Tia Marta: Símbolo de proteção dos estudantes na Ditadura

Leia a seguir a entrevista publicada nesta segunda-feira (24/10) nas Páginas Azuis do jornal O Povo com a Tia Marta, mulher simples mas que como uma leoa defendia os estudantes do DCE da UFC nos duros anos da ditadura militar.

Marta Maria viu a ditadura militar de dentro do prédio antigo na esquina das ruas General Sampaio e Clarindo de Queiroz, Centro, destinado ao Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Ceará (UFC); de dentro do coração de mãe. Sem filhos biológicos nem marido, dedicou a madureza aos estudantes e ativistas políticos desde a década de 1970.

Desceu as escadas do prédio às carreiras umas quantas vezes: era preciso salvar os meninos dela do cassetete, da ignorância e da (dita)Dura. Chora quando lembra, mas não está sozinha, os marmanjos militantes não economizam lágrimas quando chamam ainda hoje: Tia Marta.

Mas é de direita – e ninguém lhe bula nos votos. Ainda com 16 anos, quando tirou os primeiros documentos, foi induzida a votar a mando do patrão. Desde então, estava decidido: quem vota é ela, quem sabe é ela. Por isso, ama os meninos, mas vota no Lúcio Alcântara, no Marcos Cals, no Tasso Je reissati. E não pede segredo a ninguém.

Dentro do DCE, o regime é diferente: “É parlamentarista, a chefia do Estado é dela. Se ela dissesse que não queria ninguém lá no dia seguinte, ninguém desobedecia. No pico das carteiras de estudante, pra ela deixar a gente dormir lá, era um deus nos acuda!”, lembra risonho um dos meninos da Tia Marta, hoje servidor público federal, Armando Pinheiro, de 34 anos.

Tinhosa, a negra magra dos olhos azuis nem aparenta nem sente os 78 anos levados nas cozinhas dos outros. Samba ainda, gosta ainda dos saltos altos e desanda a caminhar pelo Centro sozinha, quando lhe apetece, para ver o movimento das praças.

O POVO: Espera, tia. O gravador.

Tia Marta: Minha vida foi um romance. A senhora que me criou, quando eu nasci, era pobre demais. Naquela seca, passava fome, eu também. Ela pedia leite nas casas pra me dar. Quando eu tava mais crescida, chegou outra senhora, com mais condição, e me pediu pra criar. Era professora. Naquele tempo, professor não tinha muito valor, mas ganhava mais um pouquinho do que a outra. Eu já tinha oito anos. Um dia, ela disse numa festinha do colégio (onde trabalhava): “Se Deus quiser, eu faço dela uma professora”. Mas que nada, eu ia fazer nove anos, ela morreu. Uma prima dela morava em Picos (a 308 quilômetros de Teresina-PI) e me levou pra lá. O marido dela não sossegava no canto. Então, a gente viajava pro Rio, pra São Paulo… Quando eu ia fazer 12 anos, tava em Picos, uma pessoa daqui de Fortaleza, um senhor que comprava mercadoria do Piauí pra vender aqui, perguntou: “Olha, não quer que eu leve essa menina pra se empregar em Fortaleza, não? Lá tem muita casa de família que precisa de uma pessoa pra cuidar de criança, limpar, cozinhar”. Olha a responsabilidade da pessoa, não sabia pra quem tava me entregando. A minha mãe era mulher da vida, fui criada por outra mulher da vida (antes da professora). Eu só sei que, quando eu cheguei aqui, nunca se importaram com a minha idade. Só quando veio a eleição. A senhora que eu morava com ela, o marido dela era metido com negócio de política. Um dia, ele veio falar comigo, com a lavadeira, com os filhos da lavadeira: “Vocês vão votar comigo”. Eu lá sabia o que era deputado, vereador… Imbecil. Meu documento foi tirado com 16 anos, pra eu votar. Quer dizer, 16 anos, como eu sei? Nessa época. A data do nascimento, disseram: “Diz aí qualquer uma”.

E a senhora votou no homem?

Votamos! A gente tudo trabalhava pra ele. Dessa época pra cá, fui entendendo o que era política, o que era voto. A gente estudava à noite. Depois do trabalho.

Quando chegou nesse prédio, já era o DCE (Diretório Central dos Estudantes)? Foi muito tempo depois do primeiro voto?

