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A estratégia oculta de Israel para o trabalho dos migrantes

Com número crescente de trabalhadores sentindo as garras da crise das finanças globais, Israel põe em ação outra vez o bicho-papão de sempre: deportação para os trabalhadores não-israelenses.

Por Yonatan Preminger*, para o site Counterpunch

O ministro das Finanças do novo governo, Yuval Steinitz, decidiu que a deportação de 100 mil trabalhadores migrantes melhorará a situação econômica.

Já aconteceu antes. Em 2003, Israel lançou a primeira grande campanha para diminuir o número de "trabalhadores estrangeiros" (ovdim zarim, em hebraico). Em 2009, os trabalhadores preparam-se para outra rodada brutal de ação da infame polícia israelense de imigração.

No mercado de trabalho de Israel, a deportação de "trabalhadores estrangeiros" é sempre seguida de uma correspondente onda de importação de mão-de-obra, para ocupar o lugar dos deportados. Mas, se Israel tem mão-de-obra local abundante, por que sempre prefere importar trabalhadores? Porque os trabalhadores importados não são árabes.

Há cerca de 250 mil trabalhadores migrantes em Israel, a maioria vindos das Filipinas e da Tailândia, para trabalhar sobretudo na agricultura, em serviços domésticos ou na construção. Para país com população de menos de 7,4 milhões de habitantes, é muita gente. Mais da metade desses trabalhadores migrantes são considerados ilegais – uns já ultrapassaram o tempo permitido de permanência; outros são vítimas de fraudes; e alguns violaram os contratos de emprego, muitas vezes não por sua culpa. Com o desemprego aumentando outra vez, pareceria lógico dar trabalho aos cidadãos israelenses, antes de buscar trabalhadores no exterior; mas, como sempre em Israel, o quadro é mais complicado.

A verdade é que Israel vive um dilema antigo. Desde os anos 1980s, quando o país começou um processo de desregulação, para ganhar competitividade nos mercados globais, Israel vive dividido entre o mito da solidariedade de todos os judeus e a empreitada sionista, de um lado; e, de outro lado, as exigências da elite econômica israelense. Em termos claros, trata-se de manter o país aberto só para os judeus, mas também acolher os trabalhadores que se disponham a fazer o serviço sujo em troca de salários de fome.

No passado, Israel empregou árabes como mão-de-obra barata – cidadãos palestinos de Israel e palestinos dos Territórios Ocupados (que não têm cidadania israelense). Depois, nos anos 1990s, ao abrir os olhos para os acordos de Oslo, com a economia israelense em crescimento e aproveitando-se da "calma" advinda da possibilidade de haver paz, os palestinos perceberam que se haviam deixado colher numa armadilha, impedidos de ganhar a vida em Israel pelos meios tradicionais, resultado das novas táticas militares de cerco e fechamento dos Territórios Ocupados. Ao mesmo tempo, também os palestinos-israelenses viam seus empregos desaparecer, à medida que fábricas eram mudadas para outros países e chegavam a Israel levas de milhões de imigrantes judeus russos, que ocupavam todas as vagas nas empresas que ainda necessitavam de mão-de-obra intensiva.

Alterando as prioridades do governo de Israel, a Intifada e a globalização abriram o caminho para os trabalhadores migrantes. Companhias e empresas públicas, propriedade da Histadrut (Federação Geral Estatal do Trabalho de Israel), foram vendidas. Os subsídios do Estado para a agricultura diminuíram ao ritmo em que declinava até o colapso o prestígio do trabalho agrícola. Os novos proprietários das empresas que haviam pertencido à Federação do Trabalho em Israel, as empresas de construção e os fazendeiros passaram a procurar mão-de-obra barata, para competir em mercados já não protegidos. O trabalho migrante serviu exatamente a esse objetivo.

Fazendeiros e empresários da construção explicam que recorrem a trabalhadores estrangeiros, porque não há mão-de-obra local: "Os israelenses não se prestam a esse tipo de trabalho". E assim segue a valsa. A verdade é que, sim, bem poucos israelenses se interessam pelo trabalho mais duro – são os palestinos-israelenses.
Só os palestinos

O "setor árabe", como é conhecido em Israel, luta contra a falta de investimentos e a infra-estrutura inadequada. Antes de 1948, a economia árabe-palestina era predominantemente agrária. Hoje, apenas 4% da população israelense palestina vive da agricultura, e são escassas quaisquer outras vias para ganhar a vida. Poucas cidades árabes têm parques industriais significativos, e a indústria primária, que tradicionalmente empregava árabes, foi transferida para países ocidentais.

Segundo o Gabinete Central de Estatísticas de Israel [ing. Israel’s Central Bureau of Statistics], em 2008 apenas 40% dos homens árabes em idade laboral participavam da força de trabalho, em oposição aos 56% de toda a população israelense e aos apenas 19% das mulheres árabes, para 56% das mulheres judias. Metade dos cidadãos árabes israelenses vivem abaixo da linha de pobreza. Muitos descartam as parcas oportunidades de trabalho, porque trabalhar em Israel hoje não garante a saída do ciclo de pobreza.

