“Mataram Meu Irmão” Dupla vítima
Em documentário sobre a morte do irmão, cineasta paulista Cristiano Burlan analisa os conflitos familiares e a estrutura social que o vitimou
Publicado 16/01/2014 14:20
Existem as caixas sem reboco, acumuladas umas sobre as outras, na periferia, e as caixas bem planejadas, de janelas envidraçadas, nos bairros classe A e B. Aquelas são típicas dos aglomerados, estas dos bairros centrais. Entre elas existe o abismo entre os abastados e os excluídos. As consequências são a marginalidade, o tráfico de drogas e as execuções cotidianas de jovens, filhos de trabalhadores. Transformar esta tragédia em imagens, encadear entrechos e dotá-los de sentido é a tarefa do cineasta paulista Cristiano Burlan, neste seu filme “Mataram Meu Irmão”.
Não se trata de investigações, mas de um mergulho em sua própria vida. O crime em si e os algozes de seu irmão Rafael (1979/2001), de 22 anos, no bairro Capão Redondo da periferia paulistana, nunca aparecem. Burlan está interessado em situar para o espectador as razões da morte do irmão e busca-as não apenas no envolvimento dele com o roubo de carros e o tráfico de drogas, mas em suas próprias relações familiares. Estas surgem devagar, em um e outro depoimento, até explodir na fala de seu irmão Gustavo.
É Gustavo que mergulha na intrincada teia familiar, centrada no pai, que, segundo ele, entregue ao álcool não atentou para os impasses enfrentados pelos filhos. Cristiano deixa-o solto para desvendar, a partir dele, a tragédia que a todos abateu. Pois além de Rafael, seu outro irmão Tiago, também acabou na rede do crime. Entretanto, o emaranhado familiar se mescla à deficiente estrutura social da periferia: escolas e saúde precárias e falta de estímulos para o jovem escapar ao desemprego e buscar outras saídas.
Das esporádicas incursões ao crime
O resultado deste quadro de exclusão é a revolta do jovem da periferia. Rafael, ao roubar carros em bairros distantes da periferia, insurge-se contra os que se elevam ao estrato superior ao seu. “Era só para zuar. Ele não era violento”, afirma seu primo Anderson. A estas incursões foram acrescentadas outras, mais arriscadas: as de venda de drogas. O que aumentou o risco para sua mulher e os dois filhos pequenos. A tragédia, então, se esclarece.
As ações de Rafael surgem à medida que seus familiares deslindam sua relação com ele e tentam entender o que, de fato, provocou sua morte. Seus depoimentos assumem o caráter de ponto mater de certa juventude da periferia. Ao contrário das demais vítimas, em sua maioria afrodescendente, ele é branco, o que reafirma o caráter de classe da tragédia, que ceiva milhões de vidas dos filhos e netos do proletariado brasileiro. As ruas, as calçadas, o emaranhado de fios, o lixo acumulado nas ruas, as caixas sem reboco, só confirmam a cruel exclusão social.
No entanto, a execução de Rafael é tão só um dos vieses de “Mataram Meu Irmão”. Cristiano ao buscar as motivações da morte do irmão traça sua própria história. Gustavo ajuda o espectador a entendê-la. Diz que, enquanto Rafael mergulhava em suas ações, ele, Cristiano encontrava seu espaço, fora da periferia. Uma forma positiva de dizer que existem outros caminhos, o da afirmação social, ao criar seu próprio espaço. De quem procura entender sua própria gênese e volta para reafirmá-la, em imagens que emocionam como a fala de Rafael de sua cela em Goiânia.
Cristiano ajuda a entender a tragédia
Assim, ao contar sua história, Cristiano usa sua arte para ajudar a juventude da periferia (e não só ela) a compreender a tragédia que o abateu e continua a abater milhares de jovens nos capões redondos brasileiros. Seu filme, desta forma, é documento-verdade que, sem grande equipe e equipamentos, às vezes deriva para suas próprias deficiências de produção e enquadramentos. Isto não lhe tira a contundência, pelo contrário reforça-a. O que vale aqui é como ele cria as dualidades, sem tornar-se didático.
Além disso, sua câmera foge aos retratinhos falantes, de enquadramento em primeiro plano, muitas vezes desvia para o ambiente ao redor. Quando Gustavo analisa as razões da execução de Rafael, a câmera passeia pela praia, detém-se em banhistas, ou enquanto Anderson conta sua relação com o primo, ela flagra o parco movimento das ruas. O clima é de vigilância constante. E o reencontro de Cristiano com a família é o clímax do que poderia ter sido sua vida. A canção dedicada pela sobrinha ao pai, Rafael, o simboliza.
A conclusão do espectador ao deixar o cinema é de que as explosões de rua de junho/julho de 2013 continuam sendo gestadas. A cada invasão de condomínios ou prédios-caixas por enquadrados-sociais, deve-se refletir sobre os jovens dos aglomerados das periferias. A consciência político-ideológica, como diria Lenin (1870/1924), ”ainda não os alcançou”, para organizar-se para as revoltas e mutações radicais que só os deserdados podem desencadear, sem risco de estigmatização como terroristas e vândalos.
“Mataram Meu Irmão”. Brasil. Documentário. 2013. 77 minutos. Montagem: Lincoln Péricles/Cristiano Burlan. Fotografia: Rafael Nobre. Trilha Original: Guilherme e Gustavo Garbato. Direção: Cristiano Burlan.
(*) Festival de Documentários “Tudo É Verdade” 2013. Vencedor da Competição Brasileira.