Já. Eu já estava crescida, cozinhava, ia fazer 18 anos. Lembro como se fosse hoje. Um dia, chegou um rapaz e uma moça lá, perguntando se a dona Maria, minha patroa, não conhecia uma moça chamada Marta, porque eles estavam precisando de uma cozinheira pro Restaurante Universitário. Ela não fez questão de eu ir trabalhar num negócio seguro, da Universidade Federal. Eu fui. Mas eu não tinha onde morar, porque eu trabalhava em casa de família. Mas a dona Rita Parente, o marido dela era do Piauí, seu Neiva Santos. Eu fui lá: “Dona Rita, me arranjaram um emprego federal, mas eu não tenho onde morar”. Devo isso a ela, morei lá. Então, de dia eu trabalhava no Restaurante; de tarde, ia pra casa dela. Mas era outra coisa naquele tempo, o restaurante.

Está maior?

Maior, mais alinhado. A partir dos banheiros, você já vê, tá arrumado demais. Era limpo, mas não como hoje, com chuveiro, pia. Nessa época, não tinha. O ordenado da gente foi melhorando, porque no começo era muito pouco. Um dia… Ô, eu queria saber os anos, mas minha cabeça não tem. Um dia, o diretor da cozinha chegou e disse: “Talvez ainda vão sentir falta, mas é isso mesmo. Olha, o Restaurante não vai mais ter pessoas para cozinhar. Agora, uma firma vai tomar de conta da comida do estudante, e vocês vão se aposentar”. Eu tinha 52 anos. No dia seguinte, fomos entregar o setor pro diretor, e um estudante falou: “Precisamos de uma pessoa para tomar de conta do DCE”. Eu disse: “Eu vou”. Eu não tinha onde morar. À tarde, quando saí de lá, passei aqui. Ele me mostrou tudo: era sujo (encomprida o “u”).

Quem era o estudante?

Era Dimas, o diretor do DCE. E desde cedo o povo me chamava de tia, eu negra jovem! (risada) Mas eu adoro o estudante, não ligo. Ave Maria, o estudante é o meu povo, a minha gente. Então, ele disse: “Tia Marta, a senhora não limpa nada. A senhora só cuida, vive aqui”. Na época, era o reitor Leite, ele mandou ajeitar o DCE, depois veio fazer visita aqui e me chamou de Tia Marta. Todo mundo, minha filha.

A senhora sabia o que era DCE quando veio morar aqui?

Não, sabia nada. Depois foi que eu entendi. DCE é o Diretório Central dos Estudantes! Onde eles guardam os livros e os papéis deles, lá na outra sala. Os móveis cheios de papel, né? (Faz a pilha da papelada com as mãos altas sobre a cabeça.) Desde os antigos, guardavam. Aqui também é pra quando fazem inauguração, reunião, festa.

E como foi a convivência com esse monte de estudante?

Ótimo. Nesse tempo todo, nunca tive diferença com estudante. Se eu disser que estudante é chato, ruim, eu estou injusta com Deus. Todo estudante que chega aqui é me abraçando. Se eles têm as chateações, é só com eles.

E quando tinha de impor moral à casa?

Ah, moral tinha demais! Um dia, logo no primeiro, chegaram pra fazer reunião na sala deles, lá embaixo. Eu chamei o chefe, porque sempre tem um chefe, sabe? O estudante que manda nos estudantes todos. E eu disse… – porque nessa época já se falava na maconha. O que é maconha, hein?

Não é um negócio que se fuma?

Pois é. “São três coisas pra respeitar na casa”, eu disse. “Não fumem maconha; senão, eu levo pra Reitoria”, porque eu ouvia dizer que era perigoso, a Polícia pegar e tudo. “Também não façam bebedeira, pra dar escândalo no meio do mundo. Nem tragam menina pra transar aqui dentro. Isso eu não vou aceitar. O resto…”. Quando precisavam de mim, fazia almoço bacana, jantar. Farofa, arroz, macarrão, macarronada, feijão, porco, frango. Eles faziam a cotinha, eu comprava os temperos. Mas, minha querida, eu vou lhe dizer uma coisa, chega eu tenho saudade (embarga a voz, baixa o rosto e começa o choro). Saudades dos que morreram e dos que foram embora de Fortaleza.

Com quem conversamos, todos se emocionaram quando falaram da senhora. Mas dentro dessa história de moral dentro da casa, eles falaram que tinha um facão no meio.

(Abre as pernas e bate palmas, a risada rouca espreme os olhos e enverga o pescoço pra trás.) Ô meninos sem-vergonha, pois eles num foram enredar do facão! Ainda hoje o facão ta aí!

