O "Não" cidadão à reforma belicista da Constituição de Itália
As propostas anti-constitucionais de Matteo Renzi foram amplamente derrotadas e arrastaram a sua demissão de primeiro-ministro. Mas os objectivos destas reformas não eram apenas do governo. Eram de toda a classe dominante, e a suas repercussões em política interna são inseparáveis das de política externa. Contra o artigo 11º, cujo “repúdio da guerra” é violado pela integração italiana na escalada de guerra dos EUA e da Otan.
Por Manlio Dinucci, no Il Manifesto
Publicado 13/12/2016 19:33

Em franco desafio aos meios do poder, alinhados com o primeiro-ministro Matteo Renzi, a maioria dos italianos deitou por terra o plano de reforma anticonstitucional redigido por este chefe de governo. Mas para que este acontecimento abra realmente um novo caminho para a Itália é necessário outro "Não" de importância fundamental: um "Não" à "reforma" belicista contra o Artigo 11º, um dos pilares essenciais da Constituição italiana [1].
As opções econômicas e em matéria de política interna apresentadas por Renzi e rejeitadas pela maioria dos italianos estão na realidade indissoluvelmente vinculadas às da política exterior e militar. As primeiras correspondem às segundas. Quando nos propõem, acertadamente, aumentar os gastos sociais, não se pode ignorar que a Itália dilapida cada dia em gastos militares 55 milhões de euros – valor disponibilizado pela Otan mas que na realidade é muito mais elevado. Quando se pede, com toda a razão, que a cidadania tenha voz e voto em matéria de política interna, não se pode ignorar o facto de que não tem direito a pronunciar-se quanto à política exterior, que continua orientada para a guerra.
Enquanto se desenvolvia com grande estrondo a campanha sobre o referendo, observou-se um silêncio quase total sobre o anuncio feito em princípios de Novembro pelo almirante estado-unidense Backer: "A estação terrestre do MUOS, em Niscemi, que cobre grande parte de Europa e África, está já em atividade."
Instalada pelo gigante estadunidense da indústria de guerra General Dynamics, com rendimentos que ascendem a US$ 30 bilhões ao ano, a estação de Niscemi, na Sicília, é uma das 4 estações terrestres do sistema MUOS, as outras 3 encontrando-se na Virgínia, Havai e Austrália. Através dos satélites da Lockheed Martin – outro gigante da industria de guerra estadunidense, com rendimentos que ascendem a US$ 45 bilhões – o MUOS liga a rede de comando do Pentágono com submarinos e navios de guerra, caças-bombardeiros e drones, bem como veículos militares e destacamentos terrestres em movimento em qualquer lugar do mundo onde se encontrem.
A entrada em serviço da estação do MUOS de Niscemi reforça a função da Itália como trampolim para o início das operações militares dos EUA e da Otan em direcção ao sul e ao leste, na altura em que os EUA se preparam para instalar em solo italiano as suas novas bombas nucleares B61-12.
Durante a campanha sobre o referendo, também se observou um silencio praticamente total sobre o "plano para a defesa europeia" apresentado por Federica Mogherini, plano que prevê o uso de grupos de combate capazes de se projetar, em 10 dias, a distâncias de até 6 mil quilômetros da Europa. O maior desses grupos de combate, cuja "nação guia" seria a Itália, realizou durante a segunda metade de Novembro o exercício "European Wind 2016" na província [italiana] de Udine. Participaram nesse exercício 1,5 mil soldados de Itália, Áustria, Croácia, Eslovênia e Hungria. O grupo de combate que a Itália lidera foi certificado como força em plena capacidade operacional e está pronto para ser lançado, a partir de Janeiro, em "áreas de crise", principalmente no leste da Europa.
Para evitar qualquer mal-entendido com Washington, Federica Mogherini precisou que isso "não significa criar um exército europeu mas dispor de mais cooperação por uma defesa mais eficaz em plena complementaridade com a Otan", o que é uma maneira de dizer que a União Europeia quer fortalecer-se no plano militar mantendo-se sob as ordens dos EUA no seio da Otan, aliança militar a que pertencem 22 dos 28 países membros da União Europeia.
Entretanto, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, agradeceu ao presidente eleito dos EUA, Donald Trump, por "ter mencionado a questão dos gastos militares" e precisou que "apesar dos progressos realizados quanto à repartição dos encargos, ainda ficou muito por fazer".
Por outras palavras, os países europeus membros da Otan terão que assumir gastos militares muito mais elevados. De modo que os 55 milhões de euros que os italianos pagamos cada dia para o setor militar irão aumentar dentro em pouco. Mas sobre esse assunto não haverá referendo.
[1] O Artigo 11º da Constituição italiana estipula que: "a Itália repudia a guerra como instrumento de ataque contra a liberdade dos demais povos e como meio de resolução das controvérsias internacionais; é consciente, em condições de igualdade com os demais Estados, das limitações de soberania necessárias para um ordenamento que garanta a paz e a justiça entre as nações; promove e favorece as organizações internacionais orientadas para esse fim."