Folha tem oportunidade de se responsabilizar e reparar apoio à ditadura
Implicação judicial comprova que o Grupo Folha colaborou com a violência da ditadura. Agora, surge a oportunidade histórica (e recusa) de reconhecer os erros e reparar os danos causados à democracia.
Publicado 28/04/2025 18:25 | Editado 28/04/2025 22:32

A história do Grupo Folha durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) revela um capítulo obscuro, cuidadosamente omitido de sua narrativa pública. Enquanto a empresa consolidou uma imagem de defensora da democracia durante a abertura política, uma investigação minuciosa expõe como o grupo não apenas colaborou com a repressão, mas também lucrou com ela — e, desde então, trabalhou para apagar essas marcas de sua memória institucional.
O Portal Vermelho entrevistou a professora de Comunicação Flora Daemon, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que destacou a oportunidade que a empresa tem de assumir suas responsabilidades (assim como fez o The Guardian), reparar os erros graves cometidos e seguir uma nova trajetória comprometida com novos valores. Em vez disso, tem sido a defensora de uma suposta “ditadura branda”, vocalizadora de personalidades como Jair Bolsonaro e seus ataques à democracia e silenciadora da investigação e suas provas contundentes da violenta colaboração com a repressão militar. (Leia ao final trechos da entrevista da pesquisadora)

Durante dois anos, a equipe coordenada por Ana Paula Goulart Ribeiro (UFRJ), e composta por Flora Daemon (UFRRJ), Amanda Romanelli (PUC-SP), André Bonsanto Dias (UEM), Joëlle Rouchou (Fundação Casa de Rui Barbosa) e Lucas Pedretti (UERJ) aprofundou as investigações sobre denúncias levantadas no âmbito da Comissão Nacional da Verdade. A pesquisa resultou em um inquérito aberto pelo Ministério Público Federal, na série documental Folha Corrida, além do livro A Serviço da Repressão: Grupo Folha e Violações de Direitos na Ditadura (Editora Mórula), já nas livrarias. A série teve a estreia do seu primeiro episódio neste domingo (27) na plataforma do ICL.
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Colaboração sistêmica e apagamento da memória
Documentos inéditos, depoimentos de agentes da repressão e relatos de vítimas revelam que a Folha emprestava carros de distribuição de jornais ao DOI-Codi e ao Dops, usados em prisões, torturas e até assassinatos, como o da emboscada da Rua João Moura (SP). Além disso, policiais ligados ao delegado Sérgio Fleury, símbolo da violência do regime, tinham acesso privilegiado às redações do grupo, atuando como espiões e intimidando jornalistas.
A Folha também se beneficiou economicamente do contexto ditatorial. A “preços módicos”, adquiriu empresas como a Última Hora e a TV Excelsior, sufocadas politicamente, e recebeu recursos da Usaid — agência norte-americana vinculada à estratégia anticomunista — para modernizar sua estrutura gráfica. Enquanto isso, jornalistas da casa eram perseguidos, demitidos por “abandono de emprego” durante prisões ou expostos em reportagens que divulgavam seus dados pessoais, facilitando sua vulnerabilidade.
Apesar dessas evidências, a Folha construiu uma narrativa de “jornal da abertura democrática”, apagando seu papel anterior. “Eles dançavam conforme a música”, afirma Daemon, referindo-se à estratégia de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, fundadores do grupo, que adaptaram o discurso conforme os ventos políticos.
A batalha na Justiça e a oportunidade de reparação
Em 2024, a pesquisa de Daemon — compilada no livro A Serviço da Repressão e na série documental Folha Corrida — subsidiou um inquérito do Ministério Público Federal (MPF) que investiga o grupo. A Folha, hoje, responde judicialmente, podendo seguir caminhos como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), modelo adotado pela Volkswagen em 2021 após ser condenada por colaborar com a repressão.
