O colapso de Doha e o desenvolvimento desigual das nações

O colapso da Rodada de Doha revelou uma mudança de qualidade na intervenção e no peso político relativo das nações no mundo e em especial no âmbito da Organização Internacional do Comércio (OMC). Foi-se a época em que os Estados Unidos e a Europa ditavam

Contou para o fiasco das negociações, entre outras razões, o fato de que China e Índia, liderando dezenas de outras nações, não aceitaram a imposição de regras que poderiam comprometer o crescimento industrial e a soberania alimentar dos países ditos emergentes e menos desenvolvidos. O peso relativo da Ásia no comércio internacional cresceu muito e já não é possível ignorar os interesses da região no debate sobre as normas que devem presidir o comércio exterior.


 


 


Ascensão da China


 


 


Cabe ressaltar o papel da China, carro-chefe do continente oriental, que fez valer a sua condição de grande potência emergente, não se dobrou à pressão americana e européia e uniu-se à Índia para proteger os seus próprios e legítimos interesses, que também correspondiam aos anseios da maioria dos 153 membros da OMC. “A China começou a mostrar o peso que tem e a agir com desenvoltura”, constatou o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim (1).


 


 


A alteração nas relações entre Estados que transpareceu nas negociações em Genebra é um desdobramento histórico natural do desenvolvimento desigual das nações, que conforme já assinalava o líder da revolução soviética, V. I. Lênin, em seus escritos sobre o imperialismo, atua como uma lei implacável na evolução das sociedades modernas, revolucionando (às vezes de forma discreta) a correlação de forças entre as potências e a geopolítica internacional.


 


 


Crescimento e estagnação


 


 


Num pólo deste desenvolvimento desigual, temos a economia chinesa, que cresce de forma ininterrupta, sem crises, há mais de 30 anos e numa velocidade estonteante. Desde 1978, a expansão média do PIB chinês se situa em torno de 10% ao ano. Mais significativo do que o desempenho da produção interna, e também mais relevante para a projeção internacional da mais próspera nação asiática, é o crescimento do comércio exterior que faz a China avançar rapidamente (ultimamente à razão de 20% ao ano) para o primeiro lugar no ranking das exportações globais, posição que deve alcançar ainda no curso deste ano. 


 


 


Em contrapartida, noutro pólo, as potências capitalistas tradicionais (EUA, Japão e Alemanha, principalmente) amargam um progressivo declínio das taxas de crescimento da produção (interna) desde os anos 70 do século passado. O ritmo de expansão do PIB no antigo G-7 (2) cai a cada ciclo econômico e oscila hoje em torno de míseros 2% ao ano, configurando uma nítida tendência à estagnação.
Parasitismo


 


 


Novidade revolucionária


 


 


Esta anemia econômica, provocada lá no fundo pelo parasitismo social, conduz inapelavelmente à perda do peso e da força relativa dessas potências no comércio internacional, o que é verdade principalmente para os Estados Unidos. A potência que ainda hoje é hegemônica na ordem imperialista mundial já respondeu por mais de 50% das exportações mundiais no pós-guerra, mas submersa num lento e inexorável declínio histórico escorregou no ano passado para o terceiro lugar no ranking, ficando atrás da a China e da Alemanha, com vendas equivalendo a apenas cerca de 8% do total.


 


 


Ao longo dos últimos anos, o desenvolvimento desigual fez com que o eixo da dinâmica da produção industrial e do comércio internacional migrasse do Ocidente para o Oriente e dos Estados Unidos para a China. Eis a grande e revolucionária novidade que invadiu a cena no teatro internacional e vai ser determinante dos dramas vindouros.


 


A importância relativa da economia estadunidense no mundo caiu de forma sensível, embora ainda seja grande. Isto também fica evidente nos efeitos da crise financeira americana nas economias ditas emergentes, que embora negativos até agora não foram tão dramáticos quanto no passado.


 


 


Em contraste com o declínio americano, a relevância do crescimento da economia chinesa para o mundo está em franca ascensão. Não fosse o desempenho da China e outros “emergentes” asiáticos, com destaque para a Índia, a situação da economia mundial seria bem mais crítica.


 


 


Ideologia cínica


 


 


Os idealistas podem lamentar o fracasso de Doha em nome dos benefícios teóricos do livre comércio, mas a verdade contida nos fatos históricos é que o livre comércio nunca passou de uma ideologia reacionária e cínica a serviço dos países mais ricos, uma ideologia dotada de dois pesos e duas medidas. As potências capitalistas adoram recomendar e, se possível, impor o livre comércio às nações mais pobres, mas nunca abriram mão do protecionismo.


