Crítica elege melhores filmes brasileiros de todos os tempos
Dezoito críticos da revista Paisà e dos sites Cinética, Contracampo, Almanaque Virtual e Cinequanon se reuniram para reavaliar o cânone do cinema nacional. Votaram e chegaram a uma relação dos 20 filmes brasile
Publicado 24/07/2007 00:01
Mais do que uma lista de favoritos, o resultado da eleição revela um pouco mais sobre o perfil desses novos críticos, seus gostos, suas visões de cinema e suas divergências entre si, como aponta Cléber Eduardo no ótimo ensaio que acompanha as obras escolhidas.
Além disso, a seleção da Paisà altera as bases, para usar a expressão de Cléber Eduardo, do “star system estético”. Na comparação com duas eleições anteriores desse tipo — a da Folha de S.Paulo (1999) e a da Contracampo (2002) —, há uma sensível alteração nas cinco primeiras posições: Limite, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe continuam lá, mas Vidas Secas e O Bandido da Luz Vermelha dão lugar a São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, e a Bang Bang, de Andrea Tonacci.
O quadro de votações por diretor confirma o equilíbrio na seleção entre cinemanovistas e marginais. Os quatro primeiros colocados foram, nesta ordem, Rogério Sganzerla, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Andrea Tonacci. A seguir, os dez primeiros filmes na seleção da Paisà. Estes e os outros 11 estão no site da revista, onde cada título recebe um comentário explicativo, o que dá à iniciativa uma dimensão didática. A relação se torna uma porta de entrada para quem quer conhecer um pouco mais do que há de melhor no cinema brasileiro.
1 – Limite, de Mário Peixoto (1931)
2 – Terra em Transe, de Glauber Rocha (1967)
3 – Bang Bang, de Andrea Tonacci (1970)
4 – Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1964)
5 – São Paulo S.A., de Luis Sérgio Person (1965)
6 – O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968)
7 – A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla (1969)
8 – Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho (1984)
9 – Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963)
10 – A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos (1965)
Leia abaixo o texto explicativo da lista
O reformismo canônico da “jovem crítica”
Por Cléber Eduardo
Toda lista de melhores filmes de um ano, de uma década, da história do cinema ou do cinema de um país, em última instância, revela menos do brilhantismo dos mais votados e mais da própria composição dos eleitores. Quando esse universo é do cinema brasileiro em toda sua trajetória, temos como referências seis listas, entre 1968 e 2001, com uma hegemonia dos cinco mesmos títulos nos cinco primeiros lugares desde 1980: Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Limite, de Mario Peixoto, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, não necessariamente nessa ordem.
Essa hierarquia foi estabelecida pela segunda lista nesse período de 33 anos, organizada por Moacy Cirne, e engessou o olimpo canônico nacional desde então. O clube dos cinco manteve-se no alto do panteão nas listas da Revista Vozes, da Cinemateca Brasileira, da Folha de S.Paulo e da Contracampo, as duas mais recentes (em 1999 e 2001, respectivamente), sendo a Contracampo a com o maior corpo de jurados dessas seleções (110 eleitores, edição 27), complementada por uma série de artigos de reflexão sobre o resultado. Em vez das listas revelarem algo do instante histórico da votação e de seu grupo de votantes, cada uma delas apenas disse amém de joelhos ao star system estético, com pouca variação do sexto ao décimo lugar.
No caso da lista da Paisà, são expressivas as diferenças. Primeiro porque o enxuto corpo de jurados, composto de 18 votantes da nova geração de críticos, tem perfil mais definido, cuja soma dos votos revelam, sim, muito da visão desse time. Todos os 18 começaram a escrever nos últimos dez anos – alguns há menos de dois – e estão entre os 20 e os 40 anos. Com raras exceções, a origem deles na crítica e o trabalho mais freqüente se deu e se dá nos sites e revistas eletrônicas, como Contracampo, Cinética (com alguns ex-Cine Imperfeito), Almanaque Virtual e Cinequanon.
