Aficanos são tratados como escravos em lavouras da Europa
No sul da Itália, sudaneses, senegaleses, marroquinos, moldávios e ucranianos integram um contingente silencioso de imigrantes ilegais que garantem a colheita agrícola na região. uma parcela desses imigrantes não está apenas na informalidade, e sim em con
Publicado 30/03/2008 10:31
Adam Mohamed e John Kawala decidiram vender suas lojas de artesanato tradicional em Acra, em Gana, para reunir dinheiro e pagar todas as propinas necessárias para que conseguissem cruzar as várias fronteiras e chegar até a Europa.
Em três semanas, passaram por Gana, Togo, Benin, Níger, Líbia e finalmente cruzaram o mar Mediterrâneo até o sul da Itália. Gastaram 4 mil cada um na viagem. Tudo isso para, três meses depois, viverem em uma condição parecida com a de escravidão na Europa. “Se eu soubesse que viria ao inferno, não teria nem iniciado a viagem”, afirma Kawala, 35 anos.
No sul da Itália, sudaneses, senegaleses, marroquinos, moldávios e ucranianos integram um contingente silencioso de imigrantes ilegais que garantem a colheita agrícola na região. Estão nos campos de tomate, usado para os pratos mais tradicionais da culinária italiana, ou colhendo laranja. A própria União Européia (UE) estima que 500 mil imigrantes ilegais entram no bloco por ano e que 8 milhões deles estariam trabalhando na informalidade, representando algo em torno de 12% do PIB europeu.
Mas uma parcela desses imigrantes não está apenas na informalidade, e sim em condições de indigência. Sofrem diariamente com violência, vivem em edifícios abandonados, sem eletricidade ou água, e infestados de ratos. Pior: não podem sair diante das dívidas que acumularam com seus patrões. Conhecida por sua defesa aos direitos humanos e até por criticar as condições de trabalho na produção da cana-de-açúcar no Brasil ou de têxteis na China, a Europa está sendo obrigada agora a admitir a existência dessas violações em seu próprio território.
A Agência Estado teve acesso ao local na Calábria onde vivem esses novos escravos, aos contratos de trabalho que violam qualquer carta de direitos humanos da ONU e pôde constatar o sofrimento de alguns que sequer sabem dizer no mapa onde estão e, como nas fazendas nas Américas há dois séculos, tiveram seus nomes mudados. Desta vez, o motivo seria o de adotar um nome adequado aos papéis falsificados que os intermediários prepararam para a imigração.
Ninguém sabe ao certo quantos são esses imigrantes trabalhando nas colheitas no sul da Itália. A entidade Médicos Sem Fronteira estima que apenas na Calábria poderiam existir cerca de 15 mil. Isso sem contar com as regiões da Sicília, Basilicata e Puglia.
O endividamento começa antes mesmo de chegar. Pela lei italiana, os proprietários de terras podem declarar ao governo que necessitam de mão-de-obra estrangeira para a colheita. Hoje, poucos são os italianos que aceitariam trabalhar como agricultores e o setor não tem outra alternativa senão importar mão-de-obra. Com contatos nos países africanos e do Centro da Europa com intermediários, esses fazendeiros enviam aos consulados da Itália nesses locais cartas com os nomes das pessoas que teriam direito ao visto, normalmente dado por apenas três meses. O futuro imigrante, então, pode receber a autorização para viajar e a ilusão de que vai ganhar dinheiro e sair da miséria africana.
O problema, porém, é que os fazendeiros e intermediários cobrarem entre 1 mil e 2 mil ao trabalhador para lhe dar o visto. Já o Ministério do Interior na Itália confirma que o custo para o empregador não passa de 14,62. Hamid Benzaied, um marroquino, tem em suas mãos a carta com o visto enviado por um conhecido proprietário de terras da região ao governo. Só não sabe quanto tempo vai levar para pagar essa sua primeira dívida. Depois de três meses, esse trabalhador não voltará a seu país e ficará ainda mais nas mãos dos fazendeiros, que os ameaçam se não continuam trabalhando. Não por acaso, a entidade Médicos Sem Fronteira classifica as fazendas como “campos de trabalho forçado”.