E qual era a serventia desse facão?

Deixa eu te mostrar! (Vai até o quarto ligeiro, se agacha em frente ao armário e saca um facão com uns 30 centímetros de lâmina, toda enferrujada.) Fica aqui embaixo, perto de mim. Eu dizia: “Olha, no dia que negro chegar aqui e quiser desmoralizar a casa, esse facão aqui é pra cortar…” (e aponta pro meio das minhas pernas). “Vixe, tia!”. É (faz o gesto de quem capa sem dó nem piedade). “Deixar a gente sem isso aqui, é melhor matar logo!”, eles diziam (e sai do quarto rindo, com o facão debaixo do braço).

Aí todo mundo se aquietava.

E morria de rir.

Tia Marta, e dos meninos da senhora, viu algum ser preso?

Vi. No tempo da ditadura. Não lembro o nome, porque foram muitos.

E o que eles fizeram pra irem presos?

Nada! Só metiam a língua no Governo. Só isso. Aqui, no Restaurante Universitário, na faculdade. Às vezes, eles estavam falando, a Polícia chegava.

E aqui, a Polícia já entrou?

Não. Eu vi muito na praça, eles apanharem. E eu, parece mentira, mas me doeu tanto, que eu desci daqui (e chora). Era um sargento véi, gordo. E eu: “Ô, meu Deus do céu. Faça isso não, sargento de Nossa Senhora! Não bata nele, não, ele não merece isso, não” (a voz embargada). E ele: “Você só não apanha mais porque essa senhora tá aqui, vagabundo!”.

A senhora gosta de comunista?

Não tenho raiva de ninguém, mas não me dou com comunista. Se precisar, faço jantar e almoço pra comunista, mas não me dou. Não tenho laço de amizade.

E os seus meninos não eram comunistas?

Não! Nem todos! E quem era, a gente não sabia.

E o que é o comunista?

É quem não acredita no Governo, tem raiva de quem trabalha do lado do povo, da escola, da educação.

Mas os estudantes não eram contra o Governo?

Uns. Não todos. E quem era não atacava os outros aqui dentro.

Por que ser comunista é ruim?

Eu acho que comunista não quer que as pessoas estudem.

A senhora votou no Lula?

Não. O Lula é comunista.

Dos meninos da senhora, algum se tornou político e a senhora votou nele?

Não. Daqui só quem partiu pra política foi a Luizianne (Lins, prefeita de Fortaleza). Não votei nela, mas não tenho nada contra.

E esses pôsteres do Lúcio Alcântara no quarto?

Eu voto nele. Os estudantes aqui não ligam pro que eu faço. Nunca pediram: “Tia, vota em fulano”. Não. Nem a Luizianne. Ela dizia assim: “Quem acha que eu mereço, vote”.

Os meninos se escondiam da Polícia aqui dentro?

Escondia. Um dia, era tarde, eu tava dormindo e um deles chegou: “Tia, lá vem os diabo!”. Era a Polícia, bem nessa esquina, mas não entraram. Eu desci, eles disseram: “Esse vagabundos não têm o que fazer”. “Doutor”, eu disse pra eles: “Seus filhos também precisam estudar. Isso é coisa de menino novo”. “Que nada, senhora. Eles pensam que mandam no mundo. Não mandam, não!”, eles disseram. Ainda veio bem aqui (pega na garganta) pra eu dizer: “Quem não manda é o senhor!”. Mas fiquei calada; senão, ia presa.

E a senhora participava das passeatas?

Nunca. Não podia perder o moral.

E a vida fora dessa casa? Pelas fotos no quarto, pela decoração, a senhora parece caprichosa, vaidosa. Quando jovem, como a senhora gostava de se divertir?

Todos os anos, por cinco anos, eu ia desfilar na escola de samba do Rio (de Janeiro). Ficava na casa de uma colega, a Luíza, ela era da Beija-Flor. Quando eu era pequena, nós não ia pra lá (Rio)? Eu conhecia as escolas de samba. A mulher que me criou não gostava de carnaval, mas não se importava de a gente ir olhar. Depois daqui (do DCE), comecei a ganhar meu dinheiro, juntava o ano todo, no carnaval, ia pra lá. Fui cinco anos.

E samba ainda hoje?

Ô! Ainda hoje. Até de manhã! Mas hoje menos.

E a senhora namorou?

