“Hotel Atlântico”: lições do mundo real
Filme da diretora brasileira Suzana Amaral discute a alienação trazida pela exposição demasiada, a persistência do arcaico na sociedade brasileira e a validade dos pequenos sonhos.
Publicado 23/11/2009 15:37
Num mundo em que a fama é buscada a qualquer custo, ela persegue o ator Alberto (Júlio Andrade) feito danação. Famoso pela presença constante na casa de milhões de telespectadores, ele tenta fugir dela refugiando-se em espaços onde possa retomar sua identidade. Tenha liberdade de ver-se e tornar-se, a seu ver, um “desocupado”, de quem nada se exige; tampouco endereço fixo. A esta altura, a celebridade já grudou nele de tal modo que se tornou uma tatuagem difícil de ser removida. Quanto mais ele se esconde nos cantões do sul do país, mais percebe que ela é parte dele. Nessa busca pela privacidade e reconquista de seu “eu”, ele encontra pessoas tão deslocadas quanto ele. Figuras intangíveis, negligenciadas em seu próprio ser, cujo retorno à luminosidade virou, em si, um sacrifício ao qual recorrem para escapar à alienação.
Com este tema, sintonizado com a vivência atual, a diretora Suzana Amaral (“A Hora da Estrela”), constrói, a partir do romance homônimo do escritor João Gilberto Noll, um belo filme sobre a alienação e danação da celebridade. Caminho inverso ao que tantos, na impossibilidade de realizar seus sonhos na estrutura capitalista, procuram alcançar. Muitos, como os participantes dos realities-shows, aceitam o instantâneo, a luminosidade fugaz, para depois ser tragados pela massa gravitacional da obscuridade da qual jamais sairão. O “Artista”, termo que concentra num único personagem a situação vivida pelos que sofrem exposição contínua, inverte os percursos. Desempregado, portanto fora dos holofotes, foge de si mesmo para recuperar o pouco que resta de “eu”, apossado pelos telespectadores que o veem como uma imagem.
Situações absurdas pegam o “Artista” desprevenido
As situações que passa a viver a partir do momento em que decide reverter o processo, são em suas maioria referenciais de seu mundo. Muitas delas tão absurdas que o pegam desprevenido, confirmando sua inadequação para o real. Internalizou de tal modo o ficcional que tudo em sua volta parece saído de um enredo de novela. Desde o instante em que se refugia num hotel em Porto Alegre até o instante em que a realidade o surpreende em diversos momentos de sua viagem – tudo escapa a seu controle e compreensão. Nada ali se assemelha ao que ele “vivenciou” na ficção, mas, ao mesmo tempo, não lhe parece real: 1 – O morto levado escada abaixo enquanto ele sobe em direção a seu quarto; 2 – o sangue no piso do apartamento em que se hospeda; 3 – a jovem arqueóloga polonesa (Lorena Lobato) apegada à boneca, com a qual fala e trata como ser humano; 4 – os dois estranhos que o perseguem por ser ele famoso e então sente o quanto a celebridade os agride. Incidentes que o faz reagir, sem que as peças se encaixem, ganhando sentido.
Desconcerta-o, principalmente, a curta relação estabelecida com a jovem polonesa. Cheia de metáforas e compensações, ela emerge de um universo a um só tempo real e imaginário. Tão deslocada quanto ele em suas viagens sem destino. Viagem para não defrontar-se com a perda infringida pela vida, da qual não consegue se recuperar. E o surpreende pela maneira como parte, aumentando a confusão entre o real e o imaginário em sua mente. Um entrecho de apenas três sequências, porém significativo para o espectador captar a interpenetração entre a ficção e a realidade. Pode ser que o “Artista” esteja tentando se livrar de uma situação ficcional dominada pelo realismo fantástico. E o imaginário predomine sem que a diretora/roteirista ligue as pontas para elucidar o que se passa na primeira parte do filme.