 


 


EUA, Inglaterra e Alemanha avançaram na industrialização protegendo suas indústrias da concorrência estrangeira; Em nome da segurança nacional, sempre alimentaram seus fazendeiros com gordos subsídios que dificultam o desenvolvimento de muitas nações africanas, asiáticas e latino-americanas.



 


 


Direito ao desenvolvimento


 


 


O que a China defendeu, ao lado da Índia, Venezuela e Argentina, entre outros países, foi o direito dos mais fracos de também recorrer a salvaguardas para proteger suas economias (indústria e agricultura) no momento em que se sentirem ameaçadas pela concorrência estrangeira, o direito a caminhar na direção de um desenvolvimento soberano que todas as atuais potências conquistaram e desfrutaram no passado. 


 


 


De todo modo, o colapso de Doha não deve ser apreciado apenas como o fracasso de uma exaustiva negociação comercial iniciada em novembro de 2001 e o prenúncio do recrudescimento do protecionismo. Na verdade, é mais que isto. É um acontecimento que integra um cenário mais amplo de decomposição da ordem capitalista internacional, um fenômeno que está intimamente associado, por exemplo, à queda persistente do padrão dólar.


 


 


Nova ordem mundial


 


 


Corrompido pelo parasitismo e pelos desequilíbrios comerciais e financeiros da economia norte-americana, o dólar já não consegue cumprir o papel de moeda internacional. Sua depreciação é a principal causa da inflação mundial, conforme alertaram especialistas da OPEP em recente relatório. A ordem monetária internacional não pode mais ser ancorada na supremacia do dólar e clama por mudança. 


 


 


Também não é só a OMC, herdeira do GATT, que dá precoces sinais de senilidade. Também o FMI e o Banco Mundial perderam a relevância e são reconhecidamente impotentes frente à crise financeira irradiada dos EUA, estimulada pela extravagante necessidade de financiamento externo do parasitismo cultivado por Tio Sam.


 


 


Crise de hegemonia


 


 


Caminhamos sobre os destroços de Bretton Woods, no ritmo da crise da hegemonia estadunidense. Avulta a necessidade objetiva de uma nova ordem econômica internacional. O colapso de Doha é mais um sinal disto. Talvez a ascensão econômica e o crescente protagonismo da China no mundo, associados às mudanças políticas em desenvolvimento na América Latina, sejam os clarins do futuro.  O mundo está em mutação e ingressou num processo de transição, embora ainda sem direção.
 


 


Não vale a pena chorar por Doha. A crise da ordem imperialista hegemonizada pelos EUA deve inspirar as forças revolucionárias e os amantes da paz a renovar a esperança de mudanças mais radicais e redobrar o esforço de conscientização e mobilização na luta para derrotar o unilateralismo e o imperialismo (que como disse Chávez, citando Lênin, não é senão a última etapa do capitalismo) e construir um novo sistema de relações entre as classes e as nações, fundado não apenas nos interesses comerciais ou na maximização dos lucros, mas sobretudo na solidariedade; na complementaridade; no combate às injustiças e discriminações; no reconhecimento das assimetrias; no respeito do direito à soberania e autodeterminação dos povos; na preservação do meio ambiente e na valorização do trabalho.
 
 


 


Nota


 


1-     A declaração do ministro foi reproduzida originalmente pelo jornalista Jamil Chade, correspondente de “O Estado de São Paulo” em Genebra, no artigo intitulado “China assume o papel de potência” (publicado dia 30-7, página B7), cujo primeiro parágrafo, reproduzido adiante, ressalta a nova posição da China: “Em meio ao fracasso, um sinal quase revolucionário no mundo. A China desembarcou em /genebra para as reuniões desta semana com um novo perfil: o de potência comercial e disposta, pela primeira vez em 60 anos, a colocar todo seu peso para moldar um resultado final”. Na mesma entrevista, Celso Amorim sugeriu a mudança na qualidade do cenário internacional, observando que “antes” (das atuais negociações da Rodada de Doha) “os acordos eram basicamente negociados por americanos e europeus”


 


2-     Criado nos anos 1970, o G-7 reunia as sete economias capitalistas mais desenvolvidas (EUA, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Canadá e Itália), mais tarde, após a dissolução da União Soviética, foi transformado no atual e não menos decadente e irrelevante G-8, com a incorporação da Rússia ao antigo G-7

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