princesa Isabel. O conteúdo de sua matéria, em vez de mencionar o genocídio e a escravidão de povos indígenas, elogia os jesuítas, que tentavam “garantir que aqueles povos, que até então viveram encobertos do resto do mundo, pudessem acessar as verdades eternas como qualquer europeu”.

A polêmica parceria entre a Brasil Paralelo e a instituição de ensino superior vem à tona em um momento delicado para o setor. No início deste mês, o MEC suspendeu a criação de cursos EAD até março de 2025. Segundo o ministério, a decisão é parte do processo de revisão do marco regulatório da educação a distância (EAD), cujo objetivo é garantir a sustentabilidade e a qualidade dos cursos de graduação oferecidos. No mês passado, o MEC já havia definido que cursos EAD para formação de professores – caso do curso de história do Centro Universitário Ítalo Brasileiro – devem ter metade de carga horária presencial.

O empreendimento empresarial e sua relação com a educação e governos

A Brasil Paralelo foi criada em 2016 por estudantes de Porto Alegre ligados à área de administração da Escola Superior de Propaganda e Marketing, uma das universidades privadas mais caras do Brasil (a mensalidade do curso de administração na unidade de Porto Alegre está em R$ 6.057,00). Sua criação se deu no contexto da ascensão da onda conservadora e reacionária no país. A empresa teve enorme crescimento durante o governo Bolsonaro. Em 2020, com apenas quatro anos de existência, a Brasil Paralelo já faturava R$ 30 milhões anuais, um crescimento de 355% em relação ao ano anterior.

Ao longo de sua trajetória, o empreendimento ampliou sua produção, como com a criação da plataforma de streaming BP Select, além de iniciativas no setor educacional, como a parceria com o Centro Universitário Ítalo Brasileiro na curadoria do curso responsável por formar professores. A produtora anunciou que pretende financiar cursos de história, geografia e ciências sociais para estudantes de baixa renda e assim “formar a próxima geração de professores” do país.

Desse modo, a Brasil Paralelo vai ampliando suas investidas no setor educacional, como forma de inserir entre alunos e futuros docentes seus conteúdos revisionistas ideológicos, negacionistas e conspiracionistas. Por ser um lastro ideológico da extrema direita, suas produções por vezes são adotadas como parte do conteúdo educativo oficial ligados a governos identificados com tal campo do espectro político. No mês passado, a Procuradoria-Geral de Justiça foi acionada por conta da Secretaria de Educação de São Paulo, do governo Tarcísio de Freitas, estar usando conteúdo do canal da Brasil Paralelo como fonte para o material didático digital enviado às escolas estaduais. Em 2019, durante o governo Bolsonaro, a TV Escola, ligada ao MEC, exibiu documentários da Brasil Paralelo. Um episódio inclusive trazia entrevista de Olavo de Carvalho.

Marketing, teoria conspiratória e negacionismos

A Brasil Paralelo dissemina um conteúdo com narrativas históricas amplamente criticado por historiadores devido a vários problemas. Além de a empresa investir muito mais em divulgação do que em pesquisa histórica propriamente dita, geralmente imitando o formato de produções de divulgação científica, com falas de especialistas (e não caberia aqui a discussão sobre em que medida as personalidades entrevistadas são ou não especialistas nos assuntos em que se propõem a falar), fazendo jus ao seu próprio nome, seu conteúdo frequentemente é vendido como uma alternativa à produção acadêmica convencional na área de história, como um tipo de “verdade paralela”. Algo que “o seu professor está escondendo de você”. Algo que “eles não querem que você saiba”.

Desse modo, a Brasil Paralelo inclui em seu conteúdo um apelo de marketing muito semelhante ao de teorias conspiratórias: uma verdade que está sendo revelada e que fará daquele que a receber uma pessoa mais esperta que a média, livre das amarras de algum tipo de dominação e manipulação cultural. É um apelo de marketing que encontra ampla adesão não somente naqueles que possuem alguma identificação com ideias conservadoras e reacionárias, mas em um contingente enorme de pessoas que se sentem excluídas de oportunidades na sociedade, inclusive na área da educação, e por isso convenientemente acreditam que ao assistirem alguns poucos vídeos da produtora já “sabem mais que o professor”.

O mesmo modus operandi vale também para a filosofia e ciências humanas e sociais em geral. Mas não somente. A produtora chamou a atenção por conta de conteúdos negacionistas na ocasião da pandemia de coronavírus e também em relação às mudanças climáticas. Esse ponto veio à tona com as enchentes do Rio Grande do Sul, já que Ricardo Gomes, do PL, partido de Jair Bolsonaro, é vice-prefeito de Porto Alegre e também professor e apresentador da Brasil Paralelo. Gomes chegou a usar um boné da Brasil Paralelo em uma transmissão ao vivo durante o trabalho de resgate de vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Os conteúdos da empresa questionam que as emergências climáticas estejam diretamente relacionadas às atividades humanas, sobretudo ao aquecimento global impulsionado pela queima de combustíveis fósseis.

