América Latina: entre a independência e o retorno colonial
No século XXI a América Latina encontra-se na situação de escolher entre aceitar um novo projeto de recolonização ou alcançar sua independência definitiva.
Publicado 02/04/2015 16:53

Ante os avanços continentais com governos que desafiam, em maior ou menor grau, os desígnios imperiais, a situação em nossas dramáticas relações com os Estados Unidos nos coloca em um período similar ao que ocorreu no final da guerra e na derrota dos Estados Unidos no Vietnã.
A atual ofensiva, com ameaças de intervenção direta por parte dos Estados Unidos na Venezuela, onde mantém um golpismo contínuo praticamente desde 2002, intensificado nos últimos dois anos ante a morte de Hugo Chávez Frías (em março de 2013), o grande construtor da unidade latino-americana, ao que se acrescenta um novo esquema contra-insurgente de manter outros processos golpistas duros na Argentina e no Brasil para fragilizar a solidariedade, nos coloca diante de uma ameaça muitas vezes anunciada.
O ocorrido no Afeganistão, Iraque e Líbia, onde apesar do genocídio cometido a resistência não cessa, e a atual intervenção na Síria e na Ucrânia dá conta de que Washington se voltará mais rapidamente sobre o que considera seu quintal (América Latina), como está previsto nos desenhos de seus documentos de Segurança Hemisférica. Mas nada será o mesmo. Sua própria e monumental crise está advertindo-os. Ainda que consolide cada vez mais sua presença militar no Caribe, assegurando outra vez o Canal do Panamá e a passagem do Oceano Atlântico ao Pacífico, cercando a Venezuela com bases militares distribuídas em diferentes países, reativando a IV Frota, apoiando a ilegal presença colonial e militar britânica nas argentinas Ilhas Malvinas, estendendo os alcances e trabalhos da Organização do Tratado do Atlântico Norte, no marco de uma das maiores crises que o sistema capitalista tem vivido, enfrenta a consolidação de governos populares e democráticos na América Latina, como nunca antes havia sucedido.
Suas advertências são evidentes, como o golpe de Estado em Honduras em junho de 2009, país com bases militares estadunidenses, o virtual apoderamento do território haitiano com o envio de barcos, tropas e equipamentos ao Haiti, após o trágico terremoto que sacudiu esse país, deixando 200 mil mortos. Isto demonstra sua ansiedade por reocupar o que considera seu "quintal".
A Unasul moveu-se rapidamente quando foi produzido o golpe contra o presidente Manuel Zelaya Rosales em Honduras, país onde os Estados Unidos mantêm bases militares. O golpe de Honduras é um ensaio de Guerra de Baixa Intensidade aplicando a contra-insurgência nas ações dentro da política interna, que esteve sob controle do ex-embaixador estadunidense John Negroponte, nesse momento representante dos Estados Unidos ante a ONU, que em junho de 2008 já estava trabalhando com o novo método: ganhar a maioria do Congresso, incluindo os deputados oficialistas, por meio de corrupção ou pressão. Conseguir que estes elegessem a Corte Suprema que digitou Negroponte. E, com ambos elementos jogando a seu favor, dar o golpe militar rapidamente sequestrando o presidente, levando-o a uma base militar dos Estados Unidos, para evitar qualquer "problema" e dali retirá-lo ilegalmente do país para a Costa Rica.
Este esquema ficou incorporado para ser aplicado em qualquer país, já que muitos governos deixaram-se "confundir" com o fato de que o Congresso e a Corte apoiassem o golpe. Uma "democracia" contra-insurgente e de Baixa Intensidade quase perfeita, se não fosse pelos crimes cometidos pelos ditadores de plantão e que seguem ocorrendo até hoje.
No decorrer do século dirigiu também o golpe de Estado na Venezuela, com o sequestro do presidente Hugo Chávez em abril de 2002, que foi enfrentado por uma das ações populares mais originais, atuando junto a setores militares, que derrotou o golpismo em horas e repôs em seu cargo o presidente.
Além disso, Washington interveio no desenvolvimento e implementação do golpe civil-provincial – com setores militares de velho cunho – que se tentou contra o presidente da Bolívia, Evo Morales, em setembro de 2008, e que foi derrotado pela imediata ação do povo e da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em uma demonstração avançada de integração, que deixou nas sombras a ineficaz e submissa Organização de Estados Americanos (OEA), a qual foi nomeada pouco tempo após sua criação em 1948, como um verdadeiro "ministério de Colônias".
Porém, já em 2010, não puderam concretizar o golpe contra o presidente Rafael Correa no Equador, onde a decisão com que o presidente enfrentou a situação e a ação da Unasul, em uma mobilização imediata, derrotou a tentativa de usar como uma "sublevação policial" o golpismo, cujas redes repetiam esquemas do passado.
Em março de 2008 algo aconteceu na Argentina, quando começou uma greve patronal – que durou de março até julho – protagonizado por quatro organizações patronais do campo, a principal delas participante em todos os golpes de Estado aqui, que rapidamente tomou um rumo golpista, inclusive tentando desabastecer as cidades e apoiadas por ex-militares das passadas ditaduras.
O início da manobra "destituinte" ou golpista coincidiu com a reunião da extrema-direita mundial na cidade de Rosario, a segunda mais importante do país, na província de Santa Fé, convocada pela Fundação Liberdade, uma das tantas ramificações de entidades como a National Endowment Foundation, NED (conhecida aqui como Fundação para a democracia), de longa história ingerencista, a Agência Internacional para o Desenvolvimento (Usaid) e outras dependentes da Heritagge, autora dos documentos de Santa Fé, entre outras.