A situação fica ainda mais complicada quando esses imigrantes recebem a informação de que, por cada dia de 12 horas de trabalho no campo, vão ganhar 25. Por semana, trabalharão apenas três dias. Ou seja, 300 por mês. Mas também não terminarão o dia com os 25 no bolso. “Dos 25 que recebem, precisam dar entre 2 e 3 para que sejam transportados aos campos, 5 para um local para dormir, além de comida”, denuncia Dispina Ivasenco, que trabalha em um dos únicos centros sociais para os imigrantes, a Associação Ominia. Quem ficar doente diante do frio de cinco graus nessa época do ano e não puder trabalhar é obrigado a pagar 20 por dia ao patrão pelos supostos prejuízos que a fazenda teve com sua ausência.
“Termino o dia com apenas uns 10”, explica Abdullah Sheriff, também do Marrocos. “O que ganhamos não é dinheiro. Ninguém sobrevive com isso aqui”, afirmou Papa, do Senegal. Ele não sabe nem exatamente quantos anos tem ou qual seu sobrenome. “Meu nome é só Papa e acho que tenho entre 30 e 32 anos”, diz, rindo e cobrindo o rosto de vergonha.
Quem ousa fugir é até perseguido pelos capatazes das fazendas. Há dois anos, a região ainda foi tomada por um escândalo envolvendo a morte de poloneses que também trabalhavam no campo. Investigações feitas pela Justiça ainda mostraram que algumas das mulheres encontrados mortas poderiam ter sido estupradas e aquela foi a primeira vez que os italianos passaram a saber da real situação dos imigrantes. Os africanos, mais cínicos, alegam que o caso só foi divulgado e as autoridades tomaram providências porque a Polônia hoje faz parte da União Européia. Hoje, os que morrem não tem muitas vezes nem como ter seu corpo transportado para seus países.
A solução para quase todos é se abrigar nos edifícios abandonados da região nas semanas em que não há colheita. A AE foi levada a um deles, chamado pelos imigrantes de 'Fábrica”. Sem luz e banheiro, o prédio que foi usado há décadas como um galpão não tem uma só janela e cada imigrante dorme em barracas montadas com cartolina. Para iluminar o local, os imigrantes fazem pequenos fogareiros, usados também para cozinhar. A penumbra do local acaba ainda mais densa com a fumaça constante.
“Agora está bem melhor aqui. Colocaram um teto e não chove dentro”, afirmou Dispina Ivasenco. Em um outro galpão, ainda não há um teto. Sua colega Hasna Boumou, não mede palavras: “a situação é de indigentes”.
Segundo elas, há ainda pessoas vivendo embaixo de pontes e em carros abandonados. “Parece que somos invisíveis. Não há ninguém que pareça se importar”, afirmou Hamid, do Sudão, que vive em um outro galpão abandonado a poucos metros da prefeitura de Rosarno. Enquanto mostrava sua cama, ratos comiam tranqüilamente a poucos metros dali.
Crise humanitária
A situação dos imigrantes no sul da Itália está sendo classificada pela entidade Médicos Sem Fronteira como uma verdadeira “crise humanitária”. Um relatório da situação de saúde dos imigrantes elaborado pela organização está sendo entregue às autoridades para alertar que nada está sendo feito para resolver os problemas que só se agravam.
Na última semana, a entidade multiplicou suas reuniões com o Ministério da Saúde da Itália, autoridades locais e diversos departamentos do governo. Hoje, o único serviço prestado pelo governo é o de prestar atendimento médico. Mas apenas para um pequeno número de pessoas.
Francesca Zuccaro, do Médicos Sem Fronteira, conta que o governo alega que não pode fazer mais porque os imigrantes estão, em sua maioria, sem visto. “Essa é uma grande hipocrisia. O governo sabe o que está ocorrendo. Só não quer é ver.”
Segundo ela, a situação de saúde de muitos imigrantes é crítica. Enquanto a reportagem visitava um dos armazéns onde estavam os imigrantes, um deles se levantou da cama e veio pedir chorando remédio para sua dor de estômago.
Em Rosarno, a prefeitura aceitou colaborar com um centro social. Mas só fornece o prédio e paga uma professora de italiano para dar aulas aos imigrantes duas vezes por semana.
Fonte: Agência Estado