Medicina Virtual: Mundos de mentira promovem curas de verdade
A medicina começa a fazer uso da moderna tecnologia da realidade virtual para o tratamento de males tão variados como fobias, autismo, paralisias, obesidade e outros distúrbios alimentares. Os resultados são tão animadores que alguns especialistas já afirmam que, depois de incorporar a realidade virtual, a medicina nunca mais será a mesma
Por Luis Pellegrini, no Brasil 247
Publicado 20/11/2012 14:53
Minha amiga Alice sente pavor quando qualquer animal alado voa nas proximidades. Uma inofensiva mariposa que passa sobre sua cabeça faz com ela perca completamente o autocontrole, levando-a a gritar por socorro e procurar abrigo não importa onde esteja.
Fui testemunha ocular: certa ocasião, num restaurante, um filhote de passarinho entrou voando pela janela e pôs-se a dar voltas, desorientado, batendo nas paredes do salão. Num piscar de olhos Alice foi se esconder debaixo da mesa ao mesmo tempo em que gritava: “Tirem esse bicho daqui, tirem esse bicho daqui!” Um escândalo que os demais presentes não poderão esquecer.
Fora essa fobia irracional, responsável por um sem número de vexames, Alice é uma mulher totalmente normal, alegre e muito inteligente. Ela sabe que um pobre animalzinho voador não pode lhe fazer mal algum, mesmo que o queira. Não consegue, no entanto, conter o pânico que vem das profundezas do seu inconsciente.
Maremoto eletrônico global
Pois bem: para o problema de Alice, e para uma grande quantidade de outras moléstias de fundo nervoso, psicológico, neurológico ou motor, existe agora uma nova possibilidade de tratamento e cura. Trata-se da Medicina Virtual (MV), uma das mais recentes filhas da revolução da informática que hoje invade o mundo com o ímpeto de um maremoto eletrônico global.
Relatos de tratamentos bem sucedidos com a medicina virtual começam a aparecer nas páginas de publicações médicas especializadas, reacendendo as esperanças de casos até então considerados insolúveis. Uma criança quadriplégica aprende a manipular as imagens e figuras no vídeo de um computador unicamente usando o movimento dos olhos. Um homem paralisado pelo mal de Parkinson descobre que pode andar novamente. Uma mulher que sofre de acrofobia (medo de lugares altos) consegue passar sozinha por uma ponte sobre um precipício. Uma outra, cujo medo às aranhas a obrigava a viver com as portas e janelas da casa hermeticamente trancadas, supera o problema e passa a desfrutar de um novo prazer, o de dormir em barracas no meio de florestas.
MV: filha da realidade virtual
A medicina virtual deriva diretamente da realidade virtual, uma tecnologia recente que, com o uso de computadores, cria ambientes gráficos onde a pessoa pode entrar, mover-se em seu interior, e inclusive interagir com as coisas e as figuras que fazem parte daquele ambiente. E tudo isso, muitas vezes, sem que haja necessidade de sair da própria cadeira.
Nessa tecnologia, computadores de alta resolução são dotados de sistemas óticos que permitem ao espectador ver e também “mergulhar” em mundos ou cenários virtuais tridimensionais. E, uma vez dentro desses mundos, não apenas o sentido da visão é estimulado. Acessórios especiais como luvas, auriculares, propagadores de odores, afetam respectivamente os sentidos do tato, da audição e do olfato. E o conjunto de sensações é completado por cadeiras ou por plataformas móveis onde a pessoa, sentada ou em pé, tem a perfeita ilusão do movimento. Além disso, sensores eletrônicos extremamente aguçados, acoplados ao corpo da pessoa, captam todos os seus movimentos no mundo real – inclusive aqueles involuntários dos músculos, da respiração, dos olhos, das batidas do coração -, permitindo que o computador em resposta mude o mundo virtual. Ao mesmo tempo, instrumentos de “navegação” no mundo virtual, tais como joysticks (bastões de comando) e luvas informatizadas permitem à pessoa explorar e provocar mudanças no mundo virtual.
Indústria do entretenimento
A tecnologia da realidade virtual foi inicialmente usada com finalidades militares, para o treinamento de pilotos em vôos simulados. Foi depois aproveitada pela indústria do entretenimento. Na Disneyworld, em Orlando, Flórida, um dos brinquedos favoritos é hoje o Back to the Future (De volta ao futuro) onde, pela realidade virtual, o espectador se sente literalmente transportado dentro de um veloz carro voador ao mundo ao mesmo tempo belo e apavorante dos dinossauros e outros monstros pré-históricos.