Para Daemon, esse é um momento crucial: “A Folha tem a chance de reconhecer seu passado, como fez o The Guardian ao reparar danos ligados à escravidão. Ela pode ser pioneira em transparência no Brasil”. No entanto, até agora, a empresa mantém silêncio sobre as acusações, limitando-se a afirmar que “tudo já foi dito em publicações históricas”.
O papel da memória e da sociedade
A professora ressalta que a responsabilização não apaga os méritos do jornal, mas é essencial para evitar a repetição de eufemismos como “ditabranda”. “A sociedade precisa saber que a Folha não foi apenas conivente, mas parte ativa da repressão”, destaca. O documentário Folha Corrida , com depoimentos inéditos de mais de 40 fontes, busca justamente disputar essa memória.
Enquanto a justiça avança em sigilo, a pressão pública será determinante. “Se a Folha assumir sua história, abre-se um precedente para outras empresas. Se não, perpetua-se a impunidade”, conclui Daemon. A resposta do grupo, agora, definirá não apenas seu legado, mas o compromisso do Brasil com a verdade.
Leia a entrevista:
Vermelho: Qual era a tarefa da equipe de pesquisa, exatamente?
Flora Daemon: A partir da orientação do Ministério Público Federal, a ideia era fazer uma investigação de caráter mais incisivo, buscando evidências, provas, indícios, por meio de técnicas de jornalismo investigativo, técnicas de pesquisa, de história oral, cruzando várias metodologias. E o propósito disso tudo era subsidiar um eventual inquérito do Ministério Público Federal. Então, ao longo de dois anos, a gente investigou o Grupo Folha e, ao final desse processo, a gente destinou esse relatório robusto para o MPF, que avaliou e entendeu que havia o suficiente para conformar o inquérito. Então hoje a Folha está sendo implicada na justiça a partir da nossa investigação.
A gente está falando de um grupo de comunicação muito poderoso, que tem um histórico importante na sociedade brasileira e que conseguiu reposicionar a sua imagem de maneira muito eficiente. Quando a gente fala sobre ditadura, imprensa e meios de comunicação, as pessoas dificilmente pensam em Folha de São Paulo. É impressionante como a Folha não aparece no imaginário social. Seria importante também a gente fazer com que a sociedade conhecesse essa história a fundo, disputando as memórias por meio do audiovisual. Assim, desde o primeiro momento, gravamos todos os depoimentos de todas as mais de quarenta fontes, para constituir um documentário.
Vermelho: Esse projeto faz parte de uma coisa maior, que envolve a indenização da Volkswagen. E aí eu queria que você situasse a pesquisa dentro desse esquema maior.
Flora Daemon: A gente tem um movimento muito único na história do Brasil. A Volkswagen foi implicada na justiça por conta da sua colaboração efetiva e perseguição a funcionários durante a ditadura. E essa é uma luta antiga dos trabalhadores vitimados, que com muito esforço conseguiram implicar a Volkswagen na justiça depois de um trabalho extenuante por parte dos trabalhadores, já que a gente teve um processo de anistia aos colaboradores da repressão que prejudicou bastante a forma de responsabilização da sociedade civil e fundamentalmente dos empresários que colaboraram com a ditadura. Nesse processo da Volkswagen, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta, quando a própria empresa assume a sua responsabilidade. Não é uma condenação, mas também não é uma absolvição, mas um caminho do meio em que há uma negociação por parte do MPF com alguns efeitos reparatórios bem objetivos, A gente teve indenização aos trabalhadores vitimados, aqueles que foram concretamente perseguidos no chão de fábrica.
Uma parte desses recursos foi destinado para a identificação das ossadas da vala clandestina de Perus, em São Paulo. Uma outra parte foi destinado para montagem de um memorial dos advogados que lutaram pela democracia durante a ditadura. Uma parte menor foi destinada para investigação de outras 13 empresas que já tinham muitos indícios de colaboração com a ditadura, no âmbito da Comissão Nacional da Verdade. E o Grupo Folha é a única empresa do ramo da comunicação a ser investigada nessa primeira leva de investigações. Nossa expectativa é que, com a implicação de diversas empresas na justiça, possa-se fazer com essas empresas o mesmo que aconteceu com a Volkswagen: condenação, assinatura de TAC para financiar novas investigações sobre novas empresas, pois sabemos que não cessam nessas primeiras 13 empresas.
