Quartim de Moraes: Único erro da URSS foi reconhecer Israel
Em entrevista ao jornal cearence O Povo, publicada neste sábado (18), o cientista político Quartim de Moraes faz críticas ao Estado de Israel. Diz que o reconhecimento do Estado judeu foi “o único erro da política externa” da antiga URSS. Ta
Publicado 20/04/2009 16:41
O cientista político João Quartim de Moraes, 67 anos, professor da Unicamp e doutor pela Fundação Nacional de Ciências Políticas (França), disse que “o único erro da política externa” da antiga União Soviética foi ter reconhecido o Estado de Israel na votação da Assembléia-Geral da ONU, em 1948. “Nós sabemos que aquilo (a votação) foi arrancado. Subornaram paisezinhos, que estavam endividados. Os famosos quatro votos que faltavam”.
Quartim de Moraes classificou de “criminosa”, “genocida” a operação israelense contra a Faixa de Gaza, em janeiro, antes da posse de Barack Obama. Ele esteve em Fortaleza para participar do Seminário Genocídio na Palestina e as Perspectivas de Paz, no último dia 14, na Casa Amarela. O coronel-aviador da reserva Sued Lima, do Observatório das Nacionalidades da UFC, acompanhou o professor na visita ao jornal O Povo.
Como analisa o conflito israelo-palestino nessa nova fase internacional: com Barack Obama na Presidência dos EUA?
Quartim de Moraes – A agressão genocida à Faixa de Gaza foi desencadeada antes de Obama se tornar presidente dos EUA. Quem sabe, isso não é fortuito. Como Israel age em perfeita – tão perfeita quanto possível, porque nada é absoluto – consonância com o governo da Casa Branca e Pentágono, provavelmente teria entendido que era o momento de uma grande e odiosa expedição punitiva. Calcula-se, por baixo, 1.500 mortos, boa parte dos quais crianças e mulheres, um dos piores crimes contra a humanidade perpetrados nos últimos tempos. Com a posse de Obama, ficaria mais difícil. O custo político seria maior. Quanto à operação punitiva, no complexo de fatores que motiva decisão política dessas, o interesse do analista é saber qual o mais importante. A decisão de encarar a cena mundial, num contexto que não poderia fazer isso em silêncio, que a chance de cada corpo estraçalhado aparecer seria grande. Israel, os ativistas dessa guerra de terror. Porque o objetivo não poderia ser outro, além desse. Vamos imaginar o quê? Tomar Gaza, eles já tomaram. Exterminar, também não. O objetivo bélico era aterrorizar. Era mesmo expedição punitiva, para causar grande destruição, e ganhar, entre aspas, sossego por mais alguns meses. Quem sabe, ironicamente, cinicamente, não sei o adjetivo ou o advérbio, o objetivo de fato era continuar ganhando tempo. Você destrói a água, casa: ‘Em vez de eles estarem amolando a gente, vão ter que construir casa, de novo, vão ter que enterrar os mortos deles, vão ter que levar criancinhas na cadeira de roda, vão se ocupando com os danos que nós causamos a eles’.
Mas a pergunta inicial era: como fica o conflito nesse novo quadro internacional, com a ascensão do presidente Obama.
Quartim de Moraes – Eu desloquei, porque os israelenses achavam isso: com Obama seria mais difícil. Desencadear a operação logo que Obama tomasse posse iria complicar mais as relações com os EUA. E os princípios que Israel se mantém são esses: há um limite para desobedecer os EUA e esse limite tem que ser visto com muito cuidado, porque sem os EUA aquilo não dura. Estamos diante de um oficial de carreira (dirigindo-se ao coronel-aviador Sued Lima), que conhece bem isso, se eu falar besteira, você me corrige. Manutenção de peça, treinamento. Eles (Israel) são ponta-de-lança, prolongamento dos EUA ali. Eu até me autocritiquei quando disse que Israel era uma base estadunidense no Oriente Médio. É mais do que uma base.É como se fosse mais um estado da federação estadunidense, informal, não é nem um “estado livre e associado” como Porto Rico. Voltando à questão, o único governante estadunidense que teve atitude firme com relação a Israel foi o general Eisenhower, quando em 1956, na Guerra de Suez, com a ocupação de territórios do Egito, Israel quis saber as condições para a retirada, ele respondeu: ‘Como um estado que agride os outros vai impor condições? Tem que se retirar’. Com Obama, eu não creio que será diferente. Ele, de fato, procura marcar diferença em relação ao Bush, mas faz a política que convém à hegemonia estadunidense. Vai continuar isso, de maneira mais concentrada, menos raivosa, mais lúcida, definindo melhor os seus objetivos. Sai do Iraque em um ano e meio, em compensação reforça a posição no Afeganistão.
