Avós da Praça de Maio encontram neto 140º apesar dos ataques de Milei
Filho de militantes nasceu em cativeiro em 1977. Reencontro com a irmã emociona a Argentina e reforça a denúncia contra o desmonte das políticas de memória da ditadura
Publicado 08/07/2025 16:38 | Editado 08/07/2025 18:31

As Avós da Praça de Maio anunciaram nesta segunda-feira (7) a restituição do neto 140, nascido em 17 de abril de 1977 no centro clandestino La Escuelita, em Bahía Blanca, a 630 quilômetros de Buenos Aires.
O homem é filho de Graciela Alicia Romero e Raúl Eugenio Metz, militantes do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Seus pais foram sequestrados pela ditadura argentina em Cutral-Có, província de Neuquén, quando Graciela estava grávida de cinco meses.
O reencontro ocorre em um contexto marcado pelo desmonte sistemático das instituições de memória promovido pelo governo de Javier Milei.
“Mais uma vez, a verdade avassaladora volta a se impor ao esquecimento e floresce a identidade. Ainda faltam cerca de 300 netos e netas”, disse a presidenta das Avós, Estela de Carlotto, destacando a força simbólica da restituição.
O neto 140 foi localizado após uma denúncia anônima recebida pela organização. As investigações foram conduzidas em parceria com a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CoNaDi) e a Unidade Fiscal Especializada para Casos de Apropriação de Crianças durante o Terrorismo de Estado (UFICANTE). Apesar das dificuldades, o homem aceitou realizar o teste de DNA no Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), confirmando sua identidade.
O exame foi realizado em meio à tentativa do governo Milei de esvaziar o BNDG e retirar sua autonomia por meio do decreto 351/2025. Estela de Carlotto exigiu a revogação imediata da medida e lembrou que a restituição da identidade “não é um favor do Estado — é um direito fundamental”.
A busca da irmã e a memória como resistência
Adriana Metz Romero, irmã do neto restituído, participou da coletiva ao lado de Carlotto. Hoje referência da filial das Avós em Mar del Plata, Adriana buscava o irmão desde a infância, quando soube, ainda pequena, que sua mãe dera à luz durante o cativeiro. Foi criada pelos avós após ser entregue por vizinhos, logo após o sequestro dos pais.
“Meu filho me disse que notei uma mudança na forma como falo. Antes dizia ‘minha mãe’, agora falo ‘mamãe’ e ‘papai’. Não foi forçado. Sempre soube que tinha um irmão”, contou.
Ao saber da confirmação, Adriana o adicionou no celular com o sobrenome Metz, como forma de reintegrá-lo à história familiar. “A partir daqui, tudo é ganho para a família Metz Romero, mas também para a sociedade. Cada neto restituído nos ilumina um pouco mais.”
Durante a busca, Adriana criou um blog de tecelagem onde escrevia cartas simbólicas ao irmão. Também enviou uma mensagem no aniversário de 40 anos dele. “Ela foi tecendo uma rede que a acolhe e que agora também abraça seu irmão neste reencontro tão esperado”, celebrou Estela.
O homem, que vivia em Buenos Aires e fora criado como filho único, já conversou longamente com a irmã. Segundo Adriana, “ele achava que não tinha família”. A realidade, como ela demonstrou, era outra: havia uma família inteira esperando por ele.
O plano sistemático de roubo de bebês
Graciela e Raúl foram sequestrados em 16 de dezembro de 1976, levados a dois centros clandestinos conhecidos como “La Escuelita”. No primeiro, em Neuquén, sofreram tortura física e psicológica. Depois foram transferidos para Bahía Blanca, onde Graciela deu à luz o filho em condições desumanas, sem qualquer atendimento médico.
Poucos dias após o parto, o bebê foi retirado da mãe e entregue a civis. Graciela teria confidenciado a uma companheira de cativeiro que havia tido um menino. Como tantos outros casos, o filho cresceu sem saber sua origem e sem conhecer sua verdadeira identidade.
Em nota oficial, as Avós foram enfáticas: “Cada neto confirma que o Estado terrorista sequestrou pessoas, as manteve ocultas em Centros Clandestinos de Detenção sob tortura, as assassinou e fez desaparecer seus corpos. Que nesses campos existiam maternidades clandestinas, onde mulheres como Graciela Romero deram à luz em condições desumanas”.
O comunicado denuncia ainda o plano sistemático de apropriação de menores promovido pela ditadura, condenando essas crianças a viverem “na mentira”, enquanto suas famílias biológicas buscavam por elas “indefinidamente”. A restituição da identidade do neto 140 é parte desse processo histórico de reparação.
Série “O Eternauta” impulsiona denúncias sobre identidade
Além do impacto da restituição, as Avós da Praça de Maio informaram que o número de consultas de pessoas com dúvidas sobre sua origem aumentou seis vezes nos últimos dias. O impulso veio da série argentina O Eternauta, lançada pela Netflix, baseada na obra de Héctor Germán Oesterheld — escritor desaparecido junto com suas quatro filhas pela ditadura.
A organização H.I.J.O.S. lançou uma campanha com cartazes que sobrepõem as imagens de Oesterheld e suas filhas ao pôster da série. “Se você nasceu entre novembro de 1976 e janeiro de 1978 e tem dúvidas sobre sua identidade, procure as Avós”, diz a peça. Elsa Sánchez, viúva de Oesterheld, é uma das fundadoras da organização.
A mobilização cultural e o engajamento de novas gerações têm sido fundamentais para manter viva a luta por memória e identidade. As Avós reafirmam que nenhuma informação é insignificante e que qualquer suspeita pode ser o início de um novo reencontro.
Segundo a entidade, “os netos desaparecidos moram em nossos bairros, trabalham conosco, compartilham atividades. Estão entre nós — e precisam de apoio para reencontrar suas origens”.
O desmonte das instituições de memória sob Javier Milei
Durante a coletiva, Manuel Gonçalves Granada — neto restituído, secretário das Avós e integrante da Conadi — alertou para a situação crítica das instituições envolvidas na restituição da identidade. O decreto 351/2025, assinado por Javier Milei, retirou a autonomia e a independência do Banco Nacional de Dados Genéticos, colocando em risco décadas de avanços.
“A busca coletiva sustentada ao longo de 49 anos só é possível com políticas públicas e estruturas estatais comprometidas com a verdade”, disse Gonçalves. “Mesmo em condições precárias, os trabalhadores da Conadi e do BNDG seguem atuando com enorme esforço e convicção.”
Estela de Carlotto reafirmou que cada restituição é como “um nascimento”. Para ela, a restituição do neto 140 comprova que “nossos netos e netas estão entre nós” e que “graças à perseverança e ao trabalho constante, continuarão aparecendo”. Ela encerrou pedindo o apoio da sociedade para revogar o decreto e impedir que a verdade seja silenciada.