Namorei e fui noiva. Com 15 anos. A gente ia casar em dezembro, ele morreu em novembro. Naquele tempo, o namoro não era o de hoje. A gente tinha aquela vontade de possuir aquele homem dentro de casa, cuidando dele, ele da gente. Depois disso, pedi a Deus: se Ele não me deu quem eu queria tanto bem, não me aparecesse outra pessoa. Mas até hoje, eu velha, aparece. Juro por Deus do Céu. Dia de domingo, eu vou pra Praça do Ferreira só. Ô!

Mas namorou ou não, depois desse moço?

Não, nunquinha. Arranjei pessoa da minha idade, quem me quis, mas eu não. Me convidavam pra dormir com eles. Eu não sinto vontade nenhuma de dividir minha cama com ninguém. Eu respeito todo mundo, quero ser respeitada.

Os meninos consideram a senhora patrimônio do movimento estudantil fortalezense…

Uma menina me falou que tava falando com eles e dois estudantes choraram quando falaram de Tia Marta (fui eu, pelo telefone, quando marcamos a entrevista). Eu choro também. Besteira.

A senhora considera o DCE um trabalho?

Uma responsabilidade. Cuidar desse lugar e dos estudantes é minha responsabilidade.

A senhora tem quantos anos? (o gravador desligado)

Eu não sei. Meus documentos foram tirados como se eu fosse filha de Fortaleza, mas sou do interior do Piauí, Patos (a 357 quilômetros de Teresina). A idade também não tá certa.

Perfil

Marta Maria Pereira, hoje com 78 anos e aposentada, já foi menina negra e magra no interior do Piauí, onde foi abandonada pela mãe, “mulher da vida”, antes mesmo de poder lhe reconhecer o rosto. Do pai, também nunca soube notícias. Viveu da caridade de senhoras que a tomavam para criar e que se perdiam dela ao longo do caminho. Veio parar em Fortaleza com 12 anos, sem parentes nem amigos. E, aos 52, foi quando conseguiu se instalar em casa própria: o DCE da UFC, onde vive até hoje. Quando faz o balanço da vida, gosta das lembranças infantis, mesmo tendo tido tantas dificuldades durante o crescimento: passou fome, não teve mãe nem pai, trabalhou desde cedo. “Eu me fiz pra hoje não precisar pedir dinheiro a ninguém, pra nada”, diz em alto e bom tom, com o nariz lá em cima.

Tia Marta, quando desceu para nos deixar à porta, cumprimentou toda a vizinhança. Levantou o braço magro alto da cabeça e largou: “Diga lá, meu amigo!”. Chamou a Loteria dos Sonhos: “Ei, bicho!”. E pra gente: “É meu amigo também. Graças a Deus, meus vizinhos todos me conhecem”. Ao pé do portão, abria passagem aos estudantes, com beijinhos de cumprimentos.

A senhora do DCE tem os olhos azuis cheios de nuvem. Mirada curiosa deixa o da gente confuso com as manchas negras sem forma nem precisão no azul acinzentado da íris dela. “Negra dos olhos azuis, onde já se viu! É muita invenção”.

Depois da conversa, ofereceu café: “Não sei se é do gosto de vocês, mas faço com todo o prazer”. Durante as pré-entrevistas, os meninos dela asseguraram a qualidade do café, do suco, do baião e do que mais se metesse Tia Marta a inventar dentro da cozinha. Tinham razão quanto ao café.

Tia Marta esquentava a água pro café quando decidiu provar o samba pra gente. Colocou a mão na cintura, rebolou e encabulou a reportagem.

Mesmo as roupas esgarçadas e molhadas da pia, não escondiam a elegância da Tia Marta. Magra e empertigada, não precisou dos flashes pra sentar elegante. Quando o fotógrafo começou a trabalhar, a postura já estava ali, desde o começo.

Pergunda do leitor
Armando Pinheiro, 34, servidor público federal e um dos meninos da tia Marta.

Durante a Ditadura, a senhora foi muito pressionada, interrogada ou se sentiu ameaçada?

Tinha gente que vinha conversar comigo. Eu sabia que era mandado de gente importante de fora. Perguntavam: “Que é que eles veem aqui, tia?”. E eu: “Nada. Fazem nada”. Um dia, eu disse: “Vocês têm tanta raiva de estudante porque eles falam no meio da rua… Vocês um dia vão ter filhos estudantes. Será que vocês gostariam de ver uma Polícia bater neles?”.

Fonte: O Povo