Cardápio modernista: Sopa de mecenas e sapos de sobremesa
Público atraído por Villa-Lobos é traído pelos sapos. Este pode ser um modo sucinto de descrever a nonagenária Semana de Arte Moderna, inaugurada dia 13 de fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo. O auditório estava lotado de amantes da música clássica quando Ronald de Carvalho invadiu a festa e declamou “Os sapos”, de Manuel Bandeira, crítica implacável ao parnasianismo, escola poética igualmente implacável nas regras de concepção.
Por Christiane Marcondes
Publicado 13/02/2012 19:10

As vaias demolidoras não impediram “Os sapos” de darem um salto definitivo ao futuro, não só da produção artística, mas da sociedade e da política dos anos 1920: “O modernismo, comunismo e industrialização são movimentos que se consolidaram na mesma época, frutos do mesmo momento histórico. Os imigrantes trouxeram novas ideias sociais, os artistas que iam à Europa voltavam com novos paradigmas, tudo foi se articulando ao mesmo tempo e mudando o pensamento de uma época”, diz Mazé Leite, artista plástica, cronista e crítica de arte, em entrevista exclusiva ao Vermelho.
Mazé explica que a Semana, um ataque frontal à elite “conservadora e brega paulistana”, é pioneira, mas não um fato isolado. Antes e depois, o modernismo já estava se construindo ao sabor de ventos ao norte do Equador: “Desde a Revolução Russa de 1917, o Brasil vivia um período pródigo de ´ismos`, com novidades a cada semana na arte e na política. A cultura refletia essa agitação, já que ela espelha a sociedade ”.
A Escola Nacional de Artes, no Rio de Janeiro, conduzia com rédeas curtas a produção artística na capital da República, seus alunos tinham compromissos com a estética formal endossada pelos cânones clássicos, por isso São Paulo foi palco do novo: “A cidade era uma província”, conta Mazé.
Semana de 22: Exaltar o passado não é moderno
Antropofagia: jantando o mecenas
Bem verdade que já existia nas paragens de Piratininga um reduto fundamental de produção e discussão artística — a Villa Kyrial — inaugurado em 1904 pelo senador e mecenas José de Freitas Valle. Por vocação, Valle era admirador e guardião dos ideais da "Belle Époque", mas entrou para a história como o grande cúmplice da irreverência modernista, afinal, bancou os estudos de Anita Malfatti na Alemanha e ela voltou “expresionista”, montando em 1917 a exposição que horrorizou Monteiro Lobato. Foi o primeiro suspiro da Semana que viria.
Sinal de que o modernismo tinha premissas estrangeiras? Mazé responde: “Ainda antes da Anita, temos o Almeida Junior, que eu considero um pré-modernista com seu conjunto de obras, da qual destaco “Caipira”. Formado na Escola Nacional de Belas Artes, ele precisou ir a Paris para redescobrir o Brasil e sofreu as mesmas influências de Anita: romantismo, realismo, expressionismo e impressionismo”.
Ou seja, depois de devorar um caldeirão de tendências internacionais, o modernismo enfim incorporou o espírito nacionalista, não exatamente em 1922. Carlos Drummond de Andrade publicou o poema “Uma pedra no meio do caminho”, ícone do movimento, em 1927. Em 1928, Mário de Andrade publicou “Macunaíma” e Oswald de Andrade, “O manifesto antropofágico”. Nas artes plásticas, imigrantes italianos da mesma época estavam lançando em São Paulo uma arte figurativa que reproduzia a labuta e agruras dos operários. Mazé Leite os descreve: “Um bom exemplo desse grupo de imigrantes italianos é o Alfredo Volpi, que era operário e da mesma geração dos modernistas, mas produziu longe da movimentação da casa do Freitas Valle, por isso só vai aparecer por volta de 1927”.
Carlos Callioli, Pedro Corona e Aldo Bonadei eram do mesmo grupo de Volpi, cita Mazé, que, olhando em retrospectiva, afirma ainda que a Semana de Arte Moderna foi mais importante pelo barulho que fez do que pela arte que apresentou: “Essa produção foi só um recorte, era um movimento da burguesia”.
Artistas e a simpatia pela esquerda
A crise de 1929, que levou a grande depressão aos Estados Unidos e ao mundo, acabou de vez com o ranço elitista do modernismo em São Paulo. O socialismo e a obra com crítica social, ligada ao povo, assumiram a frente das artes. Assim, pode-se dizer que a crise econômica teve um saldo civilizatório positivo no Brasil e o modernismo se espalhou como pólvora, junto com a industrialização.
Vieram Graciliano Ramos, Di Cavalcanti, Portinari e Jorge Amado, além dos pensados, como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda. Desses, a maioria esmagadora era simpática ao socialismo, mesmo os que se filiaram e depois se desfiliaram do Partido Comunista, como o Drummond. “Nos anos 1930, os intelectuais em todo o mundo simpatizavam com os movimentos da esquerda, porque tinham em comum o sonho de uma sociedade justa. Por isso a maior preocupação da CIA, até os anos 1950, era rastrear artistas envolvidos com esse tipo de idéia. Foram três décadas de forte engajamento… artistas, intelectuais e o povo estavam todos do mesmo lado”, exalta Mazé.
Alimento cultural e o sonho de justiça
Ao ressaltar o fato, a artista plástica lamenta que, com o passar do tempo, o comunismo tenha se afastado da arte: “Sempre me preocupa a pouca atenção que o partido dá à cultura, porque não é possível mudar uma sociedade sem mudar sua cultura”.
Mazé deixa como mensagem final: “90 anos depois da Semana, é tempo de a arte e o movimento político se darem, novamente, as mãos. Nós temos que reconhecer a importância que esse segmento tem porque o artista está envolvido até a medula no social e pode mobilizar multidões. A Virada Cultural de 2011, em São Paulo, reuniu quatro milhões de pessoas. O público gosta de consumir produtos culturais, ir a exposições, shows, cinema, teatro é parte do ser humano e esses eventos representam um alimento tão importante quanto a comida. Despertam a consciência social e crítica", conclui Mazé.