Memória do Cangaço
Violência, fuga, amor e dor. Ex-cangaceiros resgatam fragmentos da história do cangaço no Nordeste
Publicado 11/06/2007 12:18 | Editado 04/03/2020 16:37
' Hoje em dia tem bicho muito pior do que cangaceiro. Tenho muito mais medo desses bandidos de agora'. Com essas palavras, Aristéia Soares, 94, descreve bem o sentimento que ainda povoa sua lembrança após ter vivido oito meses aliada e protegida pelos homens do lendário rei do cangaço, Lampião.
Residindo atualmente com um dos oito filhos no povoado de Delmiro Gouveia, em Alagoas, ela foi convidada pela organização do Cine Ceará para um encontro de ex-participantes do cangaço. Na última sexta 08, dia do encerramento do festival eles se encontraram com o o fotógrafo Thomaz Farkas, diretor de um documentário sobre o cangaço.
As duas outras personagens vivas dessa época e que não se viam há mais de seis décadas, presentes nesta quinta-feira, na Casa José de Alencar, constituem um casal: Moreno e Durvinha, com 97 e 92 anos, respectivamente. O encontro do trio foi emocionante. O casal se manteve foragido, se instalando em Minas Gerais, chegando a trocar de identidade após a morte de Lampião, ao ponto de nem seus cinco filhos saberem de seu passado até recentemente.
A história do casal foi recuperada pela filha Neli Maria Conceição (mais conhecida como Lili), que por mais de 50 anos sonhou com os outros filhos dos ex-cangaceiros o reencontro com o irmão mais velho (nascido no cangaço) deixado para trás sob a guarda de um padre , que os ajudou na fuga. Foi também documentada em livro pelo escritor João de Souza Lima, lançado ontem na Oboé, intitulado ´Moreno e Durvinha, Sangue, Amor e Fuga no Cangaço´.
O cineasta, diretor da Casa Amarela e do festival de cinema, Wolney Oliveira esclareceu que a iniciativa de trazer os personagens vivos durante este festival tem em vista a recuperação das informações das raízes desse importante período da história nordestina.
´Já contamos com o registro de seis cangaceiros vivos. Até lá, acreditamos que teremos encontrado um maior número deles´, disse Oliveira, que vem fazendo um apanhado dessas informações e personagens com ajuda também de familiares dos mesmos, como dona Mocinha, de 93 anos, irmã de Durvinha. A história de luta e resistência no cangaço não resgata só o ex-cangaceiros mas também os denominados ex-volantes, perseguidores dos primeiros.
Ao todo, computa Oliveira, já foram realizadas sobre o cangaço 48 obras cinematográficas brasileiras de ficção (longas metragens) e quatro documentários (curtas), um deles bastante conhecido, de Geraldo Sarno, ´Gavião, o Cangaceiro que perdeu a cabeça´ e outro sobre as mulheres no cangaço.
Conforme o diretor do Cine Ceará, a ficção minimizou a violência da época do cangaço, que contou com mais de 50 grupos armados de cangaceiros durante o período. Há histórias de atrocidades, como de um cangaceiro que marcava como gado as iniciais de seu nome JB (Zé Baimo) em mulheres de policiais e inimigos nas nádegas e órgãos íntimos. Outro, para economizar bala e não chamar atenção da polícia, matou dois jovens a pauladas. ´A lei que imperava no cangaço era a da violência´, completa Oliveira.
Na mira da polícia
Oitenta anos depois, Aristéia Soares, ainda lembra o tempo em que entrou para o cangaço, com 17 anos. Era protegida por Cícero Garrincha, o terrível Catingueiro. O único filho da união – que ficou conhecido como José Cantingueira – morreu anos mais tarde, assassinado do mesmo modo do pai.
Tão logo engravidou, Aristéia ficou temerosa que algo ocorresse com seu companheiro, que no seu dizer, era muito bom para ela. Apesar de as mulheres do grupo serem bastante protegidas pelos seus homens, perto de ter o garoto, meses depois, Cantigueiro foi pego e, com sua morte, foi ajudada pelos colegas do grupo a se afastar para ter o nenê. Passaram a achar que fosse falsa por sua atitude de deserção, quando deixou a vida do cangaço.
Com medo dos policiais (´eram os cães por dentro do mato; eles chegavam nas casas e carregavam o que a gente tinha e o que não tinha´), fugiu para o povoado de Pedra D´Água. Logo foi presa e três dias depois, ficou chocada com a cena de duas cabeças expostas pelos policiais, que não tivera a oportunidade de conhecer pessoalmente: Lampião e Maria Bonita. Por um tempo, não pôde sair da cidade, e o filho foi criado por uma tia.
Já o casal de cangaceiros, que há mais de 60 anos assina como José Antônio e Jovina Maria Conceição Souto, para tentarem preservar sua identidade José Inácio e Durvalina (no cangaço, Moreno e Durvinha) e saírem da mira da polícia, acreditam só estarem vivos hoje por conta desse silêncio que não chegou a vazar informações nem mesmo para os cinco filhos, nascidos após a fuga para Minas Gerais, em 1940, depois da morte de Lampião e Maria Bonita.
Foram quase 10 anos de cangaço, recorda Moreno, que com os homens do grupo teve apenas uma discussão calorosa com outro cangaceiro ´brabo´, Corisco, mas sem maiores entreveros. Os policiais e os perseguidores (que muitas vezes cometiam até maiores atrocidades para culparem os homens de Lampião), não, esses eram impiedosamente assinalados pelos cangaceiros. De memória, ele registra 21 que ele viu no chão sem conseguirem se levantar, mas inúmeros outros cabras que seguiram ´munhecando´, após serem acertados por ele.
Jovenzinho, Moreno já havia aprendido a atirar com rifle e arma na cidade.
Durvinha seguiu o companheiro bem menina, com 14 anos. A família era protegida pelos cangaceiros e ela passou anos silenciada, após a fuga com Moreno para Minas Gerais e o abandono do filho Inácio em Tacaratu, na Bahia, sob os cuidados do padre Frederico, que os ajudou também dando um burro e dinheiro para escaparem da perseguição e da morte.
Anos se passaram e todas as vezes que os cinco filhos perguntavam a razão pela qual os pais haviam saído de sua terra natal no sertão de Pernambuco e se instalado no interior mineiro, eles apenas afirmavam serem fugitivos da seca nordestina.
Moreno foi lavrador e Durvinha lavava roupas. Mais adiante, ele trabalhou em casas noturnas. Com a melhora da situação financeira e a ida para Belo Horizonte, Neli continuava sonhando reunir toda a família dos pais (até então, totalmente distante) e, sobretudo, a recuperação do contato com o irmão mais velho. Uma de suas últimas tentativas, em outubro de 2005, ligando para a Casa Paroquial de Tacaratu, obteve informações de um jovem que estudou o período do cangaço e tinha notícias de um padre de nome Frederico e um garoto de nome Inácio.
Checadas as informações com os pais, a revelação da história do cangaço veio à tona, bem como a troca de nomes e o reencontro com o primogênito.
Com tudo isso, o casal se sentiu mais seguro para passar sua história no cangaço adiante, principalmente ao escritor João de Souza Lima. Hoje tido como um filho do coração do casal, que permitiu o registro de sua história, na obra ´Moreno e Durvinha, Sangue, Amor e Fuga no Cangaço´.
Fonte: Diário do Nordeste