Estados de paixão

Fim de tarde, belo pôr-do-sol, cadeiras na calçada e no horizonte a Serra do Curral. Fiquei em dúvida sobre o que conversar no Dia dos Namorados. Explico-me. Dias 6 e 7 de junho, aconteceu em Brasília a Conferência Nacional de Mulheres

Mas a crônica sai no Dia dos Namorados, data e temática deveras importantes, apesar da mercantilização abusiva e de outros deméritos. O namoro é um momento em que as pessoas estão em estado de paixão. O mundo dos afetos não é importante? O namoro, em tese, é o período do estado de paixão correspondido. Ora, paixão é paixão. Quem nunca teve “umas”? Inexplicáveis, doces, amargas, insidiosas, adoráveis… e um mar de adrenalina e endorfina. Quando correspondidas, então, nem se fala! Superficialidades de início de amor parecem coisas densas. Ver, ouvir, pegar, sentir… Precisa dizer mais?

Vamos encarar? Há um nexo em uma conversa que vai do “Lobby do batom” à Plataforma Feminista versus relações de gênero, afetividades intragênero e Dia dos Namorados? A impossibilidade de estabelecer uma ponte entre as duas temáticas só está na cabeça de gente dura (hard). Urge vislumbrar que a luta da mulher por cidadania tem a ver com as relações afetivas também. É preciso ser solt@, leve e livre (fashion)… Ai meus sais, que Aldo Rabelo não nos ouça! Aqui “cai como uma luva” o célebre slogan feminista: “O pessoal é político”. Há no Dia dos Namorados conotação política relevante.

As pessoas deslumbrantes são movidas à paixão. Por alguém, pela humanidade, pela ciência, pelas causas e pelas lutas. Garra, tão desejada e endeusada, difere de paixão? As relações de gênero têm mudado no mundo do trabalho, na vida familiar e afetiva. O cenário é o novo papel da mulher na sociedade, fruto da conquista dos direitos femininos em um contexto incompatível com visões e posturas patriarcais. Fala-se que os homens estão com dificuldade de lidar com a nova mulher, pois têm sido socializados para a convivência com uma mulher em extinção: submissa e à espera do provedor.

A realidade ressoa nos meios jovens, cuja sabedoria, inventou o “ficar” – que massageia o ego e não amarra compromisso para além – versão da “amizade colorida” dos anos 1980, cuja principal variante na época era o “casamento aberto”. Conhece o polêmico e sofisticado “amor de percentagem”? Iluminada idéia, que “joga no vento” uma antiga miragem, calcada na constatação da impossibilidade de encontrar 100% de nossas aspirações afetivas em uma só pessoa. Conquistar cota de 100% significa ter a coragem de vivenciar 10% aqui e outro tanto acolá, em regime de monogamia sucessiva ou na vivência simultânea das percentagens. É um caminho que revolucionariza as relações afetivas e pode suplantar o gérmen do abominável sentimento de propriedade privada relativo às pessoas, em suas versões hetero, gay e lésbica. Confessemos, é possível amar, ao mesmo tempo, em diferentes temperaturas (ou percentuais?), várias pessoas e nem sempre precisamos optar por apenas uma. Alguma dúvida?

Há ensinamentos libertários de rara sensibilidade em todas as gerações. Simone Grilo Diniz relata, no artigo “Envelhecendo” (Presença da Mulher, jan-fev.mar, 93), que em O Amor nos Tempos do Cólera, “Ofélia, ao desconfiar do namoro da mãe setentona e viúva, decreta: ‘O amor na nossa idade já é ridículo, mas na idade deles é uma porcaria. A mãe, Firmina, não deixa por menos: ‘Faz quase um século, me cagaram a vida com este pobre homem, porque éramos jovens, agora querem repetir a dose porque somos demasiado velhos. Que vão à merda. Se nós viúvas temos alguma vantagem, é que já não resta ninguém que nos dê ordens’”.

Eis outra história paradigmática. A vereadora feminista Jô Moraes foi procurada por uma liderança comunitária belorizontina, que estava acompanhada de sua mãe. Fora espancada pelo marido e não sabia como agir. Era doloroso ver uma guerreira arrebentada e indefesa. Era fã da Delegacia de Mulheres e para lá levava mulheres do seu bairro para “dar queixas” de seus algozes. A mãe, que permenecera calada, diz: “Eu já disse a ela que homem quando deixa de dar prazer a gente larga. Insistir é perder tempo”. Captou o sentido da sutileza da experiência? E arrematou: “Mulher só é considerada liberta quando pode dizer: em minha casa não quero cueca nem na cadeira quanto mais na gaveta!” Pura apologia do direito ao prazer e à liberdade, fluindo da boca da sabedoria popular.

Está na praça uma nova mulher. O homem contemporâneo está preso a padrões culturais patriarcais. José Carlos Ruy, em “A crise do homem” (Presença da Mulher, jan-fev-mar, 93), afirma que eles estão fragilizados e perdidos, pois “A luta da mulher contra a discriminação leva à redefinição de sua situação e do papel do homem nas relações afetivas e na redistribuição de tarefas e atribuições sociais – e familiares – entre os sexos. O macho é uma criação cultural, um produto histórico do desenvolvimento humano, e deverá ser superado por esse mesmo desenvolvimento”. A Plataforma Feminista, oriunda da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, é um aporte à luta milenar pelo direito ao prazer, à felicidade e à liberdade, na vida pública e privada.

Nota

Artigo escrito em 12 de junho de 2002.

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