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Peças de sobra, mas curtas temporadas: o dilema do teatro

Há muito o que ver nos teatros da cidade. Só nesta semana, de acordo com dados colhidos na matriz do Guia do Estado, o espectador tem à sua disposição 132 espetáculos teatrais em temporada na cidade. Isso sem contar shows de humor, teatro infa

Sinal de vitalidade? Sem dúvida, sob qualquer ponto de vista, esse é um dos aspectos que tal quantidade reflete. Porém, um olhar atento observa um dado relevante: a pulverização da programação.


 


Cada vez mais palcos abrigam um número maior de peças — que, por sua vez, fazem um número menor de apresentações semanais em temporadas cada vez mais curtas. A alta rotatividade cresce em progressão geométrica na cena teatral paulistana e afeta também outras cidades, ainda que a reportagem tenha se restringido aos números da capital paulista.


 


Do total de peças em cartaz nesta semana, 35% faz uma apresentação a cada sete dias. A esmagadora maioria, cerca de 60%, tem apenas duas ou três sessões semanais. Somente cinco espetáculos fazem quatro apresentações semanais e só um deles, oito.


 


Quais as conseqüências positivas e negativas desse perfil de programação? O Estado foi ouvir algumas vozes da classe teatral — atores, produtores, programadores, diretores — sobre essa questão. Essa pulverização interfere na qualidade do que se apresenta, seja na complexidade da cenografia e da iluminação, seja em termos da qualidade de atuação?


 


Os números mostram que se a resposta for sim, então a questão é preocupante. Há algumas divergências de análise, mas em um ponto, todos concordam: sem muitas sessões, cai o rendimento do ator.


 


“Não há possibilidade de o ator exercer bem o seu papel se ele fica mais dias da semana afastado do personagem do que envolvido com ele”, afirma Eduardo Tolentino, diretor do Grupo Tapa.


 


O raciocínio, com o qual todos os entrevistados concordam, é o de que realizar sessões em várias noites seguidas propicia ao ator muito mais possibilidade de aprimorar seu trabalho ao longo da temporada: afinando ritmos, tons, atmosferas.


 


“É uma tragédia, uma doença grave, um teatro amesquinhado. Precisamos fazer sempre muito esforço para não oferecer um espetáculo ruim ao público da primeira sessão semanal”, afirma Cleyde Yáconis. Mas se todos concordam que a alta rotatividade faz cair a qualidade, então por que ela existe?


 


Como ocorre em qualquer profissão, o treino diário aperfeiçoa. Certamente, não é diferente com a arte de interpretar. “Se ficamos afastados muitos dias, o ideal seria chegar ao teatro mais cedo para reensaiar a peça antes da primeira sessão semanal”, diz a atriz Cleyde Yáconis.


 


Mas aí o ator esbarra, na maior parte dos teatros, em outro problema: a lotação das casas, que afeta a concentração dos atores e a qualidade técnica dos espetáculos. “Os teatros abrigam cinco ou seis peças de uma vez só, as coxias ficam entulhadas de cenografia, e a criação muito limitada, uma vez que tudo tem de ser feito para um monta-e-desmonta relâmpago”, comentou o cenógrafo José Dias em palestra, no domingo, em São Paulo.


 


Sem contar que os ensaios se dão em salas muitas vezes de dimensões e geografia bem diferentes dos palcos. “Temos cada vez menos tempo no palco para fazer as adaptações de movimentação, luz, som, cenografia. Do ponto de vista artístico, isso é desgastante, é ruim, mas não vejo como reverter esse quadro, pelo contrário, a tendência é a rotatividade aumentar”, diz o diretor Alexandre Reinecke.


 


“A diversidade da cena teatral paulistana é sinal de uma riqueza fantástica, sintoma de força cultural, é a sociedade se agitando, se expressando, e em diferentes camadas sociais”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo. “Do ponto de vista artístico, essa descontinuidade pode influir sim na qualidade técnica e de interpretação, mas não vejo muita saída, porque a demanda por espaços é muito maior do que a oferta.”


