Sem categoria

Terremoto no Peru: a solidariedade perversa

Por Janina Mirtha Gladys Moquillaza Sanchez
Na última sexta-feira (24), o cardeal e secretário de Estado do Vaticano, Tarcisio Bertone, rezou missa nas cidades de Pisco, na Plaza de Armas, e em Ica, na praça da igreja de Luren. Ele entregou um

Acompanharam-no o cardeal Juan Luis Cipriani, o núncio apostólico Bruno Passigato, o presidente da Conferência Episcopal, Miguel Cabrejos, o presidente da Caritas, monsenhor Miguel Irízar, e o bispo de Ica, monsenhor Guido Breña, além de um forte esquema de segurança policial.



A iniciativa privada tem prestado auxílio ao governo regional disponibilizando suas máquinas para recolher toneladas de escombros nas cidades de Ica, Pisco e Chincha e fazendo doações. O chamado “espírito de solidariedade” que se vive no país é considerado algo novo pelas autoridades peruanas, que não cansam de elogiá-lo pela mídia. 



A imprensa acredita que a expansão da indústria para o sul do país é que tenha contribuído para uma maior consciência da importância da imagem institucional e a responsabilidade social da empresa. “Tomara que não se perca esse espírito solidário”, diz Jorge Lafosse, secretário geral de Cáritas no Peru, proprietária de mais de 40 empresas.



Giro pela região



Pisco é de fato um porto economicamente muito importante para esta região agro-exportadora, por onde sai também a exportação do gás de Camisea e que, devido à milenar cultura Paracas, tornou-se ponto turístico visitado por um grande número de asiáticos e norte-americanos durante todo o ano.



Contudo, margeando a estrada Panamericana Sur, no trecho entre Ica, Guadalupe, Pisco e Chincha, famílias inteiras passam o dia mostrando suas sacolas aos carros que passam em alta velocidade pedindo alimentos. Vi uma camionete da qual alguém jogava laranjas enquanto seguia seu trajeto e as pessoas corriam para recolher no chão.



Será que as pessoas daquele carro estão verdadeiramente ajudando? Não, mas provavelmente pensam que com sua atitude de desprezo estão fazendo sua parte: um descaso comum e socialmente banalizado. O problema neste tipo de atitude é o desprezo pela condição do Outro e o fato de que a aceitação desse comportamento como um “mal menor”, condiciona a aceitar o mal em si mesmo.



Ao longo da estrada Panamericana há postes caídos em ambos os lados e profundas brechas no asfalto partido. O trajeto tem vários desvios.  Em Pisco é impossível transitar pela cidade que ficou 90% destruída. Há militares pelas ruas, armados de metralhadoras.  Algumas pessoas ainda encontram corpos entre os escombros, outros enterram familiares. Muitos deixaram a cidade e foram para a casa de parentes nas cidades vizinhas. Quinta, sexta e sábado foram dias de “paracas”, que são ventos de até 40 km que levantavam poeira e areia, contribuindo para deixar a cidade com a aparência ainda mais triste.



Em Chincha, conversei com pessoas que tiveram suas casas rachadas e paredes caídas.  Disseram que já receberam a visita da Defesa Civil para o cadastramento de vítimas do terremoto. Foram informados que depois disso receberiam a doação de alimentos, roupas e uma barraca. Mas até o momento não receberam nada disso. Famílias inteiras estão ainda dormindo na rua.



O mesmo constatei em Comatrana, na periferia de Ica, onde a Cruz Vermelha distribuiu uma garrafa de dois litros de água e barraca por família. A maioria das famílias tem entre dois e quatro filhos. 



Perguntei a um morador local o que achava disso. Ele lembrou que nesse bairro moram aproximadamente três mil pessoas: “os funcionários do governo já passaram distribuindo alguns alimentos, mas eles e os voluntários poderiam ir de casa em casa saber o que a gente precisa e entregar a ajuda. E não nos submeter a esta situação de ter que ficar horas em uma fila. Nós perdemos nossas casas, nosso patrimônio, eletrodomésticos, roupas e objetos menores que agora vejo como eram importantes. Nossos familiares morreram, outros estão feridos se recuperando em casa ou no hospital. Tem gente que tem familiar em hospital de Lima. Nas casas ainda há muito medo. Por que é que eu tenho que estar aqui?”.



Durante o domingo visitei Tinguiña, onde várias casas ficaram sem condições de ocupação. A maioria das pessoas comprou alguns metros de plástico e com paus improvisou uma tenda na porta da casa para dormir. Algumas mulheres estavam cozinhando o almoço comunitário do dia, em grandes panelas, na rua. 



Andei também pelo centro de Ica e o que mais me chamou a atenção foi que a maioria dos prédios condenados a serem demolidos e com muros rachados prestes a cair, não tem nenhuma indicação de perigo, nem tapumes, nem proteção para as pessoas que transitam debaixo dos edifícios. Como se nada pudesse ocorrer.



Empresariado no comando



Fortemente criticado pela lentidão e desorganização no processo de socorro, provocando ondas de saques, desespero e revolta, o governo nomeou o empresário Julio Favre para coordenar a reconstrução das áreas afetadas pelo terremoto de 15 de agosto.



Favre já apresentou a sua equipe esclarecendo que nenhum deles será remunerado: Jaime Cáceres Sayán, atual presidente da Confederação Nacional de Instituições Empresariais Privadas (Confiep); Eduardo Figari, arquiteto; José Chlimper, ex-presidente da Sociedade de Comércio Exterior (Comex) do Peru e ministro da Agricultura durante o período fujimorista; e Henry Day, da Fundação Peru, além dos presidentes regionais de Lima, Ica e Huancavelica.



Enquanto o empresariado peruano assume o papel do Estado, o povo sofre uma seqüência de atitudes humilhantes e ultrajantes de abandono político e social. Contrariado, é obrigado a se conformar. O país que foi a capital da Inquisição do século XVI ao XIX, mantém a cultura do sofrimento e da pobreza. Pelas cidades foi comum ouvir das pessoas o argumento de que “poderia ser pior…”. E agradecem a quem quer que seja por sua “boa ação”. O problema que vem sendo vivido pelo povo é que isto pode atingir um estágio em que se considere normal que nada pior possa ocorrer.



O presidente Garcia não está disposto a enfrentar realidades que, de uma ou outra maneira, contradizem totalmente a sua estrutura autoritária de referência: ele nega que haja qualquer problema.



Um dos países mais pobres do continente, cuja população está há sucessivos anos à margem de todo processo político, se ocupa apenas em administrar os interesses do capital,  desviando o real e complexo problema no qual o Peru está submerso.