Vermelho: Qual é o perfil dessas demais empresas?
Flora Daemon: A única da comunicação é o Grupo Folha. Tem a CSN [Companhia Siderúrgica Nacional], a Petrobras, a Fiat, a Cobrasma [Companhia Brasileira de Material Ferroviário], a Josapar, que produz o arroz Tio João, Companhia Docas de Santos, Paranapanema, Aracruz, Mannesmann, Itaipu Binacional, Embraer, Belgo-Mineira, empresas públicas e privadas, que estão ativas ou não, com muitos indícios de colaboração com a repressão, que vitimaram pessoas de origens distintas, como população quilombola, indígena, urbana, rural, e os tipos de violações são muito distintos, também.
Vermelho: E como que se desenvolveu a metodologia da pesquisa, professora? Porque tem o envolvimento de várias instituições, pelo que eu vi.
Flora Daemon: Somos historiadores, ou sociólogos, ou jornalistas. A gente sempre ouviu falar sobre a questão do empréstimo de carros de distribuição de jornais da Folha de S.Paulo à repressão, mas efetivamente não tinha-se nada muito contundente que comprovasse. Um destaque importante é o depoimento de um agente da inteligência do DOI-Codi de São Paulo, que pela primeira vez na história, confirma e explica como era o modus operandi dessa solicitação da entrega e devolução do carro. O que coloca a Folha de S.Paulo numa situação mais delicada, para além do depoimento das vítimas ou das testemunhas. Agora a gente tem depoimentos cruzados em várias frentes: pessoas que foram presas a partir de ações que contavam com o carro da Folha de S.Paulo, testemunhas que viram o carro da Folha de São Paulo estacionado dentro da Operação Bandeirantes, pessoas que viram carros da Folha de S.Paulo serem usados por agentes do Dops para assassinar pessoas, como no caso da emboscada da rua João Moura, em São Paulo, e agora pessoas da própria repressão, da estrutura da ditadura, confirmando que esse empréstimo se dava de maneira inquestionável. Então, a Folha de S.Paulo agora tem que responder de maneira um pouco mais incisiva isso que parecia ser algo mais difuso, ou não tão comprovado assim.
E tem outras denúncias muito contundentes, com documentos e testemunhos sobre a presença de policiais dentro da Folha da Tarde, um jornal mais progressista, mais arejado, com jornalistas mais à esquerda, que tinha uma ligação com o movimento estudantil, com o movimento sindical, etc, e vira um jornal mais sangrento, mais explicitamente a favor da repressão. Nessa virada da Folha da Tarde, há uma presença massiva de policiais sendo distribuídos nessa redação. Só que a gente começa a perceber que não foi só na Folha da Tarde. Havia policiais distribuídos em todas as redações do grupo, em outros setores estratégicos da empresa, desde portaria, segurança e até vinculados à direção do jornal, ao gabinete de Octavio Frias de Oliveira. Esse é o caso, por exemplo, de dois importantes delegados do Dops, do grupo do delegado Sérgio Fleury, que são os irmãos Quass, — Robert Quass e Edward Quass —, que eram contratados com ficha funcional. A gente teve acesso a essas fichas funcionais. Esses delegados tinham sala, telefone, amplo acesso aos demais funcionários da casa e à estrutura da empresa. Isso demonstra que a Folha da Tarde não foi o patinho feio do grupo. A gente está falando de uma estrutura que virou um aparato repressivo do Estado.
Vermelho: Como vocês conseguiram essas informações? Você falou em documentos que comprovam isso.
