Matheus Nachtergaele e Selton Mello: filmes sem Globo e riso
Eles não são mais João Grilo e Chicó. E parecem menos dispostos a fazer graça. Dez anos depois da filmagem de O Auto da Compadecida, série tornada longa-metragem de sucesso, Matheus Nachtergaele e Selton Mello voltam a se cruzar nas telas. Qui
Publicado 20/07/2008 12:43
Mello, de 35 anos, ganhou, no sábado 12, o prêmio de melhor diretor no novo Festival de Paulínia (interior de São Paulo) com Feliz Natal. Nachtergaele, 39 anos, apresentou A Festa da Menina Morta em Cannes e foi selecionado para o Festival de Gramado, em agosto. Astros da tevê, figuras carimbadas do cinema, podiam fazer do set uma extensão da fama. Arriscaram-se, porém, em terrenos acidentados.
Globais, deixaram para lá a Globofilmes e buscaram abrigo numa pequena produtora, a Bananeira. Comediantes, afastaram-se do riso e deram voz a personagens em agonia. Famosos, deixaram menos rígida a agenda para falar sobre os projetos inaugurais. “É diferente dar uma entrevista como diretor. Como ator, você defende um personagem. Aqui tem uma pessoa. Acho que vou começar a ser mais bem compreendido, o diálogo é outro”, acredita Selton. “Poucas vezes, como ator, pude mostrar quem sou. Talvez em Lavoura Arcaica e O Cheiro do Ralo. Mas nunca me expus como agora.”
Nachtergaele, que está na Bahia gravando a série Ó Pai, Ó para a Globo, também sente o mistério da autoria rondá-lo. “O ator expõe uma visão de mundo que nem sempre é dele. Como diretor, você mostra a sua filosofia de mundo”, imagina. A Festa da Menina Morta, filme de ar barroco, lembra o próprio Matheus, sobretudo no desvario sonhador do protagonista Santinho (Daniel de Oliveira). “Acho que todos os personagens mostram um pouco do que sou. Cada um é uma faceta minha. O filme é a fábula da minha vida.”
A despeito das diferenças estéticas e temáticas, algo une os dois filmes. Ambos parecem fruto de um desejo radical de expressar-se. Reproduzem também uma série de referências cinematográficas, típica dos estreantes que muito viram antes de fazer. Há as influências de cineastas-farol, como John Cassavetes e Lucrecia Martel, para Mello, e Ruy Guerra e Akira Kurosawa, para Nachtergaele. Há, ainda, os sets compartidos, já que cada um atuou, do fim dos anos 1990 para cá, em cerca de 20 longas-metragens. “Pude colocar em prática as maneiras como fui ou não fui dirigido. Trabalhei com diretores carrascos, omissos e sabia de que maneira trabalharia. Eu queria trabalhar com delicadeza”, define Mello, voz rouca, fala tranqüila. “Tentei fazer um filme de ator, de sensações.”
A câmera de Lula Carvalho, sempre em busca dos olhos, em planos fechados, reflete a tentativa. A escolha de Darlene Glória e Paulo Guarnieri também. “O maior fantasma de um ator é o esquecimento. As escalações são muito viciadas e preguiçosas”, diz o agora diretor.
Selton Mello topou com Guarnieri numa revista de celebridades, carregando o caixão do pai, Gianfrancesco. “Vi aqueles olhos tristes e pensei: ‘É ele’!” Guarnieri, há oito anos, desistira de ser ator. Voltou com uma missão. “O Selton me disse: ‘A máscara que eu quero é aquela de você carregando o caixão do seu pai’.”
A comunhão dos atores com os papéis é algo evidente nos dois filmes. Ao trocar de lugar, Mello e Nachtergaele quiseram fazer da direção um encontro íntimo, um entendimento entre aqueles que falam a mesma língua. Em ambos, há, inclusive, excessos narrativos derivados dessa espécie de catarse.
“Me parece que o cinema é um grande grito”, diz Nachtergaele. “Acho que fiz um filme simples e brutal”, emenda Mello. As definições resumem o que os moveu a entrar na aventura cinematográfica pela porta da autoria.
