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Lecio  Morais: O Brasil e o mistério das duas dívidas

A notícia de que em janeiro o Brasil alcançou a posição de país liquidamente credor revela um fato que além de auspicioso é também inédito. O acumulado de nossas reservas internacionais é suficiente para pagar hoje toda a dívida externa pública e priva

A primeira suposta lição é a de que a posição alcançada é um mérito da política macroeconômica ortodoxa herdada dos anos noventa, que o Governo Lula teria tido a sabedoria de manter. A segunda é que agora o governo Lula deve fazer com a dívida pública interna o que conseguiu com a externa – reduzi-la mediante o corte da despesa estatal, considerada grande e desnecessária. Esses analistas apontam para a trajetória dos títulos da dívida interna, que, ao contrário da externa, vem crescendo aceleradamente nos últimos anos, segundo eles, graças ao aumento incessante das despesas.



Vejamos por que essas duas pretendidas lições a serem tiradas na nossa recém conquistada posição de credor líquido não procedem.



Um fenômeno mundial



O acúmulo de divisas por parte de grandes países considerados do Terceiro Mundo (ou que pelo menos nunca fizeram parte do Primeiro Mundo) é um fenômeno mundial que tomou ímpeto nos anos 90, coincidindo com a primeira grande fase expansionista da economia dos EUA após as críticas décadas de 70 e 80. Numa primeira fase, beneficiaram-se do mercado interno americano especialmente as economias do Leste Asiático. Porém, foi na segunda fase de expansão e prosperidade – iniciada em 2003 após a recessão da chamada crise da “nova economia” – que a tendência se consolidou e alastrou a fartura e o acúmulo de dólares por grandes e médios países periféricos de todo o mundo. Mesmo aqueles países dessa categoria que não lograram eliminar liquidamente sua posição devedora, como o México e a Argentina, viram a sua dívida líquida externa reduzir-se substancialmente.



O fluxo de dólares para essas economias advém dos superávits em conta corrente e dos investimentos produtivos e das aplicações em carteira (ações e títulos de renda fixa internos). Os benefícios da acumulação de reservas atingiram países com políticas macroeconômicas e bases econômicas bastante distintas, como Rússia, China, África do Sul, Índia, México ou Brasil. Logo, não seria possível, no caso brasileiro, responsabilizar a nossa política macroeconômica ortodoxa pela conquista da posição credora. O único ponto em comum de todos esses países é a valorização de suas moedas nacionais frente ao dólar, o que vem ocorrendo em maior ou menor grau com todos (inclusive a China, que desde 2005, teve o yuan valorizado em cerca de 8%).



Para entender o que aconteceu com o Brasil agora é preciso, portanto, examinar o que se passa no sistema capitalista mundial liderado pelos Estados Unidos e não o suposto mérito da política monetária engendrada mimeticamente por nossos tecnocratas do Banco Central.



E o que está a acontecer no sistema capitalista mundial é algo de profundo e importante, que pode mudar nossa visão de futuro, não só a respeito do mundo como da nossa estratégia e projeto de Nação. Não há aqui espaço para essa discussão, mas poderíamos resumir essa transformação do sistema mundial como segue.



Os EUA, com sua hegemonia política e econômica até então incontrastável, começou a sofrer forte desgaste na década de 70. Isso se revelou na crise do dólar de 1971-73, que resultou na quebra unilateral dos acordos de Bretton Woods, nos dois choques do petróleo, na derrota e retirada do Pentágono do Vietnam e nas perdas de países para revoluções tão diferentes como a do Irã e a da Nicarágua.



A bem sucedida saída dessa situação adversa – a globalização produtiva e financeira – teve, entretanto, como contrapartida, transformar os EUA, primeiro, de maior país credor no maior devedor do mundo; e, segundo, no início dos anos 90, fazer com que o valor das propriedades de estrangeiros em seu território fosse maior do que a das propriedades americanas no mundo. A posição credora do país hegemônico em dívida e patrimônio se inverteu.



Outra mudança fundamental no sistema mundial a partir da globalização foi o intenso deslocamento produtivo. Primeiro a indústria ligeira, logo a indústria pesada e também a de maior conteúdo tecnológico se transferiram dos países desenvolvidos para o Leste Asiático, a Índia e outras partes do mundo. Ao mesmo tempo a oferta de força de trabalho disponibilizada por esses países (especialmente China e Índia) duplicou, causando um forte rebaixamento nos salários, um aumento da exploração e a precarização das relações de trabalho.



Os EUA resguardaram para sua economia alguns setores de alta tecnologia – basicamente os ligados a armamento – o controle sobre boa parte da rede mundial de distribuição de mercadorias e o domínio financeiro sobre o mercado de capitais, praticado por meio das grandes bolsas americanas e pelo privilégio de emitir a moeda internacional, o dólar.