Flora Daemon: A gente já sabia dessa história do Robert Quass e do Edward Quass, esses dois delegados do Dops. A gente precisava comprovar que eles eram funcionários efetivos da empresa. A gente conseguiu solicitar via MPF centenas de documentos para o Grupo Folha. A gente pediu centenas, eles deram dezenas. Dentre elas, essas fichas funcionais. Algumas eles se negaram a apresentar, disseram que não tinham, ou se perdeu, ou nunca justificaram. Mas algumas bastante importantes apareceram. Só pra se ter ideia da magnitude, um desses delegados veio a ser o interrogador de uma jornalista que trabalhava no jornal Notícias Populares. Ele era colega de trabalho dela e interrogador desta mesma jornalista. A gente sabe que esses policiais também faziam papel de monitoramento dos jornalistas. Não à toa, muitos jornalistas do Grupo Folha foram presos, perseguidos internamente, desde não conseguirem retomar os seus empregos após saírem da prisão e fundamentalmente vários deles foram demitidos por abandono de emprego quando estavam em situação de encarceramento. Veja, como é que alguém pode ter abandonado o emprego se estava presa? Mas a Folha poderia não saber que essa pessoa estava presa. A gente conseguiu encontrar reportagens dentro dos próprios jornais do Grupo Folha que não só mencionavam essas prisões, como faziam um escrutínio da vida pessoal dos próprios jornalistas da casa, dando nome completo, do pai, da mãe, telefone e endereço. Isso publicado nas páginas dos jornais, fragilizando inclusive a situação de segurança dessas pessoas. Então alegar que não se sabia que seus funcionários estavam presos, é absolutamente inviável em função da publicação dessas reportagens. Este é o caso da Rose Nogueira, que teve a ficha funcional adulterada. Disseram que ela tinha abandonado o emprego, sendo que ela estava em licença maternidade, e não poderia ser demitida.
Vermelho: Como se concretizou a denúncia de que a Folha fornecia carros para a repressão?
Flora Daemon: O que a gente fez foi buscar encontrar documentos, depoimentos, checar essas informações, porque a gente sabe que nesse terreno da memória e da história há sempre uma delicadeza, então a gente cruza os depoimentos, a gente faz a verificação disso tudo e, fundamentalmente, a gente traz documentos e depoimentos inéditos de pessoas que nunca falaram sobre isso. Na própria biografia do Octavio Frias de Oliveira o seu filho, o Otavinho fala: “Eu conversei com meu pai e me parece que era isso mesmo: a Folha teria emprestado carros à repressão, mas sem anuência e sem o conhecimento do meu pai e do Caldeira”. Essa é a justificativa dele. A revelação do empréstimo, então, não é novidade. Agora, o que a gente consegue caracterizar muito bem na nossa investigação é que tinha anuência, tinha conhecimento de ambos os dirigentes e que a Folha extrapolou em muitos níveis o grau de colaboracionismo. Foi empréstimo de carros, perseguição a jornalistas, utilização daquele prédio da (Rua) Barão de Limeira como um lugar para extorsão de militantes. Ali dentro funcionava o esquema de extorsão e, fundamentalmente, também a obtenção de benefícios econômicos.
A gente está falando de dois dirigentes de jornal que não tinham tradição no ramo da comunicação, enveredam pra essa área justamente pra ganhar prestígio e poder e pra também obter vantagens econômicas. Isso é inquestionável. Eles deixam de ser dirigentes de um jornal deficitário e viram um grande conglomerado de comunicação.
Vermelho: Isso teria sido uma forma de materializar essa relação promíscua entre o grupo de comunicação e o governo militar? Esse avanço econômico seria uma forma de entender isso, não?