Um perfil mais definido não é, porém, sintoma de uma homogeneidade. Embora o grupo seja vinculado a dois rótulos, o de jovem crítica e o de crítica independente (pela desconexão entre seus veículos e empresas de comunicação), há micros-grupos nesse grupo, que, afinidades afetivas à parte (uma força de elo dessa turma), têm formações, enfoques e critérios bastante distintos. É possível identificar facilmente, pela leitura de seus textos, algumas linhas distintivas.
Tanto há críticos de estilo ensaístico quanto de textos resenhísticos, tanto os mais íntimos da pesquisa quanto os mais impressionistas, tanto os mais informados sobre teoria quanto os discípulos da sensorialidade, tanto os mais formados na própria historiografia crítica quanto os mais empíricos, tanto os mais demonstrativos quanto os mais sentenciadores, podendo, como acontece, um mesmo veículo ter críticos com perfis diferentes, assim como um mesmo crítico ter mais de uma característica apontada acima. Rótulos não são suficientes para homogeneizar as diferenças. E elas são muitas.
A diferença criada por essa soma de diferenças, porém, se manifesta nas próprias escolhas do grupo. O clube dos cinco mais votados mudou de configuração e, embora tenham sido mantidos três deles no top 5 (Limite, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe), outros dois perderam suas vagas (Vidas Secas , em 9°, e O Bandido da Luz Vermelha, em 6°), ocupadas por São Paulo S.A. (9º na Folha de S.Paulo e na Contracampo), de Luís Sérgio Person, e Bang Bang (ausente na Folha de S.Paulo e 16° na Contracampo), de Andrea Tonacci.
Outros dois filmes no top 10, A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla, e Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, esse último presente só na lista da Contracampo até então, arejam a lista dos escolhidos. Já alguns freqüentadores assíduos dos dez mais caíram de posto, como Ganga Bruta (17°), de Humberto Mauro, ou sequer apareceram entre os 20 mais mencionados, casos de O Cangaceiro, de Lima Barreto, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade.
Nada da Vera Cruz, nada da Atlântida, nada de Walter Hugo Khouri. Fora nosso clássico oficial de vanguarda, Limite, dos anos 30, a década de 60 manda no pedaço, com equilíbrio entre cinenovistas e marginais, com o perdão da generalização reducionista dessas categorias. O único dos anos 50 é Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, o sócio convidado do Cinema Novo, oficializado pela historiografia e pelos cinemanovistas como pai do cinema moderno brasileiro, ao menos na modernidade de sangue realista. Ou seja, impera nossa vertente moderna, em suas variáveis (anos 30 e 60, e, nos anos 60, fase pré e pós AI-5).
Guerra e Joaquim Pedro são as grandes ausências dessa lista da Paisà. O contraplano é Rogério Sganzerla, que, embora tenha saído dos cinco primeiros, emplacou quatro filmes entre os 20, superando os três de Glauber Rocha. Sganzerla também é um dos diretores a ter um filme contemporâneo na lista (O Signo do Caos). O outro é Andrea Tonacci, que, além de Bang Bang, teve votos expressivos para Serras da Desordem. Só os seis filmes da dupla Sganzerla/Tonacci, que respondem por quase 1/3 dos filmes, já seriam sintomáticos dos novos ventos críticos.
Os outros sintomas são as boas votações de O Anjo Nasceu, de Julio Bressane, O Despertar da Besta, de José Mojica Marins, O Império do Desejo, de Carlos Reichenbach, e A Margem, de Ozualdo Candeias, que, claramente, mostram disposição do grupo em abrir espaço, nunca tão ocupado nessas listas, para a invenção estética e a estética do lixo. De uma maneira ou de outra, a inventividade, mais que temas, dão o tom a todos os mais votados, de Limite a Terra em Transe, de A Hora e a Vez de Augusto Matraga a Sem Essa Aranha, mas é a invenção deixada de fora do circuito internacional e historiográfico de legitimação crítica a novidade da lista.
