Bruno Peron: Cultura e leis da natureza

Enquanto governos de alguns países buscam insaciavelmente os aspectos nobilitantes e patrimoniais da cultura (e assim gastam bastante tempo e dinheiro com políticas para restauração de prédios e patrocínio de teatro), os Estados Unidos desenham sua política cultural de maneira muito distinta.

Por Bruno Peron*, em seu blog

Gestores deste país norte-americano entendem a cultura como entretenimento desvinculado do Estado e assim depositam suas canções e filmes em todo o mundo, segundo sugere Paul Tolila em seu livro Cultura e economia (2007). Mas esta visão da cultura como lazer, interpreto eu, fortalece todos os outros setores de políticas públicas nos Estados Unidos. Para dar um exemplo: o uso das redes sociais (Facebook, LinkedIn, Twitter, etc.) – neste sentido, uma prática cultural – fornece a empresas estadunidenses dados completos dos gostos (afetivos, editoriais, musicais, políticos, religiosos, turísticos, etc.) de seus usuários.

A cultura é vistosamente importante na condução de modelos de sociedade. No entanto, é preciso antes esclarecer e ampliar o que se entende por âmbito da cultura.

Ampliarei o significado de cultura em vez de reduzi-lo. Antes disto, exponho qual é o Calcanhar de Aquiles no debate sobre o conceito de cultura.

O tratamento mais comum que se dá à tarefa de entender, explicar e definir cultura é que esta precisa relacionar-se com algo mais para obter sentido porque cultura é geralmente uma dimensão de algo que se administra flexivelmente de acordo com interesses particulares. De fato, cultura requer habitualmente referências para ser entendida porque, do contrário, torna-se uma palavra abstrata, genérica e sem sentido.

Cultura poderia ser tudo e, ao mesmo tempo, nada. Este é o mote dos críticos ao papel da cultura no desenvolvimento e do conservadorismo acadêmico em certas disciplinas que enrijecem seu “núcleo duro” e esquecem-se dos mecanismos do “poder brando”.

No entanto, o grande problema da maioria das definições e interpretações existentes é precisamente a abordagem da cultura em relação a algo mais sem o qual não se pode entendê-la. Por isso, a maioria delas instrumentaliza a cultura e limita-a ao cárcere da linguagem. Assuntos relacionados ao espírito não têm a fluidez que merecem quando se expressam por meio da linguagem.

Devido a este imbróglio conceitual, proponho, em seguida, uma interpretação que reduz o risco de instrumentalizar a cultura ou de circunscrevê-la a um campo de interesses particulares. Estas práticas são muito comuns em órgãos públicos que gerem a cultura ou na expectativa dos lobbies, que todo ano esperam seus orçamentos da Tesouraria (em vez de Ministério) como cães famintos à espera de ração de marca boa.

Sendo assim, minha perspectiva sobre cultura é que a noção clássica sobre a qual tudo que não for natureza é cultura reanima-se pela indagação moderna de uma proposta interpretativa antiga que durou muitos séculos. O filósofo grego Aristóteles, que viveu no século IV a.C., interpretou physis e techné respectivamente como aquilo que não é feito pelos humanos e aquilo que tem origem humana. Porém, a situação moderna a que me refiro explica-se pela cultura como a materialização da disfunção moral e simbólica que a humanidade produz e que nos mantém numa certa distância das leis naturais. A existência de cultura é unicamente justificada como uma expressão deste desajuste entre as leis da humanidade e as leis da natureza. Esta disfunção reduz-se gradualmente quando a cultura torna-se natureza na medida em que a produção do espírito (em suas manifestações humanas) aproxima-se das leis naturais, que ainda são insuficientemente compreendidas e reproduzidas por nós.

Consequentemente, este desajuste é precisamente o que perpetua o termo cultura no plural (culturas) e justifica o uso de adjetivos tais como diversas, plurais, milenares, tradicionais, populares, modernas, cultas, elitistas, hegemônicas, dominantes, subalternas, massivas, universais e seus outros atributos infindáveis. Portanto, qualquer tentativa de delimitar os significados de cultura implica um risco imprudente de transformação do sonho de seus intérpretes clássicos numa quimera dos intérpretes modernos.

Desta forma e para dar um exemplo, a interpretação da justiça fora das leis da natureza é um reducionismo cultural. A aproximação às leis da natureza faz-se, porém, mediante esta redução. Logo entendemos as leis da natureza também de forma reduzida.

Qualquer intento, portanto, de representar as leis da natureza fatalmente revela um dos devaneios da modernidade. Por fim, é notório que as culturas ocidentais que o ser moderno expressa desgastam-se continuamente em angústias.

*Bruno Peron é articulista brasileiro e colaborador do Vermelho.