Flora Daemon: Exatamente. Uma das formas de fazer esse tipo de investigação é aquela clássica pra nós, jornalistas, que é seguir o dinheiro. É inquestionável como, por exemplo, o Grupo Folha conseguiu obter vantagens na aquisição de empreendimentos jornalísticos que estavam estrangulados pelo contexto político. A exemplo do que aconteceu com o jornal Última Hora, do Samuel Weiner. Ele não vende o jornal pro Grupo Folha porque ele não estava conseguindo fazer a gestão, porque ele não tinha competência no ramo. Mas porque ele foi o único grande jornal que não apoiou o golpe. Isso fez dele uma vítima direta da ditadura. Sufocado, ele se viu sem opção e vendeu, a preços módicos, a Última Hora para o Octavio Frias de Oliveira e Carlos Cadeira Filho. A mesma coisa acontece, por exemplo, com outra empresa, a TV Excelsior, que também se viu naquela situação de estrangulamento em função do contexto político. E nessa, o grupo Folha vai adquirindo várias empresas, vai virando gestor, por exemplo, da Gazeta, compra a companhia litográfica Ipiranga a preços módicos também, que era uma grande estratégia naquele momento por conta da questão gráfica e de papel. Obviamente, não tem almoço grátis. Tem que dar alguma coisa em troca. Eu falo, hoje, sem receio de sustentar, que a Folha é de longe o grupo de comunicação que mais apoiou escandalosamente a ditadura. Não dá pra comparar com nenhuma outra empresa do ramo.
Vermelho: Teve algum registro de recursos governamentais diretos?
Flora Daemon: A gente pode mapear algumas coisas. Por exemplo, teve recursos da Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). A Folha de S.Paulo chega a celebrar em suas páginas o fato de ser a primeira empresa brasileira a receber recursos da Usaid. Eles recebem esses recursos justamente para aquisição de maquinário. A Usaid era um braço dos Estados Unidos com objetivos de interferência política nos países que estavam sob regimes delicados, digamos assim. Então, quando os Estados Unidos resolvem injetar recursos financeiros no jornal Folha de S.Paulo e não no Globo, e não no Estadão, e não no JB, isso deve ser digno de observação. Isso faz da Folha um jornal que moderniza o seu parque gráfico de um modo inacreditável. Compram essas máquinas caríssimas de offset que não tinha aqui; chegam de navio da Alemanha, se não me engano; tem que ter guindaste pra colocar; tem que repavimentar o chão porque elas são muito pesadas. Então, eles vão para um patamar muito alto. Evidentemente, isso também acende essa luz amarela. A gente também encontra outros documentos dos Estados Unidos, inclusive, que falam explicitamente que o Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, do Grupo Folha, estavam numa relação de proximidade com o governo americano.
Vermelho: Diante de tudo que vocês já sabiam, você conseguiria dizer, o que foram grandes surpresas que vocês tiveram durante o processo?
Flora Daemon: Eu acho que a grande surpresa é que a gente consegue comprovar algo que a Folha buscou esconder e conseguiu durante muito tempo. A Folha é muito mais associada à abertura política, à campanha das Diretas, do que efetivamente ao seu trabalho de colaboração inequívoca com a repressão. Então, essa sistematização comprovada do empréstimo de carros de distribuição de jornais ao DOI-Codi, a sistematização de que o prédio da Barão de Limeira funcionava também como local de extorsão dos famílias dos militantes que estavam presos, sendo torturados; e para deixar a prisão, tinham que pagar quantias extremamente altas. Eu estou falando de quantias no montante de um apartamento. Isso tudo funcionava dentro do prédio da Folha. A gente está falando de perseguição de jornalistas, a gente está falando de episódios como a emboscada da Rua João Moura, em que três pessoas foram assassinadas.
A gente consegue situar que um carro de entrega de jornais da Folha foi utilizado não só em prisão, como é o caso do Adriano Diogo, a gente está falando também de mortes. A gente sabe que tem outras dezenas e centenas de episódios de pessoas desaparecidas que não podem contar. Pessoas que foram torturadas, mas que não viram que tinha um carro da Folha ou que não resistiram pra contar. Então a gente está falando, aqui, que a gente está conseguindo caracterizar uma cumplicidade num nível bastante orgânico, que a Folha de S.Paulo provavelmente não esperava que chegasse ao grande público.
Com a nossa investigação, que hoje subsidiou o inquérito, a Folha responde na Justiça investigada pelo MPF e também pelo nosso livro e pela série Folha Corrida, que vai estrear no dia 27 de abril. A gente está falando de uma empresa jornalística, que deveria dar sustentação à democracia. É uma triste ironia que seja justamente um grupo de jornais que tem esse alinhamento tão profundo e incontestável com a engrenagem repressiva.