Também é fruto dessa opção outro ponto de convergência dos projetos: a presença da produtora Vânia Catani. Nascida no sertão mineiro, ela começou a trabalhar com imagens na TV Minas e, rapidamente, aderiu à cinefilia e à videoarte. Virou produtora pelas mãos de Pedro Bial, quando, em tempos pré-Big Brother, o apresentador da Globo transpôs Guimarães Rosa para o cinema em Primeiras Estórias (1999).
O destino de Bial todos sabemos. O de Vânia foi abrir a Bananeira Filmes, produtora também de Narradores de Javé (2003). “A bananeira está sempre brotando. É difícil matar uma bananeira. Eu gostava desse conceito. E também queria fazer uma provocação com a mania de usar banana como um nome pejorativo. Deu certo. Fora do Brasil, ninguém esquece o nome da produtora”, brinca.
Foi Vânia quem, em 1999, sugeriu a Nachtergaele que escrevesse as histórias que guardava consigo. “Aluguei uma casinha em Rio Acima (MG) e passei 40 dias escrevendo, sozinho”, relembra. Ele escrevia à mão, tomava banho de cachoeira e via mariposas voarem. A Festa da Menina Morta, filmado em Barcelos, na Amazônia, reproduz, de certo modo, aquele cenário apartado.
O primeiro dinheiro para a produção veio em 2002. Só em 2007 se completou a captação e aconteceu a filmagem. “O fato de eles serem conhecidos não fez diferença para a captação. A cara deles é que vende”, pontua Vânia. “Um produtor internacional chegou a me perguntar que tipo de produtora era eu que não colocava os dois nos filmes. Também houve distribuidores, aqui, que sugeriram que eles fizessem ao menos uma ceninha.” Não apareceram.
“O papel do produtor é transformar o sonho do outro num sonho seu, é uma entrega muito grande”, diz Vânia. “Alguém me disse: ‘Eu vi as logomarcas no filme, vi o seu trabalho’. Não é isso, não é isso mesmo.” Além da produtora, os filmes têm em comum a fotografia de Lula Carvalho (de Tropa de Elite) e a direção de arte de Renata Pinheiro, figuras da nova geração técnica do cinema brasileiro.
Fato é que nem fama nem festivais garantirão a carreira dos longas-metragens. O filme de Selton Mello, com estréia marcada para 21 de novembro, deve ser lançado com 20 cópias. O de Nachtergaele ainda não conseguiu distribuição. “Essa é uma esquizofrenia do cinema brasileiro. Os distribuidores têm medo dos filmes mais autorais”, diz ele. Nachtergaele descobriu, enfim, que a frase de seu personagem no filme Amarelo Manga – “No cinema pode tudo” – não é de todo verdadeira. “Descobri o contrário. Descobri o limite técnico, os limites das pessoas”, confessa. “Também tenho uma noção mais clara de tudo que tem de acontecer para eu entrar em cena, de quanta coisa é necessária para que eu esteja ali.”
Os dois apostam em mudanças no modo de atuar após a experiência de mandar a claquete bater. “Como ator, é fácil você se acomodar. No Lavoura Arcaica, tive de pensar no porquê da minha profissão, no que estava fazendo”, reflete Mello. E o que era? “Estava virando um burocrata, fazia tudo igual.”
O filme sobre o dia de Natal, “essa data obrigatória e, até por isso, reveladora”, é, para ele, o trabalho da virada. “Esta é a primeira experiência de uma nova fase da minha vida”, repete, seja num debate, na entrevista ou no palco tinindo de novo, em Paulínia, durante o recebimento do troféu.
Nachtergaele, discurso menos pensado que o do colega, afirma: “Acho que o cinema é uma poesia visual e sonora que existe para que alguma coisa seja poupada do ciclo infernal da vida”. Com verbo semelhante, define os diferentes espaços, onde, como ator, dá vida a um montão de tipos. “Todos os meios se dão as mãos numa espécie de ciranda. A tevê mostra a poesia para quem não pode vê-la em outro lugar. O teatro é a mais religiosa das artes. O cinema tem sido a estrela dessa tríade, o lugar de reunião das pessoas.”
Ele, que participou da inesquecível montagem de O Livro de Jó, com o Teatro da Vertigem, e tornou-se ator no palco, fez caminho oposto ao de Selton Mello, astro mirim crescido na tevê. Partiram de lugares diferentes. Mas, no meio do caminho, vindos de lados contrários, encontraram-se. E seus sonhos eram quase iguais.