Guerras culturais, marxismo cultural e historiografia ultrapassada

É preciso entender a Brasil Paralelo e seu apelo de marketing conspiracionista dentro do contexto das guerras culturais. É no meio delas, alimentando-as e sendo alimentada por elas, que a empresa opera e produz seu conteúdo. O termo “guerras culturais” refere-se aos conflitos sociopolíticos e culturais de uma sociedade profundamente segregada, fragmentada. A expressão começou a ser usada nos Estados Unidos do pós-Segunda Guerra Mundial e ganhou força principalmente a partir dos anos de 1980. No Brasil, as guerras culturais tiveram seus contornos melhor definidos com a popularização da internet e das redes sociais. Após a irrupção da onda conservadora a partir de 2013, a engrenagem que move e é movida pela Brasil Paralelo estava preparada. 

Dentro do contexto das guerras culturais, a Brasil Paralelo opera principalmente com a ideia de “marxismo cultural”, um tipo de teoria conspiratória fruto de leituras distorcidas de teóricos como Antonio Gramsci e Herbert Marcuse. Cada um desses pensadores, a sua maneira, falou sobre a necessidade e importância da conquista de corações e mentes no cenário político-cultural. O problema é que aqueles que acreditam na ideia de marxismo cultural acham que há uma ação orquestrada da esquerda junto à mídia, às universidades, às artes, à educação e à ciência em geral para dominar essas áreas e instrumentalizá-las para algum tipo de plano de manipulação das massas. Daí o marketing apelativo da Brasil Paralelo sobre seu conteúdo ser uma forma de libertação e de saber mais do que o professor.

Para abordarmos outros problemas do conteúdo da Brasil Paralelo precisamos entrar em aspectos mais técnicos de historiografia. Primeiramente, cabe fazer uma ressalva sobre o revisionismo. Ele costuma ser importante para o desenvolvimento da ciência histórica. Em ciência, de uma forma mais abrangente, na medida em que fontes e fatos novos surgem e refutam ou contestam antigas teorias, essas antigas teorias vão sendo deixadas de lado e novas teorias começam a ser elaboradas. A verdade da ciência é circunscrita ao tempo. Ela é uma verdade em seu tempo. Ou seja, um apontamento científico atual pode contrariar algo que já se entendeu como verdade há décadas atrás, mas esse mesmo apontamento científico atual pode ser refutado daqui a algumas décadas, na medida em que fatos novos surgem (costumo dizer que a ciência é a verdade que se tem pra hoje. Dito assim pode parecer pouco, mas isso é muita coisa!).

Na ciência histórica, o revisionismo faz esse trabalho de comparação entre antigas e novas teorias. Trabalho amparado por novos fatos e fontes. Só que isso é diferente do revisionismo político-ideológico da Brasil Paralelo, que não se baseia em novos fatos e fontes. Pelo contrário, trata-se de um arremedo requentado com base em uma historiografia antiga e ultrapassada. Chega a ser irônico, pois o revisionismo traz em si uma ideia de novidade, mas o que a produtora faz tem muita cara de século retrasado.

A historiografia do século 19 estava preocupada em consolidar a história como ciência e assim distingui-la da literatura. Eram tempos de escolas como o historicismo, o positivismo e a escola metódica. Aliás, o positivismo influenciou muito da ciência e filosofia daquele século. Para aqueles historiadores, a fonte primordial de pesquisa eram os documentos oficiais (e isso fazia sentido, naquele contexto cultural, para firmar a história enquanto ciência). Se por um lado historiadores e escolas historiográficas do século 19 foram fundamentais para criar um status de cientificidade à história, por outro, a grande valorização de documentos e acervos oficiais levou à escrita de uma história oficialesca, feita de cima para baixo. Afinal, quando ouvimos que “a história é escrita pelos vencedores”, em boa medida trata-se desse tipo de historiografia: se a prioridade são os documentos oficiais, esses documentos, por sua vez, quase que em sua totalidade são produzidos pelas instituições oficiais, que, do mesmo modo, quase que em sua totalidade são comandadas pelas elites dirigentes.

