Um brasileiro na China traduz a emergência do gigante asiático na ordem global
Sociólogo radicado na China compartilha reflexões sobre a ascensão chinesa, as relações com o Brasil e o enfrentamento aos desafios da nova ordem mundial.
Publicado 05/06/2025 18:00 | Editado 05/06/2025 19:05

José Medeiros, nascido em Touros, no Rio Grande do Norte, é hoje um dos principais especialistas brasileiros em estudos sobre a China. Radicado no país asiático desde 2007, após aceitar um convite para lecionar português e desenvolver pesquisas em ciência política na Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, Medeiros tornou-se uma ponte entre o Brasil e a China. Hoje, além de professor titular, dirige o Centro de Estudos do Brasil na mesma universidade.
Medeiros traça um paralelo entre o desenvolvimento acelerado da China nos últimos 18 anos e o caminho trilhado pelo Brasil, que, segundo ele, perdeu velocidade enquanto o gigante asiático avançava exponencialmente.
“A China passou à frente. Se fosse uma corrida de maratonistas, ela já deu três voltas no líder anterior. Mas ainda há espaço para o Brasil retomar fôlego e aproveitar essa onda chinesa.”
Ele destaca que a China não é uma ameaça ao projeto nacional brasileiro, mas sim uma oportunidade ímpar de desenvolvimento, especialmente em áreas como infraestrutura, tecnologia e combate à pobreza. “A China está construindo uma alternativa ao neoliberalismo ocidental. Ela oferece cooperação ganha-ganha, enquanto o Ocidente insiste em alianças assimétricas.”
Assista a íntegra da entrevista com José Medeiros:
O impacto das tensões EUA-China na economia global
Na análise das recentes medidas protecionistas do governo Trump, Medeiros avalia que a China reagiu com maturidade, adotando uma postura de igualdade nas relações internacionais.
“A China entendeu que não pode cair nas armadilhas criadas pelos Estados Unidos para gerar instabilidade interna. O país tem consciência de que está diante de um longo confronto — talvez de 15 a 20 anos — e está se preparando estrategicamente.”
Segundo o professor, mesmo com a volatilidade causada pelas políticas americanas, a China mantém uma visão de longo prazo, apostando na integração com o Sul Global e na cooperação econômica multilateral.
Como a sociedade chinesa percebe o cenário internacional?
Contrariando a imagem muitas vezes distorcida pela mídia ocidental, Medeiros afirma que a população chinesa está consciente e engajada com as dinâmicas globais.
“Há um forte senso de nacionalismo, mas não no sentido agressivo. É um nacionalismo de defesa do progresso conquistado — da recuperação histórica após mais de um século de humilhação.” Ele cita o exemplo de uma aluna de 19 anos que escreveu, durante o primeiro mandato de Trump: “Os EUA querem barrar nosso desenvolvimento para manter seus próprios privilégios.”
Essa consciência social, aliada ao orgulho do progresso alcançado, fortalece o apoio popular às políticas de Estado, independentemente de quem esteja no poder em Washington.

A China como motor do desenvolvimento do Sul Global
Com investimentos estratégicos em infraestrutura, como o porto de Shanghai no Peru, a China amplia sua influência no continente sul-americano. Para Medeiros, o Brasil precisa compreender melhor essa lógica para tirar proveito real dessa parceria.
“A China não vê países como o Brasil como dependentes ou competidores. Ela enxerga parceiros potenciais num projeto de multipolaridade que inclui todos os povos, inclusive os menores.”
Ele lembra que a China não só promove cooperação econômica, mas também valoriza a troca cultural, como demonstrado pela crescente popularidade do Brasil na China — impulsionada pela figura de Lula, que é tratado como uma celebridade local.
A visita de Lula à China: um novo capítulo nas relações bilaterais
A recente visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China foi recebida com grande entusiasmo pela sociedade chinesa. Medeiros observa que, até pouco tempo atrás, a imagem do Brasil na China estava restrita a futebol, samba e churrasco. Hoje, Lula é visto como um símbolo de aliança estratégica.
“Lula é pop aqui. As pessoas ficaram emocionadas com os encontros dele com empresários e governantes. A relação entre Brasil e China está se transformando em algo muito maior do que diplomacia comercial — é uma convergência de visões de mundo.”
Ele destaca ainda a importância do artigo escrito por Xi Jinping durante a Cúpula Celac-China, em que o presidente chinês comparou o relacionamento com a América Latina com o crescimento de uma árvore plantada há dez anos — agora frondosa e pronta para dar frutos.
Democracia chinesa: outro modelo de representação política
Questionado sobre o sistema político chinês, Medeiros critica a visão reducionista da mídia ocidental, que rotula a China como ditatorial.
“A China tem um modelo de ordenamento histórico-cultural, baseado em legitimidade obtida por resultados e por uma conexão profunda entre o Partido Comunista e o povo. Não é democracia liberal, mas é um sistema profundamente participativo.”
Ele menciona a existência de representações locais, desde o nível comunitário até o parlamentar nacional, onde decisões são tomadas com base na necessidade do povo e na visão estratégica do Estado.
“É um sistema complexo, mas eficiente. E o mais importante: ele serve aos interesses da maioria, não apenas de elites regionais ou econômicas.”
Trabalho e modernização: os novos desafios da sociedade chinesa
Sobre as mudanças nas relações de trabalho, Medeiros reconhece que a transição da China de uma economia rural para uma potência urbana industrializada trouxe tanto oportunidades quanto desafios.
“Você tem realidades muito distintas. Tem trabalhadores com condições excelentes, superiores às do Brasil, e outros enfrentando jornadas extenuantes. Mas o foco do Estado é garantir que todos se beneficiem do desenvolvimento.”
Uma China madura e confiante no palco global
Para José Medeiros, a China emerge como um ator central na nova ordem mundial, não apenas por sua força econômica, mas por sua capacidade de propor uma alternativa civilizacional ao modelo ocidental hegemônico.
“Ela não busca hegemonia. Busca equilíbrio, diálogo, cooperação. E isso, somado ao seu peso histórico e cultural, faz dela um aliado indispensável para países como o Brasil.”
Enquanto isso, o Brasil precisa entender que viver na sombra da China não é submissão, mas possibilidade. Uma janela de oportunidade que, se bem aproveitada, pode ser o motor de um novo ciclo de desenvolvimento nacional.