O golpe policial, judicial e parlamentar foi aplicado no Paraguai em junho de 2012, onde o presidente Fernando Lugo foi destituído em 24 horas pela velha Corte Suprema do ditador Alfredo Stroessner e o parlamento majoritariamente controlado pelo ex-partido ditatorial (Colorado). Ali também chegaram os chanceleres da Unasul, mas como em Honduras, a debilidade da OEA e a presença de tropas e estabelecimentos militares dos Estados Unidos fortaleceram os golpistas.
Estes últimos anos estiveram marcados pelas denúncias públicas sobre a presença ativa deste emaranhado de fundações e Organizações Não Governamentais (ONGs), mascaradas em partidos políticos aparentemente democráticos e com nomes inovadores, e também sobre a contínua militarização por parte dos Estados Unidos, mantendo e instalando novas bases em pontos estratégicos da região, como é o caso da Colômbia, dispersando o Comando Sul, cuja chefia foi transferida para Fort Benning, Flórida.
Esta dispersão foi criada nos anos 90 quando se reciclou a antiga Guerra de Baixa Intensidade (GBI), esquema de contra-insurgência aplicado desde os anos 60 contra nossos países. Havia-se estabelecido um novo treinamento de tropas para atuarem como Forças de Mobilização Rápida e portanto necessitavam de estabelecimentos militares dispersos, com facilidade de movimentos em territórios próximos, no marco do projeto de controle e domínio de uma região rica em recursos estratégicos e reservas naturais e humanas.
Um panorama sobre a situação da América Latina nos últimos tempos permite ver que o silêncio sobre alguns fatos chaves possibilita a distorção informativa até limites espantosos, o que beneficia substancialmente os planos de ditadura mundial e sua rede midiática.
Comparando o que está ocorrendo na América Latina ante a crise econômico-financeira que se expande pela Europa, adverte-se que a região suporta este momento crítico em melhores condições, mas poucos vasculham a fundo para pôr nomes a este feito.
É justamente por ter resolvido fazer tudo ao contrário do que foi receitado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) nos anos 90 que os países latino-americanos estão melhor posicionados enfrentando com força a crise, entre outros fatos, entre os quais não pode estar ausente o reconhecimento ao que foi a sucessão de rebeliões populares – as quais escassamente menciona-se hoje – contra a ditadura neoliberal imposta sem anestesia.
Há outro tema que é ignorado sistematicamente. E é resultado do retorno ao Estado – o pior pesadelo que os Estados Unidos imaginou e sobre o qual havia advertido copiosamente em seus documentos, como os de Santa Fé 1,2,3,4 – e a possibilidade de demonstrar neste momento crucial como foi importante a decisão de vários dos novos governos em se desfazer da visão única e colonialista da escravidão ao mercado como síntese do capitalismo sem fronteiras nem controle.
Este retorno também possibilitou concretizar após muitas tentativas, esforços e naufrágios, um processo de integração de raízes reais e não fictícias.
Se algo foi silenciado apesar do muito que foi dito nos últimos tempos, é o fato de que se América Latina avançou em seu processo integrador foi pela visão bolivariana de recuperar os antigos projetos de unidade regional, em que a figura do presidente venezuelano Hugo Chávez foi fundamental, já que ao recuperar para o país o controle de seus recursos petroleiros, pôde desenvolver um projeto de intercâmbios impensados, que serviram como uma tábua de salvação para vários países à beira do naufrágio e em diferentes circunstâncias.
Crise energética à vista como as que se perfilavam na Argentina nos anos 2005-2006, ou o plano histórico de resgate aos países mais pobres e frágeis, que puderam acessar a fonte petroleira sem ter que contrair nova dívida e sem ter que caminhar de joelhos para os organismos internacionais, chama-se FMI ou Banco Mundial, foram fatos inéditos e raramente comentados.
Pouco se tem explicado aos povos sobre este fato histórico. Jamais na história regional se havia chegado a tal grau de cooperação, enfrentando à "inevitável" dependência de outros tempos.
A Alba (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América), um processo integrador pouco comum, a Unasul, uma derivação não imaginada há pouco mais de uma década de uma série de projetos naufragados, ou a mais recente criação como o Mercado Comum do Sul (Mercosul), que data dos anos 90, as modificações e mudanças nos organismos já existentes a nível regional, como o Grupo do Rio, e a série de ações que marcam um antes e um depois, até chegar a se propor uma nova Organização mas de Estados Latino-Americanos e Caribenhos. Tudo tem se passado no marco de uma dinâmica que não dá tempo para a reflexão.
Mas é necessária a hora de saber por que os Estados Unidos "necessita" destruir estes processos renovadores.
O confronto é duro, mas agora não há mais remédio que reconhecer que esta América que está construindo outro esquema econômico financeiro, a sua maneira, com sua própria aprendizagem, um verdadeiro processo emancipatório, tem outras formas para resistir aos embates de tentar recolonizar a região, como enfrentou a crise dos últimos tempos.
As lembranças do passado, das ditaduras de todo tipo instaladas pelos Estados Unidos, que custaram um genocídio à região no século XX, são ainda lacerantes e sobre esse passado se começou a construir um novo mundo e as maiorias têm expressado sua vontade de não voltar atrás. Nunca Mais.
Fonte: Prensa Latina