Críticas ferozes à realidade virtual não faltaram. Disseram que ela conduziria à desumanização por alienar as pessoas de si próprias, dos outros, e até da realidade concreta. Disseram inclusive que ela produziria coisas como máquinas de sexo virtual, em que as pessoas – entregues a um delírio masturbatório eletrônico – não mais precisariam de parceiros para terem experiências sexuais completas. Mas, na prática, todos esses temores demonstraram ser em grande parte infundados. A realidade virtual, como qualquer outra descoberta humana, pode ser positiva ou negativa, criativa ou destrutiva, luminosa ou sombria, dependendo do uso que dela se faz. Como a tecnologia da eletricidade: pode acionar as brocas dos dentistas, mas também os aparelhos dos torturadores. Para a medicina, a realidade virtual se apresenta como um meio terapêutico dotado de grande potencial.
Cruzar ruas imaginárias
As experiências parecem demonstrar que, ao nos imergir em mundos que nós mesmos criamos, a realidade virtual fortalece a imaginação, enriquece a capacidade de visualização, e nutre o espírito. À medida em que cruzamos ruas imaginárias, em que enfrentamos na virtualidade os objetos dos nossos medos, em que “voamos” soltos no espaço, nós nos proporcionamos mensagens positivas sobre aquilo que é ou que pode ser real. Essas mensagens podem transformar nossas formas de conexão com nós mesmos, com os outros e com o mundo.
Mensagens positivas podem literalmente nos transformar fisicamente, como descobriram os especialistas da moderna medicina corpo-mente, e comprovando aquilo que desde sempre afirmaram os mestres das grandes religiões e, mais recentemente, os sábios da psicologia e da psicossomática. Ao nos visualizarmos como seres sadios, liberamos em nosso organismo substâncias neuroquímicas que incrementam o sistema imunológico e restauram o equilíbrio hormonal. Como diz o médico e autor Deepak Chopra, “a maneira como você percebe a si mesmo provoca imediatamente imensas mudanças em seu corpo. Se você quiser mudar o seu corpo, comece por mudar a sua atitude consciente em relação a ele”. A medicina virtual, conforme indicam os seus primeiros resultados práticos, permite à pessoa sentir e experimentar a si própria em estado de plena saúde, possibilitando-a compreender e definir o objetivo a ser alcançado.
No nível da psique profunda
Galen R. Brandt, artista performática americana que usa a realidade virtual em seus espetáculos, explica como a experiência virtual acontece no nível da psique profunda: “Esta é a realidade daquilo que é conhecido como ‘interação digital’: a sua imagem torna-se uma extensão da sua identidade. O que acontece a ela, acontece a você. Se nosso ser virtual toca em alguma coisa, nosso ser físico sente-se tocado. Os especialistas em realidade virtual chamam esse fenômeno de vídeo-toque. E quando nosso ser real se funde com nosso ser virtual, não apenas corpos, mas também corações, mentes e almas fundem-se igualmente”.
Tudo isso que Galen R. Brandt quer dizer baseia-se, na verdade, numa das mais importantes descobertas da moderna psicologia: a psique humana não consegue distinguir entre uma experiência objetiva, concreta, e uma experiência subjetiva, virtual. Para ela tanto faz se a experiência ocorre no plano da realidade objetiva, ou no plano subjetivo da fantasia, do sonho, da imaginação, da virtualidade. É por causa dessa descoberta fundamental que as psicoterapias contemporâneas atribuem tanta importância às experiências subjetivas, e foram desenvolvidas técnicas psicológicas que trabalham com elas, como a análise dos sonhos e a técnica da imaginação ativa. A realidade virtual simplesmente potencializa e incrementa a experiência subjetiva, com o uso de aparatos que estimulam concretamente as nossas capacidades sensoriais.
MV e obesidade
A obesidade tem muito a ver com auto-imagem. Se você não gosta do que vê no espelho, pode desenvolver um problema alimentar. Existe uma ligação direta entre a insatisfação com o próprio corpo, com uma auto-imagem distorcida, e patologias alimentares como a anorexia nervosa e a bulimia. O tratamento convencional inclui tentativas cognitivas e comportamentais para melhorar a auto-imagem através da visualização, bem como abordagens visuais em que o paciente vê a si próprio em vídeos e filmes para que perceba como seu corpo realmente é.
O tratamento desses distúrbios pela realidade virtual combina todas essas abordagens. Ao “mergulhar” em programas de computador especialmente criados para tais finalidades, o paciente tem a oportunidade de ver, experimentar, e recriar o seu corpo de várias maneiras – como ele é na realidade concreta, como o paciente teme que ele seja, ou como ele deseja que seu corpo se transforme.