Um governo palestino mais pragmático, mais laico, não facilitaria as coisas?
Quartim de Moraes – Quem matou Arafat, que era laico? Acho que eles querem destruir mesmo. O efeito dessas intervenções de Israel e dos EUA na região é suscitar compromisso ou uma resistência com um interlocutor fundamentalista. No Iraque, destruíram o regime do Baath (partido iraquiano panarabista ao qual pertencia Saddam Hussein). É o fundo do poço no momento em que eles destroem as lideranças, as direções civis. Esse esquema aconteceu desde a intervenção primeira dos talibãs, no tempo dos soviéticos, quando havia ali o poder vermelho. Naquela época, se via garotas nas ruas. Com quem o Reagan se aliou? Com os talibãs. Com os que depois viraram inimigos e são acusados pelos atentados de 11 de setembro de 2001. Bin Laden. Al-Qaeda. Quem financiou essa gente? Os EUA. A CIA. Eu digo em aula: vocês têm grande fonte de documentação: aquele enlatado Rambo 3. Tem que ver numa perspectiva diferente. Os talibãs são apresentados ali como heróis, ‘guerrilheiros da liberdade´, como dizia o Reagan.
Com o novo governo de Israel, mais à direita, como vai ficar o quadro?
Quartim de Moraes – Eu desejaria que gente mais equilibrada estivesse ali. Mas, o que vamos esperar desse governo em relação à Gaza? Algo pior do que o outro, do Kadima (partido que formava o governo anterior), fez? Não. Há muito jogo de cena. A diferença é mais em questão interna israelense. Há gente que tem posição pacifista, mas é uma minoria cada vez mais silenciosa. Outros são trapalhões, como esse Amoz Hoz (escritor israelense), que posa de pacifista….
Essa questão dos foguetes lançados pelo Hamas contra Israel não teria dado motivo para a operação na Faixa de Gaza?
QM – Irrita muito, eles dizem: “Estão nos desafiando”. Mas têm (os foguetes) fraquíssimo poder ofensivo. Se eu estou na minha casa e alguém joga uma pedra, não vai matar ninguém, mas eu vou ficar bravo. O problema é a resposta desproporcional. É criminosa, do ponto de vista tudo o que se tentou fazer nos últimos 65 anos, Tribunal de Nuremberg, etc.
Alguns grupos como o Hamas questionam a existência do Estado de Israel. Esse questionamento não prejudica as coisas?
QM – O mesmo argumento de antes: quem matou Arafat? Arafat reconhecia o Estado de Israel. Por que o Sharon atormentou tanto Arafat? Não é dizer que matou, mandou envenenar à maneira florentina, mandou um chocolate envenenado, não. Isolou, impediu socorros médicos, só não matou com um tiro, mas levou o homem à morte. Eles querem negociação, se eles mataram justamente o interlocutor que iria negociar com eles? (…) Eu nado contra a corrente, mas digo que o único erro grave da política externa da União Soviética foi o reconhecimento do Estado de Israel. Nós sabemos que aquilo foi arrancado, subornaram paisezinhos, que estavam endividados. Os famosos quatro votos que faltavam.
Há possibilidade de paz?
QM – Na configuração atual de Israel é muito difícil. Vou traduzir comentário de um sírio radicado em Paris, Majed Mehné, na revista Afrique-Asie, na reportagem intitulada ‘Guerra dos Covardes’, quando a Tzipi Livni foi a Paris durante o massacre (de Gaza) e retomou fraseologia nauseabunda, dizendo que seu exército defendia em Gaza ‘os valores morais do Ocidente´. O Barak, não o Barack Obama, mas o israelense Ehudi Barak, tido como ‘moderado´, sobre o massacre de Gaza, que terminou com 1.500 mortos palestinos, a maioria civis, e dez soldados israelenses, teve o cinismo de dizer: ‘O Tzahal (exército deles) é um exército moral e ético’. O comentário (de Majed Mehné) analisa a base, a origem ideológica do sionismo: os dirigentes israelenses nesse começo do século 21 retomam idéias de Teodor Herzl que, no século 19, dizia: ‘Na Palestina seremos uma parte da muralha da Europa contra a Ásia, seremos a vanguarda da civilização contra a barbárie´. Veja o que disse a Livni em Paris: ‘Israel defende em Gaza os valores morais do Ocidente?.