E, se esses trabalhadores não existem em número suficiente, há milhares de trabalhadores à espera de oportunidade de trabalho do outro lado da "cerca de segurança", o muro. Israel administrou a Cisjordânia e Gaza desde 1967, inundando os Territórios com seus produtos; assim – propositadamente ou não – impediu o desenvolvimento da indústria local e desestimulou o empreendedorismo. Residentes nos Territórios também trabalham como operários da construção civil, nos serviços de limpeza e na agricultura há 30 anos. Resultado desse processo é uma economia subdesenvolvida na Palestina, inteiramente dependente de Israel, e enorme força-de-trabalho que anseia por trabalhar em Israel.

Prova desse desejo de trabalhar pode ser vista nas grandes inter-secções das estradas, onde palestinos da Cisjordânia postam-se todos os dias, na esperança de ser contratados por alguma empresa israelense. A maioria deles enfrentam risco grave nos arredores dos pontos de controle e ao longo do muro de separação – uma jornada arriscada, várias vezes fatal, de várias horas. Muitos dormem em tentas improvisadas ou em prédios abandonados, a apenas alguns minutos de distância das elegantes avenidas e boulevards de Telavive, e só voltam para casa, na Cisjordânia, nos fins-de-semana.

É difícil estimar o numero de residentes da Cisjordânia que trabalham em Israel. Segundo o "Workers Advice Centre", ONG que atende sobretudo trabalhadores da agricultura e da construção, em 2005 eram cerca de 20 mil trabalhadores legais (com autorização para trabalhar) e praticamente o mesmo número de trabalhadores ilegais. As dificuldades para entrar em território israelense gera condições que permitem aos empregadores israelenses declarar que os palestinos vindos da Cisjordânia não constituem força-de-trabalho confiável.

Além disso, as batidas policiais – pesadelo de todos os trabalhadores palestinos ilegais – visam também a intimidar os trabalhadores e encenar, para os israelenses, quadros em que os palestinos são mostrados como agressivos, perigosos ou ansiosos por se "infiltrarem" em Israel. Os trabalhadores são deportados e podem perder até a minguada chance de trabalhar que tenham tido a sorte de conseguir; mas todos sabem que voltarão, tão logo consigam encontrar alguma brecha no poroso sistema "de segurança": a falta de mão-de-obra em Israel é sempre crescente.

Evidentemente, Israel tem acesso fácil a essa oferta farta de mão-de-obra local. Então, por que mantém tão ampla força de trabalho migrante? A principal razão tem pouco a ver com oferta e demanda de mão-de-obra local; simplesmente, os trabalhadores migrantes são mais baratos e podem ser mais facilmente explorados.
Tailandeses e filipinos

A maioria dos trabalhadores migrantes em Israel são tailandeses, que trabalham na agricultura; e filipinos, sobretudo em serviços domésticos. Muitos chegam endividados, depois de pagar entre 6 e 9 mil dólares a intermediários e pagar impostos (cobrados, embora quase todos os arranjos de emprego sejam ilegais). Mas os salários em Israel são inferiores ao mínimo legal, porque nem todas as muitas horas de trabalho são remuneradas.

Os empregadores dessa força-de-trabalho tampouco pagam os benefícios devidos aos trabalhadores legais (fundos de pensão, licença-saúde, férias anuais ou licença-maternidade). Os trabalhadores migrantes não têm direito a indenização por dispensa sem justa causa, aumentos por tempo de serviço ou horas-extras. Além do mais, o devido ao trabalhador muitas vezes permanece com o empregador, como reembolso por local de moradia e outras despesas.

Os trabalhadores migrantes são legalmente submetidos aos contratos coletivos de trabalho negociados pelo Histadrut, mas a assistência legal é mínima e não há como fazer cumprir a lei, posto que os representantes dos trabalhadores, na maioria dos casos, assumem os interesses do empregador contra o interesse do empregado.

Os governos de Israel e da Tailândia têm mantido contatos com a Organização Internacional para a Migração [ing. International Organisation for Migration, IOM], na esperança de conseguir controlar o mercado negro de mão-de-obra, e a cobrança de taxas de intermediação ou a venda de autorizações para trabalhar, até agora praticamente sem qualquer resultado. Em 2006, o ministro de Negócios Estrangeiros de Israel recusou-se a assinar um acordo com a IOM, mas em 2007 a IOM firmou acordo com a Tailândia, que facilita a supervisão do recrutamento de trabalhadores tailandeses destinados a Israel. Além disso, desde junho de 2008, só são autorizados a entrar no país os trabalhadores emigrados de países que mantêm acordos bilaterais com Israel.