Giuseppe Riva, médico do Laboratório de Tecnologia Aplicada à Psicologia, em Verbania, na Itália, desenvolveu um programa para casos de desordem alimentar que está fazendo furor. Usando um capacete de realidade virtual e bastões de comando, os pacientes entram no programa. Desenhos dos mais diferentes tipos e tamanhos de corpos humanos lhes são apresentados, e eles devem inicialmente comparar esses desenhos com seus próprios corpos, em termos tanto dos tamanhos atuais quanto dos tamanhos ideais. Depois de pesar a si próprios numa escala virtual que marca o seu peso atual, são levados a uma cozinha virtual repleta de tentadoras comidas virtuais que podem tocar e “comer”. São a seguir novamente pesados, e o computador calcula o seu novo peso baseado em suas escolhas alimentares.
São agora conduzidos diante de um grande espelho virtual que reflete a imagem do seu corpo real, previamente filmado e escaneado pelo computador. Chegam então diante de quatro portas de diferentes tamanhos; para seguir adiante, devem escolher a porta adequada para as suas medidas e o seu peso. Finalmente, observam ainda uma vez o seu corpo real e, a seguir, um segundo corpo, maleável, que eles podem mudar – ou “conformar”- em seu corpo ideal. Antes de abandonar o programa, os pacientes comparam ainda uma vez, lado a lado, os seus corpos atual e ideal.
Homens e mulheres que passaram por essa terapia conseguiram reduzir consideravelmente os seus níveis de insatisfação corporal. Além de aprender a melhor selecionar os tipos e quantidades de alimentos que lhes convêm, o simples fato de visualizarem claramente, na sua virtualidade, o seu corpo ideal, passa a constituir para eles um forte estímulo no sentido do autocontrole. O corpo ideal deixa de ser uma abstração obscura para se transformar num objetivo que pode ser alcançado.
MV e fobias
Pavor das alturas (acrofobia), de lugares públicos e espaços descobertos (agorafobia), de voar (aerofobia), de cobras (ofídio-fobia), de aranhas (aracno-fobia), de ambientes fechados(claustrofobia), são apenas alguns dos muitos tipos de medos mórbidos que acometem milhões de pessoas em todo o mundo. O tratamento convencional baseia-se na dessensibilização gradual através da exposição do paciente à situação ou ao objeto que desencadeia a fobia – sempre dentro dos limites que lhe permitem enfrentar o estímulo calmamente. Mas trata-se de uma terapia difícil. Muitos pacientes sentem-se humilhados ou não conseguem controlar o pânico antes que a terapia surta qualquer efeito.
A medicina virtual aumenta as possibilidades de êxito. Nos casos de acrofobia e de claustrofobia, por exemplo, o paciente fóbico utiliza um capacete informatizado e “mergulha” em lugares virtuais fechados ou altos, como balcões suspensos, elevadores, pontes destituídas de proteção lateral, e até em cânions virtuais interligados por uma série de pontes. Ele é submetido a situações de risco e desencadeadoras de ansiedades cada vez mais fortes, mas meios de controle lhe são proporcionados. Pode, por exemplo, utilizar bastões de comando que permitem o controle do movimento dos elevadores virtuais. Os resultados são encorajadores. À medida em que aumenta a familiaridade com a situação, diminui a ansiedade do paciente fóbico.
Uma outra paciente tinha tanto medo de aranhas que, a cada noite, vedava com fita isolante todas as frestas das portas e janelas do seu quarto, guardava cada peça de roupa em sacos plásticos, desinfetava diariamente o carro e, nas raras vezes em que conseguia sair às ruas, só caminhava no meio da calçada, vigiando atentamente os dois lados em busca da presença dos temidos insetos.
Desesperada, procurou o Human Interface Technology Laboratory, na cidade de Seattle, e submeteu-se a uma terapia com o uso do programa de realidade virtual SpiderWorld (Mundo das Aranhas), criado pelos psicólogos Albert Carlin, Suzanne Weghorst e Hunter Hoffman. O programa é um pesadelo virtual onde aranhas de todos os tipos são programadas para subir pelas paredes, correr pelo chão, cair inesperadamente do teto, e saltar quando tocadas. “Mergulhada” naquele mundo virtual cheio de aranhas, a paciente podia manipulá-lo usando uma luva informatizada. Foi-lhe depois proporcionado inclusive um outro estímulo, chamado de “realidade mista”, no qual ela tocava com a mão nua objetos reais em posições que correspondiam aos objetos virtuais que via. Um desses objetos era uma aranha de brinquedo, uma réplica perfeita de uma tarântula come-pássaro da Guiana, que tem o tamanho de uma mão humana.
“Acredito que o fato de poder tocar o objeto da sua fobia alterou para sempre a relação mórbida que a paciente mantinha com esses animais. Foi como apertar a mão do inimigo”, comenta Hoffman, um dos terapeutas que cuidaram dela. A paciente, ao ter alta, desenvolveu inclusive um novo hobby: o camping.