Vermelho: Você mencionou um policial militar, durante os depoimentos. Houve outros?
Flora Daemon: A gente entrevistou, sim, aqueles que foram bastante contundentes, foi um agente do DOI-Codi de São Paulo, Marival Chaves do Canto, e um outro agente do Dops, Carlos Alberto Augusto. Esses dois deram contribuições bastante importantes para a pesquisa.
Vermelho: A pesquisa adentra o período da redemocratização. O que é marcante para a pesquisa sobre a Folha nesse período, Flora?
Flora Daemon: Quando os dirigentes da Folha começam a perceber que os ventos estão mudando, eles como bons observadores do contexto, e vou usar aqui uma expressão que a gente ouviu de alguns entrevistados, Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho “dançavam conforme a música”. Eles vão tirando algumas figuras chave de cargos de comando, a exemplo de Antônio Aggio Júnior, que era o diretor da Folha da Tarde. Vão mudando o perfil editorial, e conseguem se consolidar no imaginário popular como “o jornal a serviço da democracia”. Não à toa esse é o lema da empresa, e o nosso livro se chama A Serviço da Repressão. A gente não está falando de um apagamento da importância da Folha no processo de abertura, mas fundamentalmente de uma iluminação do que foi a atuação da Folha e de seus dirigentes durante os 21 anos de ditadura.
Vermelho: Professora, eu acho muito curioso que um grupo tão poderoso, que poderia contribuir para a ditadura de diversas formas, — como por exemplo a própria cobertura de imprensa, a linha editorial, ou até de forma financeira, com muito dinheiro, se fosse o caso —, e ela resolve se envolver em logística de repressão, fazendo o trabalho de formiguinha. É uma coisa muito esquisita isso. Vocês conseguem levantar Qual a motivação que leva a Folha a se envolver dessa forma?
Flora Daemon: O Grupo Folha colabora também editorialmente, profundamente, jornalisticamente, editorialmente com a repressão, de maneiras distintas. Cada jornal do grupo tinha um perfil editorial específico. Por exemplo, a gente vê na Folha da Tarde aquelas letras garrafais sangrentas, com manchetes chamando os guerrilheiros de “bando de nazistas vermelhos”. A Folha de S.Paulo era menos explícita.
Pensando nisso que você me perguntou, eu queria citar um documento bastante incontestável sobre esse apoio, no dia 31 de março de 1964, quando a Folha de S.Paulo apresenta a seus leitores um suplemento de mais de 40 páginas chamado “64 Brasil Continua”. Esse suplemento é muito volumoso e apresenta conteúdo jornalístico celebratório da ditadura, cuja capa é um bebezinho representando o Brasil do futuro, que deu certo. Com anunciantes promovendo peças publicitárias específicas para aquele momento. Pra você produzir um suplemento de 40 páginas, fazer chegar na casa das pessoas, fazer chegar nas bancas no dia 31 de março, naquele período que a gente não tinha essa tecnologia toda que a gente tem hoje, diagramação, layout e tal, eles precisariam de semanas, talvez meses de preparação. Não poderia sair nem um dia antes, nem um dia depois, porque você poderia furar os militares. Então, para os dirigentes do grupo garantirem que as pessoas teriam acesso àquela informação no dia 31 de março, certamente eles tinham uma relação de muita proximidade, de conhecimento prévio sobre a data em que se instauraria o golpe militar de 64, porque senão poderia dar um grande problema.
