Publicado 07/06/2013 08:47 | Editado 04/03/2020 16:28
Domingo passado, num jogo amistoso entre as seleções do Brasil e da Inglaterra, o atacante do Fluminense do Rio de Janeiro, Fred, o Gladiador, marcou o primeiro gol no novo estádio Mário Filho, aliás Arena Maracanã. Quando da inauguração do monumental campo de futebol, num amistoso entre as seleções juvenis do Rio de Janeiro e São Paulo, o meio-campista do dito Fluminense, Didi, o Príncipe Etíope, deitou por terra o goal-keeper sampaulino Osvaldo Pisoni e assinalaria o primeiro tento no placar daquele templo sagrado do futebol association, como diriam os bons spikers do rádio.
Dois momentos distintos, separados por sessenta e três anos, tão diferentes no que diz respeito às táticas empregadas dentro do gramado; quanto ao comportamento da torcida na galera. Patrasmente havia um fosso entre o campo e a geral e nem era preciso. Hoje não há tal valado e torna-se necessário o concurso de um batalhão de policiais para conter a malta enfurecida. Outrora os apostos eram românticos Diamante Negro, Cabecinha de Ouro, Anjo das Pernas Tortas. Hoje são os agressivos Imperador, Fenômeno, Animal, Fabuloso. Tá que o Nelson é bem mais criativo que o Galvão…
O Estádio Municipal do Maracanã havia sido construído na zona norte da Cidade Maravilhosa, às margens do rio do mesmo nome, porque habitado por papagaios que cantavam “semelhantes a um chocalho”, segundo estudiosos do idioma tupi-guarani. Tal riacho cruzava a Floresta da Tijuca e desaguava na Baía de Guanabara. A obra que seria palco da Copa do Mundo de 1950, que seria erguida no local de uma pista de corrida de cavalos, teve seu mais ardoroso crítico o deputado federal Carlos Lacerda, o qual reclamava dos gastos e o queria erguido em Jacarepaguá. Bom, o estádio foi construído em sisudo concreto como era moda e testemunhou glórias & fracassos e importantes eventos esportivos. Como o milésimo gol do cruzmaltino Rei Pelé marcado sobre o Vasco da Gama que tinha como guarda-valas o argentino Andrada; os 333 gols marcados por Zico, o galinho do Quintino; e a malfadada derrota da Seleção Brasileira para o Uruguai em 1950, da qual ninguém está disposto, ainda hoje, a falar. E mais: Missas campais do papa João Paulo II em 1980 e 1997; o memorável espetáculo de Frank Sinatra; o show de Paul McCartney (1990), recorde mundial de público de um cantor solo, segundo o Guinness Book. E, de quebra, apresentações de Madonna, Xuxa e até Sandy e Júnior, passando pela exibição de outro rei, Roberto Carlos em 2009, comemorando seu cinquentenário.
Isso dito serve de preâmbulo, um tanto logo, para falar do tal Príncipe Etíope, pra variar, um apelido posto pelo comentarista Nelson Rodrigues, irmão do outro jornalista, o Mário Rodrigues Filho, o qual apoiou o prefeito Ângelo Mendes de Morais na empreitada colossal, um general inimigo da canalha da Udeene comandada por Lacerda. Nelson Rodrigues, todos sabemos, colocava cognomes em craques, tão desconcertantes quanto o conteúdo de suas crônicas, tão contundentes como os títulos de suas realistas peças de teatro. Príncipe, porque elegante, refinado. Etíope por ser negro. A Etiópia, ex Abssínia, era governada por um imperador, o ditador Hailé Selassié, daí a nobreza. Depois ficamos sabendo que a lei do menor esforço resumira o aposto do craque Didi para tão somente a honraria e a nacionalidade. Mas bem que o velho dramaturgo havia imaginado um “de Rancho” no rabicho do apodo, indicando ser tal príncipe uma caricatura nada encantada do carnaval brasileiro. Pois seja, já que a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, ficava bem ali, na soleira do Maracanã. E que quando o Fluminense entrava em campo com os retintos Didi, Veludo, Escurinho, Waldo e Altair, já sem o providencial (e folclórico) pó de arroz, parecia a gloriosa escola de samba desfilando no sambódromo verde do Maraca. Isto em pleno reinado da, com licença da má palavra, negralhada, a qual, depois do precedente aberto pelo Vasco ao trazer o colored Tesourinha lá dos pampas, os negrinhos bons de bola desceram dos morros e se assentaram no trono do maior estádio do mundo para reinar de fato, desbancando os branquelos e elitistas pernas de paus. Taí Garrincha, Moacir, Rubens, Leônidas, Barbosa, Zózimo, Pompéia, Sabará, Bauer, Djalma Santos, Brandãozinho, Mengálvio, Coutinho, e o próprio Pelé que não nos deixam mentir.
Didi, com seu estilo magistral, criou o passe em profundidade, uma longa trajetória curvilínea como se a bola fosse oval ou ainda de pito e amarrada por cadarços. Foi como que , o protótipo do meia-armador e excelente cobrador de faltas à longa distância. E foi com a lateral do pé direito que, à sombra de imortal chuteira, nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1958, enfiou um petardo no arco do Peru, a tal agora glorificada folha seca que levou a Seleção à Suécia. Onde o Príncipe desencantou e consagrou-se com outro epíteto: “Mister Football”. Nessa época o cidadão Valdir Pereira já estava de mala e cuia no Botafogo do Rio, ao lado de Nilton Santos, Garrincha, Rildo, Pampolinni, Gerson, Quarentinha e Zagalo, a estrela solitária nunca brilhara com igual fulgor.
Então foi contratado a peso de ouro pelo Real Madrid, já bicampeão do mundo, para jogar ao lado de Puskas e Di Stefano que, dizem, o teria boicotado no time de cima, fazendo-o amargar o banco de reservas por uma temporada inteira, ele que tinha sido considerado um dos melhores jogadores da Copa do Chile. Coisa de argentino. Em troca sofreu a maledicência do povo na pele quando da Copa de 70, no México, então treinador da seleção peruana quando teria feito corpo mole diante dos portenhos. Ironia do destino.
Vítima de câncer, Didi em coma, sua companheira, Guiomar, fez a seguinte declaração: “O sonho dele era ensinar algum garoto a fazer a folha seca. Didi reclamava que não via mais ninguém fazer isso”. Sua Alteza voltava a ser o plebeu de Campos dos Goytacazes, embora morasse na Ilha do Governador. O Folha Seca faleceu a 12 de maio de 2001, com 72 anos de idade. Os funerais foram por conta da Confederação Brasileira de Futebol, tipo descarrego de consciência. Muito pouco para quem adorava uma homenagem. Que, em se tratando dele, Didi, o Príncipe Etíope de Rancho, eram justíssimas.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: Jornal O Povo