MV e autismo
A Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte desenvolve, no momento, um programa de tratamento de crianças autistas com o uso da realidade virtual. Essas crianças mostram sintomas clássicos de autismo: vivem isoladas, são quase incapazes de falar, desconectadas do mundo ao redor, sentem-se abaladas por qualquer mudança, e facilmente entram em agitação quando se defrontam com as complexidades do mundo. Muitas delas (bem como alguns adultos autistas) nunca conseguiram atravessar uma rua sozinhos. Não percebem a presença de um veículo a passar e que pode atropelá-las.
O programa de realidade virtual preparado para o seu treinamento é relativamente simples: uma rua plana, cinzenta (muitos autistas não conseguem sequer perceber as diferenças entre as cores), com uma calçada; um carro a passar lentamente; um único sinal de trânsito indicando “pare”. Os pacientes “mergulham” na rua virtual com o uso de um capacete informatizado (para surpresa dos pesquisadores, ao cabo de algumas tentativas a maioria deles aceita o uso desse aparato). O capacete, além de introduzir a criança na rua virtual, capta os movimentos da cabeça e do corpo dela, e envia esses sinais para o computador. Este, em resposta, altera o cenário virtual: à medida em que a criança se move para a frente, a rua e o carro parecem se aproximar. Depois de uma série de sessões de treinamento de curta duração, para não estressar a criança, muitas delas passaram a perceber a presença do carro virtual, e a esperar que ele passe para só então continuar se movendo à frente.
MV e paraplegia
Pacientes paraplégicos, vítimas de acidentes ou de paralisia cerebral, muitas vezes têm extrema dificuldade para aprender a manejar a cadeira de rodas elétrica, bem como para se situar e agir no mundo dentro dos limites máximos que lhes são possíveis. Programas de treinamento com o uso da realidade virtual para esses casos estão sendo desenvolvidos pelo Oregon Research Institute (Instituto de Pesquisas do Oregon), órgão do Departamento de Educação do Oregon, na cidade de Eugene, sob a chefia do cientista Dean Inman. São programas complexos e extremamente sofisticados. Requerem tecnologia capaz, entre outras coisas, de captar todos os movimentos musculares voluntários do paciente, como eventuais movimentos dos membros superiores, dos músculos faciais e dos olhos. Esses movimentos são enviados ao computador e, pouco a pouco, o paciente aprende a se mover no mundo virtual onde está “mergulhado”, bem como a modificar a paisagem desse mundo e as coisas que ele contem.
Os resultados, segundo Dean Inman, são mais do que animadores. Além do desenvolvimento das possibilidades motoras do paciente, ocorre em geral uma notável melhora das suas condições psicológicas. “Crianças prisioneiras da imobilidade, confinadas a uma cadeira de rodas, podem tornar-se completamente passivas em relação à vida”, diz Dean Inman. “Quanto antes pudermos proporcionar a elas a alegria da liberdade, da mobilidade independente, mais produtivas elas serão quando adultas. Essa alegria será o seu melhor professor, a sua maior aliada no futuro”.
Realidade virtual e medicina
Se o desenvolvimento das tecnologias que fazem uso da realidade virtual para o treinamento e o tratamento de várias patologias encontra-se hoje em plena curva ascendente, o mesmo se pode dizer da sua utilidade para o treinamento de médicos de variadas especialidades. Usando a tecnologia da realidade virtual cirurgiões executam façanhas dignas dos filmes de ficção científica. Podem “navegar” por dentro de um intestino virtual tridimensional e examinar seus tecidos passo a passo. Podem simular vários procedimentos cirúrgicos, inclusive tratamento de emergência em situações de grandes desastres ou acidentes. Podem operar usando óculos que lhes proporcionam “visão de raio-X”. Podem operar à distância, usando um braço robotizado conectado a instrumentos de comando como bastões ou luvas informatizadas.
No futuro não muito distante, prevê-se a criação de escaneadores que fornecerão imagens tridimensionais instantâneas do interior dos corpos dos pacientes.
Ben Delaney, editor do Cyberedge Journal, uma das principais publicações mundiais especializadas em realidade virtual, diz que “a realidade virtual está sendo usada como ferramenta de cura, e a medicina nunca mais será a mesma. Em minhas viagens como editor pude avaliar meu potencial como cirurgião de laparoscopias, ajudar no planejamento de um ataque radiológico a um tumor cerebral, tocar um pulsante coração virtual, e testar várias alterações do meu rosto a partir de cirurgias plásticas. Robôs já estão realizando cirurgias de quadril. Simulações gráficas interativas – um outro nome para realidade virtual – permitem que você faça viagens tridimensionais no interior do seu próprio corpo dentro de uma “espaçonave” ainda menor que um glóbulo vermelho!”.