Resta saber se esses acordos conseguirão reduzir a exploração do trabalho dos migrantes. Infelizmente para os trabalhadores, há muitos interesses incorporados no sistema atualmente vigente: muitas agências em Israel e nos países de origem não vêm qualquer vantagem em implantar melhores sistemas de controle, que servirão, sobretudo, para fiscalizar as próprias agências de alocação de migrantes.

De fato, a questão das preferências, no campo da mão-de-obra em Israel, é ainda mais complexa que os cálculos econômicos e tem a ver com a própria identidade dos trabalhadores. Em qualquer discussão sobre o uso da mão-de-obra palestina, sempre se faz ouvir a voz dos interesses ditos "da segurança": "Quando meu pai tinha de trabalhar no campo, ao lado de árabes", diz E., de um kibutz no Norte", saía de casa armado e tinha medo de ser atacado pelas costas. Agora, com os trabalhadores tailandeses, meu pai sente-se mais seguro."

Embora essa não seja a opinião de todos, o governo do primeiro-ministro Ariel Sharon decidiu, em 2005, que, em 2008, os palestinos dos Territórios Ocupados perderiam o direito de trabalhar em território israelense. Manter afastados os trabalhadores palestinos, portanto, é parte de uma política longamente elaborada, carregada de demagogia e preconceitos, que joga com o medo insuflado nos judeus israelenses e que reforça a ideia, distorcida, segundo a qual "nós aqui; e eles lá". É ideia distorcida e equivocada (além de racista), porque Israel está também "lá", posto que não para de construir colônias; e os palestinos estão também "aqui", sob a forma dos cidadãos israelenses palestinos que muitos tentam não ver, mas todos veem.

Mais uma vez, a "segurança" explica apenas pequena parte da história. Afinal de contas, se os trabalhadores conseguem entrar em Israel vindos da Cisjordânia, outros também conseguem – e para objetivos menos confiáveis. Preferir trabalhadores migrantes, à mão-de-obra palestina local serve, de fato, como folha de parreira que só encobre pequena parte da verdade. E a verdade maior é que Israel jamais deixa de pensar, prioritariamente, em reduzir o número de árabes presentes em solo israelense.

A ideologia de manter separadas as economias, para judeus e para árabes, é antiga, vem dos tempos da chegada dos primeiros judeus à Palestina, quando os judeus temiam que a existência do trabalho árabe, mais barato, viesse a desestimular a imigração de judeus europeus. Depois de 1948, começaram as restrições ao direito de ir e vir dos cidadãos árabes, que perduraram até 1966, quando, afinal, chegou ao fim a administração pelos militares. Depois de 1967, os palestinos dos Territórios Ocupados tinham a vantagem de saber "desaparecer" ao final do dia de trabalho; mas, ao mesmo tempo, sua simples existência fazia lembrar que ali havia, como há, uma população – exatamente a evidência que Israel recusava-se a reconhecer.

Os trabalhadores migrantes, por sua vez, não implicam qualquer "ameaça demográfica" – sobretudo porque a polícia da migração trabalha incansavelmente. Mesmo assim, muitos vivem em Israel há muitos anos, e têm filhos que falam hebraico como qualquer criança israelense, embora, algumas vezes, também sejam vistos como presença temporária. A situação já alcança o absurdo absoluto: muitos fazendeiros consideram os tailandeses como presença estável e permanente e mão-de-obra confiável; mas consideram a população nativa, os árabes, como trabalhadores sazonais, precários, que só aparecem nas épocas em que o trabalho escasseia em "suas regiões" (!).

Israel tem tido razoável sucesso no trabalho de despolitizar a questão trabalhista. A contratação de mão-de-obra migrante é vista como questão de caráter exclusivamente econômico; e a questão da identidade, do cerco aos Territórios Ocupados, o "muro de segurança" e o "risco demográfico" (para não falar também dos direitos dos trabalhadores) são tratadas como questões à parte, não relacionadas às questões ditas 'econômicas'.

Assim, apesar da crise econômica e do aumento do desemprego a ela associado, nada sugere que Israel venha a abrir mão de seus "trabalhadores estrangeiros" baratos, para criar mais oportunidades de trabalho para o setor árabe ou para palestinos dos Territórios Ocupados. A situação atual é muito conveniente: a mão-de-obra migrante permite que Israel abra suas fronteiras à economia global, sem por em risco o que Israel entende como sua "identidade judaica" – ao mesmo tempo em que ajuda a preservar o mito de que Israel possa ser país só para judeus.

De fato, Israel conseguiu fazer agora, finalmente, o que jamais antes conseguira, durante todo o tempo em que dependeu do trabalho árabe barato: Israel, agora, conseguiu excluir do mercado de trabalho os árabes israelenses.

*Yonatan Preminger vive em Telavive e trabalha na defesa dos direitos dos trabalhadores. Recebe e-mails em
yonatanpreminger@yahoo.co.uk.

Fonte: Blog Vi o Mundo, a partir de http://www.counterpunch.org/