Portanto, por conta do tipo de fonte e da forma de pesquisa, essa história será principalmente uma história das elites. Dela decorre a construção das figuras de grandes heróis nacionais e seus grandes feitos. Essa história foi fundamental também para a formação das memórias oficiais dos estados nacionais. Entretanto, ao longo do século 20, outras escolas historiográficas e novas formas de pesquisa foram ganhando força, juntamente com a valorização de uma diversidade maior de fontes. Isso possibilitou o crescimento de uma historiografia mais plural e menos oficialesca. Mas apesar de um século de desenvolvimento da historiografia, as narrativas históricas da Brasil Paralelo refletem um jeito ultrapassado de se fazer história, por vezes defendendo teorias já refutadas.

Um bom exemplo é o que a produtora divulga a respeito da ditadura militar, tratando o golpe como um tipo de mal necessário para impedir que um regime comunista se instaurasse no Brasil. Só que essa era a narrativa dos golpistas e dos ditadores, como forma de legitimarem seu poder. Era a narrativa oficial do poder. Não cabe mais defende-la hoje em dia, após tantos arquivos que já foram abertos sobre a ditadura desde o fim do regime militar. Até arqueologia histórica em antigas sedes de órgãos de repressão foi e continua sendo feita. São muitas provas que se avolumam. Enfim, novos fatos e fontes que refutam teorias antigas. Mas a Brasil Paralelo, que investe pouco em pesquisa e muito em marketing e divulgação, ignora tudo isso. 

“Eles [a Brasil Paralelo] reabilitam uma historiografia hegemônica no século 19, que já foi superada por novas perspectivas – que por sua vez são deixadas de lado ou reduzidas a caricaturas,” diz o professor e historiador Murilo Cleto, que fez a sua tese de doutorado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) sobre o revisionismo histórico da Brasil Paralelo [1]. “Muitos fãs da empresa Brasil Paralelo devem ter uma gravura do Varnhagen junto com outra do Olavo de Carvalho na parede da casa”, diz o professor e historiador Fernando Nicolazzi, ao se referir ao historiador do século 19 e sua história bastante conservadora [2]. Francisco Adolfo de Varnhagen foi uma espécie de historiador oficial do império, anti-indigenista e de pouco apreço pelos africanos.

Outro exemplo interessante diz respeito à escravidão. Pessoas com um pouco mais de idade aprenderam sobre escravidão nos tempos da escola com um certo protagonismo da princesa Isabel, reflexo de uma história oficialesca, centrada na figura de grandes heróis (geralmente representantes da elite) e que foi valorizada pela ditadura militar. A partir de uma nova historiografia e novas fontes, que chegaram aos livros didáticos nos últimos anos (vale destacar que novas correntes historiográficas levam um certo tempo até chegarem aos livros didáticos do ensino básico), outros protagonistas ganharam força, como Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Protagonistas de baixo para cima. Mas a Brasil Paralelo não se interessa muito por eles, porque, no fundo, quer uma narrativa histórica elitista, para dar lastro ideológico a um projeto político elitista.

Não à toa, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares na gestão bolsonarista, quis mudar o nome da instituição para “Fundação Princesa Isabel”. A intenção, mais do que revalorizar uma figura aristocrática da história do Brasil (e aqui não estamos negando o valor desta ou de outra figura) é também resgatar uma história aristocrática, de cima para baixo, dos vencedores, apagando ou reduzindo bastante as lutas e os personagens populares. A assinatura de um documento oficial como a Lei Áurea não dá conta de protagonizar uma luta de tantos anos como a da abolição. Apenas na cabeça daqueles inspirados por uma história oficialesca.

A Brasil Paralelo difunde uma visão decadentista de mundo, típica do reacionarismo, que idealiza e romantiza o passado. Essa visão pode ser percebida até em obras que se distanciam da história do Brasil como tema principal e falam sobre cultura, cinema etc. Um exemplo é o documentário “O fim da beleza”. Uma ideia central dessa e outras obras pode se resumir na manjada frase “antigamente é que era bom”, que sempre ouvimos por aí. Essa visão decadentista vai encontrar em uma historiografia ultrapassada e em um conjunto limitado de fontes algum refúgio e alguma viabilidade para fortalecer narrativas históricas dos vencedores e das elites. Se fosse uma unidade hospitalar, a Brasil Paralelo talvez estivesse promovendo sangrias nos pacientes para reequilibrar os quatro humores (bile negra, catarro, bile amarela e sangue), prática com origens na Antiguidade e que foi usada até o século 19. A medicina já deixou isso para trás, mas a Brasil Paralelo talvez repaginasse o procedimento, disfarçando-o de novidade rebelde, insurgente, esperta e fora da caixa.    

Referências:

[1]

https://apublica.org/2024/06/coordenado-por-monarquista-curso-ligado-a-brasil-paralelo-forma-professores-de-historia/

[2]

https://www.youtube.com/watch?v=HhYGfT5SKfc&t=597s

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