Outra caracterização desse alinhamento é o compromisso financeiro que o Octavio Frias de Oliveira tinha com o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), que era o instituto responsável pela articulação do golpe de 64. Já em 1962, Octavio Frias de Oliveira contribuía financeiramente com o Ipes. A gente tem esse carnê no livro. Não se pode acreditar, por exemplo, na versão que algumas pessoas tentaram sustentar durante muito tempo de que Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho se sentiram pressionados e por isso cederam a repressão. Eles articularam o golpe desde pelo menos 1962, que é justamente a data em que eles estavam adquirindo a Folha de S.Paulo e inaugurando a rodoviária de São Paulo, outro grande escândalo dessa dupla, Frias e Caldeira. Essa rodoviária privada foi feita em cima de um terreno público, com volume de receita absurdo, porque eles recebiam dinheiro das passagens, das lojas e das companhias de ônibus.
Vermelho: Eu sei que é um raciocínio especulativo, mas parece existir um prazer mórbido e sádico em participar dessas operações tão de perto; inclusive ter policiais dentro da redação, interrogatórios, extorsão de famílias desesperadas. Isso me surpreende, porque eles podiam não fazer nada disso, e seria muito mais difícil serem implicados.
Flora Daemon: Pois é, isso é interessante, sim. A gente não pode sustentar, porque seria uma irresponsabilidade da nossa parte, que Octavio Frias de Oliveira e o Carlos Caldeira Filho tinham algum prazer em colaborar com a repressão. Ao contrário, o que a gente tem de informação é que eles faziam isso em nome de prestígio e de dinheiro. Foram falas recorrentes que a gente ouviu de testemunhas. A gente tem um documento do próprio SNI, que é muito interessante, porque eles também eram monitorados pela ditadura. Eles são caracterizados como mercantilistas que fazem tudo por dinheiro. Até onde poderiam ir? Precisa emprestar carros pra perseguir e matar militantes? OK. Precisa contratar policiais que trabalhavam com arma na mesa ameaçando seus colegas? Tudo bem, pode ser. Precisa deixar que esquemas de extorsão aconteçam dentro do prédio da empresa? Ok, vou anuir com isso. Nesse processo, eles iam numa escalada bastante problemática. Mas a gente não tem nenhum tipo de informação da participação dos dois dirigentes em processos de violência, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com um grande amigo de Octavio Frias de Oliveira, que era o diretor do grupo Ultragaz, o dinamarquês Henning Albert Boilesen. Ele participava pessoalmente de processos de tortura e era muito amigo do Frias. Me parece que a caracterização possível ali seria alguma coisa mais de obtenção de vantagens “custe o que custar”.
Vermelho: Como se diferencia a postura da Folha em relação aos outros veículos, professora? A situação da Folha poderia ser comparável, por exemplo, à da Rede Globo?
Flora Daemon: Não estou aqui para defender a Rede Globo, porque ela tem, de fato, uma colaboração com a repressão incontestável. Tem excelentes trabalhos e investigações de vários colegas nossos que já comprovaram isso. Mas, perto da Folha de S.Paulo, a Rede Globo é uma criança e a Folha é adulta. Ela faz uma colaboração que efetivamente gerou mortes de pessoas. A gente está falando de uma estrutura a serviço da repressão. Com exceção da Última Hora, todos os outros grandes jornais do Brasil apoiaram o golpe. Mas, depois de algum tempo, não muito, esses veículos começam a perceber a grande enrascada em que se meteram. Algumas dessas empresas, no entanto, têm clareza de que era isso mesmo que queriam, porque estavam recebendo vantagens. É o caso da Folha que criou a condição para esse contexto acontecer, financiou o golpe, era um apoiador da repressão, sustentava isso editorialmente e dava sustentação material operacional à repressão. Óbvio que as outras empresas de comunicação têm que ser responsabilizadas, mas me parece que foi uma escolha muito acertada o grupo Folha justamente, porque é o caso mais escandaloso de colaboração com a repressão.
O que a Globo fez, que é obter vantagens financeiras, a Folha fez também. Mas a Folha vai além. Só que, toda vez que a gente fala de imprensa, ditadura, a gente lembra da Globo e não lembra da Folha. Isso é resultado de um trabalho muito bem feito para conseguir promover um apagamento da sua atuação. E conseguir fixar na memória da população o seu papel durante a abertura. Isso é digno de nota.
