Faz escuro, mas ele canta
A poesia oferece muitos caminhos ao poeta, caminhos de se achar, e caminhos de se perder, caminhos de alarido e silêncio, de paz e transtorno, levitação e queda livre, luz e trevas “mais noite que a noite” – nas palavras de García Lorca.
Por Jeosafá Gonçalves, especial para o Vermelho
Publicado 11/03/2016 13:27

Num país em que as contradições e desigualdades sociais escrevem uma crônica de mais de meio milênio, era inevitável que, mais dia menos dia, um poeta de sandálias rústicas e vestes brancas amassasse o barro de um desses caminhos. Quando a poesia de Thiago de Mello chegou ao sudeste, nos anos 1950, prenhe da umidade vegetal da Amazônia, foi como se um desarranjo climático sutil perturbasse o fluxo que o modernismo desencadeara com suas sucessivas e contraditórias gerações, desde a Semana de Arte Moderna.
Se o caminho seguido pelo poeta inicialmente viajou o terreno difícil e tantas vezes solitário do indivíduo em busca dos porquês de tudo, aos poucos a poesia o foi seduzindo para o chão em que a planta nasce vistosa, mas ao qual homens, mulheres e crianças estão atados como escravos. De uma poesia mais reflexiva, a ser fruída em silêncio, Thiago de Mello parte para a canção solidária do homem e da mulher do trabalho – e dos meninos e meninas que “dormem com fome sobre o tapete de riqueza da floresta”.
Essa poesia já liberta do projeto estético inicial, se solta por campos, rios, ares e cidades; expande-se pelas rotas e paisagens da geografia do Brasil e não para: dá sua enorme contribuição ao boom literário da América Latina dos anos 1960 e 1970.
Sem desprender as raízes do solo amazônico, a poesia de Thiago de Mello lançou galhos, ramos, folhas, flores e frutos do Prata ao Rio Bravo, das planícies às cordilheiras, navegando ainda pelas águas quentes das Antilhas, com seus furacões e revoluções. Nos versos do poeta, amadurecidos pelo exílio no Chile, divisam-se os caminhos líquidos da Amazônia e do Brasil que levam a uma América Latina fraterna, integrada cultural, econômica e politicamente – sonho generoso de sua geração, ao qual somente os anos 2000 deram novo impulso.

Thiago de Mello e Pablo Neruda em Valparaíso, no Chile, em 1962
Assim como ocorreu com seu amigo Pablo Neruda, do qual foi tradutor, os caminhos oferecidos pela poesia levavam do quintal de casa ao mundo, mas não sem antes passar pelo terreno inundado das florestas, pela paisagem árida devorada pela fome, pelos picos gelados dos Andes colossais.
Colombo já tinha descoberto a América, mas quem a revelou aos latino-americanos pelo ângulo da literatura foi essa geração, à qual o mundo deve a lufada de oxigênio que vivificou a literatura mundial, e à qual pertencem Thiago de Mello, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, García Marquez, Juan Rulfo, Mario Benedetti, Octavio Paz, Manuel Scorza entre tantos outros que dá até tristeza aqui não citar. Todos eles viveram em países de regimes autoritários e ousaram lançar seus braços para além-fronteira, em busca de uma humanidade que superasse as estruturas sociais arcaicas, que pesam sobre a América Latina como uma maldição. Todos eles, cada um a seu modo, em diversos momentos, disseram-se para si, e para os próximos: “Faz escuro mas eu canto” – verso de pura resistência, mas que embute uma promessa, quiçá uma profecia.