A onda do dólar farto



Logo o intenso deslocamento produtivo foi tornando endógeno, interno, os fatores de crescimento econômico desses países periféricos, o que vem tornando precário o controle dos EUA e dos países centrais sobre a dinâmica capitalista mundial. Ao mesmo tempo, os EUA vêm fracassando em liderar o mundo para reformas que sustentem a liberação comercial e em manter a estabilidade da moeda internacional. O valor do dólar declina constantemente. Isto faz com que a capacidade consumidora dos EUA, ao tempo que centraliza a dinâmica mundial do capitalismo, também exerça uma forte pressão sobre o valor e o preço das mercadorias importadas, lançando assim um imposto invisível sobre o resto do mundo.



A verdade é que, longe de indicar uma “democratização” da riqueza global, essa onda de fartura de dólar pode estar indicando um tempo de graves crises, derrocada do comércio internacional e desorganização do sistema capitalista internacional pela simples falta de um centro hegemônico coordenador, imperialista ou não.



Em decorrência desse fenômeno complexo, que indica o lento declínio da autoridade americana, os países da periferia ou semiperiferia vêm se abarrotando de reservas em dólar. A política monetária praticada internamente pelo Brasil em nada, ou quase nada, vem contribuindo para esse crescimento das reservas.



Por fim, é importante afirmar que a passagem do Brasil à posição de credor líquido deve ser comemorada enquanto valor simbólico. A elevada reserva atual, na verdade, não garante tanto. O problema é que, apesar disso, também cresceu muito o nosso passivo líquido externo (dívida externa líquida mais investimentos externos no Brasil e menos investimentos brasileiros no exterior): ele se elevou em US$ 200 bilhões desde 2003 (de US$ 272 bilhões para US$ 472 bilhões), muito mais que as festejadas reservas. Só os investimentos em carteira de estrangeiros aumentaram de US$ 151 bilhões para US$ 400 bilhões, sendo 120 bilhões em ações na Bovespa e mais US$ 41 bilhões em títulos de renda fixa.



Esse patrimônio de grande liquidez pode ser retirado do país à vontade por seus proprietários estrangeiros (ou brasileiros com fundos ilegais no exterior). Logo, o que realmente dá segurança ao país não são as reservas, mas sim a capacidade de gerar saldo em conta corrente – exatamente aquilo que a política monetária que ajuda a valorizar o Real prejudica.



Dívida interna e ortodoxia macroeconômica



Entretanto, nossa política macroeconômica – monetária e fiscal – tem realmente alguma responsabilidade pela forma como acontece no Brasil este fenômeno mundial de acúmulo de reservas. Diferente de outros países igualmente beneficiados, o Brasil é aquele onde tem crescido mais fortemente a dívida pública interna e onde a moeda nacional mais se valorizou.



Diferente do que afirmam os analistas conservadores, nossa dívida em títulos vem crescendo porque nossas reservas em dólar aumentam e não por causa da despesa pública. A responsável por isso é uma política monetária que mantém continuamente altas taxas de juros reais e restringe fortemente a oferta de crédito e o gasto público, pela aplicação continuada de uma política fiscal de grandes superávites primários.



As altas taxas de juros, mantidas mesmo quando as taxas internacionais estão em queda, fazem do país o paraíso da especulação, que recebe não só investimentos produtivos (diretos), mas também muitas aplicações especulativas em ações e títulos. Aliado à entrada de dólares, o investimento estrangeiro vem ampliando as reservas, mas também implicando em uma grande emissão de títulos federais para “esterilizar” o meio circulante dos reais constantemente emitidos para fazer o câmbio. Os títulos assim emitidos a juros altos são comprados pelos aplicadores para aumentar seu patrimônio, como contrapartida dos dólares que incham nossas reservas. O pior é que os títulos emitidos custam ao Tesouro Nacional pelo menos 11,2% ao ano, enquanto os dólares da reserva só rendem cerca de 3%. A diferença é bancada pela emissão de mais títulos e pela maior necessidade de superávit primário no orçamento público. É uma máquina infernal de produzir dívida pública criando, em contrapartida, patrimônio financeiro privado.



A criação dessa dívida pública em decorrência da entrada de dólares não é inevitável. Ela só ocorre porque a política monetária é também muito restritiva e não permite que os reais assim gerados circulem na economia financiando a produção e aumentando o consumo. Em resumo, se as taxas de juros não fossem tão altas, a atração do ganho fácil não nos traria tantos dólares, e se a política fosse mais expansiva, mesmo assim haveria mais reais circulando e menos dívida pública para sufocar o Estado brasileiro.



Este é o mistério das duas dívidas. A política macroeconômica ortodoxa não tem mérito na nossa nova posição de credor líquido – notícia que merece tanta comemoração quanto cautela com o futuro do mundo. Mas tem grande responsabilidade na elevação da dívida pública federal. Pretender que se gaste menos em investimento e serviços públicos para facilitar ainda mais a constituição de riqueza financeira às custas do endividamento público é mais do que um desserviço à nação. É uma tentativa empulhação criminosa.



* Economista, mestre em Ciência Política, especialista em plano e orçamentos públicos e assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.