Entrevista: Thomaz Farkas
Húngaro radicado no Brasil, Thomaz Farkas é um apaixonado pelas imagens. Fotógrafo de talento ímpar, deixou também notória contribuição para o aprimoramento do documentário brasileiro. E numa posição que nem sempre arrebata os louros da crítica: a de prod
Publicado 07/06/2007 23:05 | Editado 04/03/2020 16:37
Integrante do movimento fotoclubista de São Paulo nos idos de 1940, Farkas travou forte amizade com a geração de cineastas emergentes, a exemplo de Geraldo Sarno, Sérgio Muniz, Maurice Capovilla e Paulo Gil Soares. O contato lhe serviu de motivação para um empreendimento ambicioso: produzir uma série de documentários com o objetivo de desbravar o Brasil profundo, de culturas múltiplas, sem evidência na grande mídia.
Rebatizado com o nome de “Caravana Farkas”, o projeto resultou na finalização de 39 filmes, em dois ciclos: o primeiro, entre 1964 e 1965; e o segundo e mais prolífico, de 1967 a 1970. Uma experiência que nos legou várias obras de relevo, a exemplo de “Viramundo”, “Erva Bruxa”, “Os Imaginários” e “Memória do Cangaço”. Aos 82 anos e esbanjando vitalidade, Farkas é um dos homenageados do “XVII Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema”, que se encerra nesta sexta, 08. Durante o evento, o público de Fortaleza pôde conferir uma retrospectiva de sua “Caravana”. Leia a entrevista com o fotógrafo, produtor e diretor, figura central na trajetória do documentário brasileiro.
Como surgiu a idéia de produzir um projeto tão extenso e ousado como a “Caravana”, cuja ambição era documentar o “Brasil profundo” e desconhecido?
Esta é uma longa história, que eu tentarei encurtar. Estávamos na época da revolução, no pós-ditadura, e queríamos fazer uma reportagem sobre as ligas camponesas do Nordeste. Mas acontece que havia um cineasta maravilhoso por lá, o Eduardo Coutinho, que teve problemas com as filmagens, devido à repressão. E eu disse ao grupo: “não vamos nos atrapalhar ou cair em enrascadas”. Assim, pensamos muito e achamos que, como àquela época não havia programas de reportagem consolidados, a exemplo do Globo Repórter, poderíamos realizar uma série de filmes que mostrasse o “Brasil para os brasileiros” e tentar vendê-los para as escolas, como ferramenta educativa. Tanto que os documentários do primeiro ciclo integram um projeto chamado “A Condição Brasileira”. O estado de São Paulo tinha muitas escolas com projetores. O problema é que não havia dinheiro para a compra dos filmes. Alguns professores, por outro lado, tinham receio de que os filmes os substituíssem em sala de aula. Tive que explicar que os documentários eram como livros e por isso exigiam a participação dos professores. Mas não conseguimos vender pra nenhuma escola.
Mas, apesar do fracasso comercial, a idéia foi vitoriosa.
Exato, fizemos umas três dezenas de filmes, mas não conseguimos o resultado econômico esperado. Como naquele tempo eu dispunha de dinheiro para financiar os trabalhos, seguimos até o fim. Àquela época, as expedições e os filmes não custaram o que custariam hoje. São filmes antigos, de 30 anos atrás, defasados até, com uma técnica precária e sem a mesma captação de som do presente. Mas foi que pudemos fazer. Não acompanhei todos os filmes, porque precisava continuar em São Paulo, na empresa de meu pai, a “Fotoptica”. E também precisava cuidar da revelação do material. Mas acompanhei muitas filmagens, fotografei e dirigi alguns documentários.
Quais são suas recordações mais marcantes da “Caravana”?
Uma coisa que prezo muito chama-se amizade, é algo muito mais importante do que dinheiro ou cargo político. O grupo todo se tornou muito amigo e isto foi a grande satisfação desta experiência. Éramos um grupo reduzido, oito ou nove pessoas, mais os diretores principais, e todo esse pessoal abraçou a idéia. Esta foi a maior conquista, além, é claro, de ter tido a oportunidade de conhecer o Brasil, em profundas explorações.
Do ponto de vista da descoberta, do encontro com o outro, o que mais lhe encantou durante este mergulho na “alma brasileira”?
