Amos Gitai: a generosidade para além dos muros de Israel
Aplaudido de pé por alguns e vaiado ferozmente por outros por suas reflexões políticas explosivas, Amos Gitai, mito supremo do cinema israelense, ganha de presente dos cariocas por seus 35 anos de carreira uma mostra que revisita polêmicas éticas e estéticas urdidas em curtas e longasmetragens. Nesta terça-feira, o documentário Arena da Morte (Zirat Ha’Rezach), lançado por Gitai em 1996, inaugura a mostra O Cinema além Muros, que fica em cartaz até o dia 23 na Caixa Cultural.
Publicado 11/08/2009 18:27
A retrospectiva aproxima a obra do maior cineasta de Israel à de outro ícone audiovisual do Oriente Médio: o iraniano Abbas Kiarostami. Em entrevista por telefone ao jornal O Globo, publicada na segunda-feira (10), Gitai — que concorreu à Palma de Ouro em Cannes com Kadosh (1999), Kippur (2000), Kedma (2002) e Free zone (2005) — expressou orgulho ao dividir uma retrospectiva com o diretor de Gosto de Cereja (1995), de quem é entusiasta.
Carinhoso em relação ao Brasil, preservando predileção por Glauber Rocha — “Considero A Idade da Terra uma das experiências mais selvagens de liberdade nas telas”, diz —, Gitai apresenta nesta conversa reflexões áridas sobre o conflito entre seus conterrâneos e os palestinos.
Seu primeiro trabalho como cineasta, o filme Ahare, está completando 35 anos. Diante de toda a experiência e de todos os prêmios que acumulou desde então, como o senhor avalia o seu papel na história do cinema israelense?
Ao longo de 35 anos, eu fui aprendendo novos processos técnicos que me permitem buscar algo novo. Mas a polêmica e a repulsa que meu ponto de vista sobre Israel por vezes gera ainda me servem de inspiração. Eu não sou um cineasta de berço. Venho da arquitetura, um ofício no qual o aprendizado em relação à geografia que nos cerca é perpétuo. Levo para o cinema o desejo de aprender que a arquitetura me deu, sem me dobrar diante do que reclamam de mim.
A mostra O Cinema Além Muros vai exibir trabalhos raros de sua filmografia, como Wadi (1981) e Uma Casa em Jerusalém (1998). Esses filmes ainda racham opiniões em Israel?
Preservo minhas raízes éticas mesmo diante de rejeições alheias. Acredito que tenho o direito de expressar o que penso, independentemente do que isso provoque. Mas não sou o único a dividir opiniões. Se vocês percorrerem a trajetória integral do Cinema Novo brasileiro vão perceber que seus realizadores ora filmaram com absoluto realismo, ora na base plena do delírio.
Alguns gostaram dessa variação. Outros reagiram a ela com incômodo. Isso é normal em qualquer cinematografia que tenha diretores com uma visão própria do que é a arte de filmar. Cinema para mim é um diário onde eu relato a história do meu país. Cada filme é uma página a mais nessas memórias que registro.
Esse exercício o aproxima de Abbas Kiarostami, diretor iraniano cujos filmes dividem a mostra da Caixa Cultural com o senhor?
Gosto muito de Kiarostami, porque sempre que se volta para a área rural do Irã, ele busca fragmentos de realidade para construir uma linguagem. E são sempre fragmentos personalizados em indivíduos. Kiarostami é um diretor que imerge na realidade sem rejeitar a busca por uma expressão formal nova. Nesse ponto, ele e eu nos encontramos no mesmo tronco de cineastas, embora nossos objetos se diferenciem. Dispensamos fórmulas, dispensamos o recurso da animação. Aprendi isso com diretores que admiro, como Rossellini e Fassbinder, artistas que pegam as camadas do processo histórico como ponto de partida para a construção da narrativa.
Mas o processo histórico do qual o senhor parte é particularmente violento. Como essa violência vira linguagem?
Sou israelense. Sou parte de um grupo, os judeus, que vive sob a sombra perene do deslocamento forçado. Ao longo dos séculos, diferentes nações eliminaram a concentração judaica na Europa. E isso é mais antigo do que o Holocausto e prosseguiu depois dele. Nossa diáspora começou bem antes do Holocausto e não parou.
Em Israel, existem comunidades que precisam se unir para sobreviver para além de um sentimento de comunhão referente a laços mais ancestrais. No Oriente Médio, em qualquer país, é o fardo do passado que lapida o futuro, não o presente. É por isso que eu filmo. Filmo porque o cinema me oferece a possibilidade de flagrar, a partir da câmera, como o passado talha os passos que vamos seguir, inclusive os passos políticos.
E como o senhor encara a posição palestina diante desse jugo do passado?
Sou um israelense que deseja a paz, assim como existem numerosos palestinos desejando a harmonia. O problema na questão entre nossas culturas é que ambos os lados perderam oportunidades cruciais para resolver suas diferenças. Quando aparece uma liderança palestina moderada, vem uma representação israelense intransigente. Isso levou nossa relação e mesmo nosso conflito a um desgaste.
Sabe onde esse desgaste transparece? Na visão de que estamos em negociação. Povos em crise não negociam. Negociar é um verbo que se aplica ao comércio. Negociar é um verbo que alguém que fabrica sapatos usa em relação a alguém que deseja comprar um calçado. A palavra precisa que falta entre nós é generosidade. Generosidade é essencial à vida.
A mídia favorece essa medida da generosidade?
Tanto israelenses quanto palestinos tentaram converter a mídia a seu favor. Mas a mídia é traiçoeira e intoxicou os dois lados. Ela transformou um convívio tenso em uma novela, um folhetim.
Seus últimos filmes, como Mais Tarde Compreenderás e La guerre des fils de la lumière contre les fils des ténèbres, que estreia agora no Festival de Locarno, na Suíça, trouxeram a diva francesa Jeanne Moreau no elenco. Qual é a sua relação com a estrela de Jules et Jim?
Fiz vários filmes a partir do olhar de mulheres. Com uma grandeza à altura de Marlene Dietrich, Jeanne é uma mulher curiosa. Eu quero compartilhar sua curiosidade com a plateia a partir de meus filmes.
Quando o senhor pretende visitar o Brasil?
Talvez eu vá para a Mostra de Cinema São Paulo, onde já estive algumas vezes. Ilda (Santiago), a diretora do Festival do Rio, tem reclamado que eu tenho negligenciado vocês, os cariocas. Talvez seja a hora de visitar o Rio.