 


Ele lembra que a entidade já abrigou temporadas longas. “Fomos nos ajustando à realidade. O Sesc buscou atender a um fluxo, uma tendência que vem da cena. Podemos até repensar, fazer adaptações se essa for uma demanda”, argumenta.


 


Embora muito mais jovem do que Cleyde Yáconis, a atriz Denise Fraga lembra que começou sua carreira fazendo oito sessões semanais. “Acho que o mundo ficou mais múltiplo, há pluralidade em tudo, a gente vai-se adaptando. Tenho um desespero com a sessão de sexta. Acordo nervosa porque sei que terei apresentação à noite e estamos frios. Chego com 3 horas e meia de antecedência no teatro para aquecer”, conta.


 


“Lidamos com uma arte que é fluida, etérea. Gosto do exemplo do nadador: ele pode aperfeiçoar tempos, estilos, mas não pode reter a água. Nosso trabalho também é assim. Às vezes, justamente por conta desse medo, a sessão de sexta sai ótima, mas é preciso um investimento de energia”, comenta Denise.


 


Com exceção das sedes de alguns grupos, como o Oficina ou Folias, desmontar e montar cenários para dar espaço a peças ou eventos — festas, formaturas, convenções — é prática cada vez mais comum. Em muitos deles, a possibilidade de chegar três horas antes do início da peça está eliminada.


 


“O ator que tem esse tipo de exigência não vai atuar no nosso teatro”, garante Isser Korik, diretor artístico do Folha. Ele está entre os que defendem quantidade — seis ou sete peças estão sempre em cartaz. “Eles têm equipe técnica ágil e eficiente, é preciso que se diga”, afirma Reinecke.


 


Korik chama de “opção ideológica” a forma como programa seu palco. “Sou ator, teatro não é negócio, mas lugar para trabalhar. E quero ampliá-lo para muitos outros artistas. Temos espaço sob o palco para cenografia, não temos coxias atulhadas”, diz.


 


Em favor da intensa programação, Korik argumenta ainda que se trata de um teatro de bairro (Higienópolis), o que faz do espectador um freqüentador da casa. “Se eu tenho uma ou duas peças em longa temporada, ele vai aparecer duas ou três vezes no ano.”


 


Ele acredita ainda que, se colocar uma peça de quinta a sábado, o espectador vai preferir ir no sábado. “Já se a peça só estiver na quarta ele tem de ver nesse dia”, argumenta. É uma questão polêmica.


 


“Eu acho que existe um público em potencial nas quartas e quintas para as peças que só estão sexta, sábado e domingo”, acredita Denise Fraga. “Trabalha-se muito nessa cidade e as pessoas têm vontade de ir ao teatro depois do expediente. Só que, muitas vezes, a peça que se gostaria de ver não está em cartaz naquele dia”, afirma.


 


“Há várias questões imbricadas e acho importante fazer um histórico disso, ver onde começa”, diz Tolentino. “A televisão começou por exigir a terça e a quarta dos atores para gravar novela e, assim, as temporadas foram encurtando. Os donos dos teatros não poderiam ficar com as casas ociosas e começaram a criar horários alternativos.”


 


O diretor do teatro de Higienópolis concorda com esse histórico. “Com o tempo, as gravações começaram a tomar até as sextas. Aí o administrador do teatro tem de escolher: o ator famoso traz bilheteria, mas só pode fazer duas apresentações”, afirma Korik.


 


Vale lembrar que em Buenos Aires chega a 200 o número de peças numa semana. E a mesma pulverização ocorre com o chamado teatro independente. Mas existe a cena oficial — pelo menos três grandes companhias com elenco fixo recebendo salários com muitas horas de dedicação ao palco. Cria-se aí um padrão de qualidade que forma público e atores.


 


“Uma coisa é a rotatividade na Praça Roosevelt que tem características de cena alternativa. Outra coisa é o teatro da Broadway com suas várias sessões semanais. Pode-se gostar mais de um ou de outro. Importa é que são modelos diferentes”, diz Tolentino.


 


Talvez esse seja um aspecto importante: sob a diversidade da oferta, uma padronização aparece — a pulverização generalizada. Uma prática de alto risco, caso a descontinuidade signifique mesmo queda de qualidade.