Pode-se levar em conta no entendimento nessas escolhas da nova geração de críticos o contexto de exibição de parte desses filmes nos anos 90/2000. Nos últimos 10 anos, os cinéfilos e jovens críticos de São Paulo e Rio, cidades de onde fazem parte os votantes (exceto Marcelo Miranda, mineiro residente em Belo Horizonte), respiraram retrospectivas – de Julio Bressane e Rogério Sganzerla, organizadas por membros da Contracampo, de Carlos Reichenbach, pelo jornalista Marcelo Lyra, de Andréa Tonacci, pela equipe do Filme Livre, do Cinema Marginal e de Ozualdo Candeias, por Eugênio Puppo.
Esse acesso aos filmes, ou à revisão deles, deve ter interferido, em alguma medida, no formato do resultado. Não é apenas isso, evidentemente, ou as mostras retrospectivas de Carlos Manga e da Cinédia, por exemplo, iriam influir na votação. Parece bastante evidente, portanto, que a matriz histórica é a mesma, a da modernidade, como já foi colocado, mas com escalação mudada, sobretudo no banco de reservas (do 11° ao 20°). A própria decisão por uma lista de 20 e não de 10 revela uma estratégia para, como aconteceu, abrir portas para os filmes menos óbvios nessas seleções. É na segunda parte da lista, convenhamos, onde se concentram as novidades.
Também não se pode deixar de levar em conta que 13 dos 18 eleitores moram em São Paulo, embora nem todos sejam paulistanos ou paulistas de origem. De qualquer forma, isso talvez explique, parcialmente ao menos, a inclusão de Reichenbach, Mojica e Candeias, assim como as ótimas colocações de Person e Tonacci, que desenvolveram suas carreiras na cidade, filmaram parte de suas obras na metrópole e criaram uma relação íntima com o ambiente. Isso não foi suficiente, contudo, para eleger Noite Vazia, de Khoury, por exemplo, como parte dos 20 maiores filmes.
Não se pode ignorar ainda o fato de o campeão ter sido Limite, um dos dois filmes do período silencioso (com Ganga Bruta), mas também o mais poético e formalista de todos os listados entre os 20. Ter como referencial máximo esse filme nunca exibido em boas condições para essa geração, tendo em vista a demora para a conclusão do restauro da obra, talvez seja indício de algo dessa geração tão heterogênea em suas colocações críticas.
Limite é um poema sobre a deriva, sobre a margem existencial, sobre os impasses da existência e da subjetividade, com um encaminhamento em direção ao eterno vagar. Filme único do gênio-mito Mario Peixoto, carrega um espírito romântico em seu experimentalismo, assim como toda uma mitologia em sua ocupação de espaço na História, primeiro sendo auto-mitificado por Peixoto, depois sumindo de circulação, mais tarde sendo atacado por Glauber Rocha, sem reações em contrário do grupo cinemanovista, por ter uma proposta burguesa e alienada diante de seu país.
Sair da exclusividade do Cinema Novo, portanto, parece ter regido o espírito da Paisà. Faz sentido em um grupo que, em sua totalidade, participa do prêmio Jairo Ferreira. Isso não significa romper com a cúpula estética dos cinemanovistas, mas balanceá-la com manifestações regidas por outra lógica histórica, que não se paute pelo ideário de Glauber e possa abrir uma fenda para outras manifestações. Não chega a ser uma lista de ruptura, de quebra, de renovações da base canônica de nossos 110 anos, mas, sim, uma lista reformista em seu resultado geral, que respeita o passado já sacralizado e tenta sacralizar outros deixados na ante-sala.
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Da Redação, com informações do blog Ilustrada no Cinema e da Paisà