Olha, foi a sinceridade das pessoas que eu entrevistei, desde o coronel até o camponês. Havia uma sinceridade, uma vontade de colaborar com nossos filmes. Alguns conheciam a televisão, mas só uma minoria. No entanto, a receptividade ao nosso trabalho foi muito grande. Tanto no interior, como nas grandes cidades – São Paulo, por exemplo, também foi tema de alguns filmes. Nunca encontramos um obstáculo; treinamos e aprendemos a abordar o outro, apresentávamos nosso trabalho com transparência e as pessoas colaboravam. Isto foi fundamental.
Como o senhor descobriu o documentário e decidiu abraçá-lo neste projeto tão abrangente?
Olha, sou fotógrafo, sempre fotografei desde os oito anos. Meu pai tinha uma loja de fotografia importante e sempre que chegava equipamento, eu experimentava tudo. Quando chegou a câmera de 16mm, eu fiquei entusiasmado. Eu estudava na ´Escola Politécnica´ e propus ao meu professor de Física que filmássemos as experiências para apresentá-las aos alunos. Bom, não deu certo, mas começou assim. Eu também tinha um professor de arquitetura, que me disse que havia um grupo interessado em realizar alguns filmes. E ele me apresentou a vários dos colegas que integrariam a “Caravana”. Bem, como queríamos registrar e documentar a brasilidade, este era o nosso objetivo, o documentário foi a via natural
Dos filmes realizados pela Caravana, quais aqueles que mais te tocaram ou te impressionaram?
Olha, não há como escolher. É impossível. Todos têm sua beleza e relevância – não há preferência nem por pessoa e nem por filme. Todos foram produzidos com o coração e ainda hoje, quando os assisto, me comovo, o impacto é o mesmo.
À época da “Caravana”, o que o senhor gostaria de ter filmado que não foi possível realizar? O que ficou faltando?
Nós não tínhamos um plano fechado. Queríamos documentar o Brasil inteiro, mas como não consegui vender o projeto, ele não foi adiante. Não houve uma receptividade imediata. A receptividade veio acontecer agora. Hoje, com a televisão – o “Canal Brasil” e a “TV Senado” exibem nossos filmes – e com os festivais as coisas mudaram, formou-se uma receptividade.
E, se hoje o senhor retomasse a câmera, que tema ou aspecto cultural gostaria de documentar?
Eu gostaria de fazer tudo de novo, mas não dá (rs). Estou com 82 anos, é muita idade. Mas gostaria que alguém fizesse uma jornada parecida. E também gostaria de visitar os mesmos lugares para ver o que aconteceu – que mudanças se efetuaram em todo este tempo? Isso seria surpreendente.
O senhor acompanha o documentário brasileiro contemporâneo? Como o senhor avalia o nível das produções recentes?
Acompanho menos, porque não tenho mais tanto tempo – estou ocupado com as fotografias, as exibições e as vendas dos filmes. Mas, pelo que eu vejo, acho que há um progresso muito grande. Naturalmente, com a existência do equipamento digital, as pessoas podem filmar 15 ou 20 vezes mais do que nós filmávamos. Isso, de uma certa forma, pode inibir um pouco o pensamento. Porque nós pensávamos antes de filmar, planejávamos, tínhamos uma idéia geral do que fazer. Hoje, a impressão que eu tenho é que as pessoas filmam 20 vezes mais do que o que eles vão aproveitar. Talvez falte planejamento, objetividade. Não quero com isso dizer que o digital é ruim, de forma alguma – são práticas diferentes. Mas vejo que acontece a mesma coisa com a fotografia. A pessoa fotografa 30 vezes mais do que aproveita.
A fotografia está muito vinculada à sua biografia. O que mais lhe cativa ou seduz nesta arte?
O aspecto humano é o que mais me interessa. O que o homem faz, pensa ou sente? Minhas abstrações têm sempre um personagem humano por trás – é a natureza humana que me atrai e é esta atração que orienta meu trabalho até hoje.
Que conselho o senhor daria aos jovens hoje apaixonados pela arte de “congelar imagens”?
Pensem e trabalhem. Pensem antes, o planejamento é muito importante. Embora a execução seja aparentemente fácil, o pensamento e o planejamento, antes de filmar ou fotografar, é importante. Nada vem ao acaso ou de surpresa. O resultado final, claro, é uma surpresa, mas deve ser orientado por um planejamento anterior.
Fonte: Diario do Nordeste