Vermelho: A implicação judicial, então, era um objetivo inicial. Mas o que significa isso exatamente? Existe a possibilidade desse processo não ter encaminhamento?
Flora Daemon: Encaminhamento tem que ter, porque a Unifesp, universidade escolhida para fazer gestão dessas investigações, encaminhou para o Ministério Público Federal. As análises do MPF sobre o volume de documentos considerou que tinha subsídio suficiente para conformar o inquérito. Hoje a Folha é implicada, tem acesso a tudo isso, está fazendo a sua própria defesa, então alguma coisa vai acontecer. São três caminhos possíveis. A Folha pode ser absolvida, a Folha pode ser condenada ou a Folha pode assinar o Termo de Ajustamento de Conduta a exemplo do que fez a Volkswagen do Brasil. É por isso que a gente sabe que tem que disputar em muitos níveis, — na justiça, na memória social —, para que a população também pressione. Porque o inquérito que corre em segredo de justiça acaba ficando um pouco mais inacessível para população. Por isso que a gente fez o livro e o documentário.
Vermelho: Você faz ideia de quais são os crimes que a Folha, o Grupo Folha pode ser acusado?
Flora Daemon: Não faço, a gente não tem acesso ao inquérito, não saberia dizer em que pé isso está. E a informação que eu tenho é que o MPF não está se pronunciando muito porque o processo ocorre em segredo de justiça. Então, nesse sentido, a gente não tem muita ideia.
Vermelho: Professora, qual foi a repercussão para vocês até o momento? Vocês tiveram alguma reação perceptível da empresa?
Flora Daemon: Na verdade, a gente teve uma reação que foi o silêncio. A gente teve várias fases com a Folha. No início, quando a gente comunicou que estava fazendo a investigação, parecia que a gente ia conseguir ter uma reunião, mas essa reunião nunca aconteceu. Depois, com o apoio do Ministério Público Federal, conseguimos ter acesso a alguns documentos solicitados. A gente solicitou centenas e recebeu algumas dezenas. A gente também teve acesso franqueado pela Folha de S.Paulo pra fazer análise de alguns jornais do grupo que eles tinham no seu acervo. Então, alguma relação a gente teve. Agora, quando a gente pediu pra fazer uma entrevista, pra ter o lado deles, tanto pro nosso livro, quanto pra nossa série, a resposta que a gente recebeu por parte do Grupo Folha foi: “tudo que a gente tinha a dizer a respeito deste período foi dito nas publicações ao longo da história da empresa Folha de S.Paulo. A gente não vai mais se pronunciar”. Então, pra gente é muito significativo esse silêncio.
Quando gente implica a Folha nas nossas sustentações, não está querendo com isso dizer que os jornalistas que trabalharam na Folha estavam alinhados com a ditadura. Eu sei que parece uma coisa óbvia, mas é importante ressaltar isso. Era a minoria. E isso também não quer dizer que não há muitos méritos no que a Folha fez durante a ditadura. Tem momentos luminosos. A Folha não é um jornal que deva ser apagado da história, muito pelo contrário. Ponto.
Agora, é importante que se responsabilize por aquele período, pelo que fez. Porque senão a gente vai de novo ficar fadado a ouvir e ler eufemismos como “ditabranda”, uma relativização de golpes. Eu acho que um caso bacana no qual a Folha poderia se inspirar é o caso do jornal britânico The Guardian. O The Guardian financia uma investigação sobre o seu próprio processo histórico e descobre que grande parte do seu desenvolvimento econômico é sustentado por mão de obra de pessoas escravizadas. Faz um mea-culpa, faz um processo de reparação. Estamos falando disso que aconteceu no ano passado, em 2024. É importante que a empresa repare, que reconheça o que fez. Então a Folha tem uma oportunidade excepcional de se pensar o que ela quer ser daqui pra frente. Porque ela não precisa ser um jornal que escamoteia o seu passado. Ela pode ser um jornal que reconhece as atrocidades que cometeu, olha pra frente, pede desculpas e repara os danos que cometeu.