Nesta predominam típicas situações de roadmovie (filme de estrada), com os personagens surgindo e desaparecendo para lançar luzes no enigmático universo do “Artista”. Toda a ação se concentra nos personagens, com suas motivações desconectadas do mundo exterior. O real é ditado apenas pela relação entre eles, produzindo reações e desfechos surpreendentes. Vincular-se a quem se conheceu por instantes pode gerar consequências irreparáveis. Daí o alheamento do “Artista” ao acontecido à Polonesa. Mesmo ao conviver com figuras emblemáticas dos grotões, das pequenas cidades e do meio urbano avançado do sul do país, caso do casal dono da pousada, ele tem com elas contatos superficiais, que não deixam marcas afetivas. É como se fossem imagens de filme que, a partir dali, serão apenas memória descartável.
Filme mescla espaços do real e do imaginário
O mundo que se revela ao “Artista” nessas sequências é de pura alienação. Prima pelo inusitado, segue uma lógica desconcertante, não apreensível instantaneamente – para envolvê-lo de forma a que não apreenda seu significado. Assim, ele não compreende o que acontece com a jovem polonesa. Tampouco as motivações de um dos rapazes, Nelson (André Frateschi) para assassiná-lo. Situações recorrentes ao universo ficcional de Noll, que não escapa às janelas abertas por Júlio Cortazar (1914/1984), em “Octaedro” – nem deixa ver o horizonte. Impressiona a forma como Suzana Amaral capta essas nuanças, levando os atores a traduzir o estado de espírito dos personagens no limitado espaço da poltrona do ônibus. Principalmente Lorena Lobato, cuja polonesa causa estranhamento e dor. É daqueles personagens difíceis de esquecer.
O entrecho do qual ela participa é que mais impacto causa. Está mais relacionado ao tema da alienação, da viagem interior do “Artista”, em sua desesperada luta para recuperar seu “eu”. Ele está indo para lugar algum e mergulha, cada vez mais, em lugar nenhum. Ela, pelo contrário, vive uma espécie de viagem sem volta. Igual aos jovens apegados à violência, cuja motivação é fazer algo grande, usando o “Artista” como isca. O antagonismo então surge de seres-espelho, ligados ao universo ficcional ao qual ele, “Artista”, se acostumou. Suas dificuldades surgem das barreiras criadas pela fama da qual quer se livrar. Nenhum controle tem sobre os impasses com os quais se defronta. Ele apenas procura sobreviver, porquanto inexiste interação entre ele e os seres que encontra em sua viagem interior.
Diretora usa vilarejo para mostrar o Brasil arcaico
Diferente da segunda parte do filme, quando o espaço geográfico põe o espectador diante de personagens próximos de sua vivência. Muitos deles caros à dramaturgia nacional. Ali estão o sacristão Antônio (Gero Camilo), a doméstica (Márcia Martins) e os humildes moradores do vilarejo. Suzana Amaral situa-os numa breve cena do garoto em vestes medievais, cavalgando seu cavalo pela rua esburacada. Todos parados no tempo à espera do vigário sazonal (vem uma vez por mês para celebrar a missa). Se antes as situações eram dominadas pelo absurdo, agora predomina a sátira, o sarcasmo, o surreal. Quase como se, de repente, estivéssemos em pleno universo de Boccaccio (1313/1375), em “Decamerão”, com seus sacristães pecadores, domésticas insaciáveis e o povo alheio ao que se passa na casa paroquial.
Mas nesse ambiente decadente, arcaico, se dão belas sequências, de fino humor. A começar pelo picante comentário de Antônio sobre seus tempos de Roma. Ele é, a um só tempo, alguém que se abre com o “Artista” e a autoridade que se permite conversar com o desconhecido. O “Artista”, pela primeira vez, não tem a fama a persegui-lo. No grotão catarinense, ele não é ninguém. Ouve a prosa do sacristão e se deleita como simples hóspede. Não precisa se omitir, se esconder – ali vale tanto quanto alguém que precisa dos favores do “poderoso” representante da Igreja. Em dado momento, sua capacidade de encenar é útil à comunidade – e ele, sem que ninguém perceba, presta um serviço a uma família e se gratifica com isso.
Cena da pipoca é, desde já, antológica
Na encenação diante da velha moribunda, ao lado da filha clamando pela extremaunção, ele se vale da interpretação, possuído da “autoridade” conferida pela batina. Pouco importa o grotesco do ato, ele ali encarna a identificação da crença e dos costumes do povo. É o suficiente para que a mulher que o chamou para a derradeira benção à mãe nele acredite. Ao cumprir o ritual, ele assume outra função – a de alguém capaz de tornar-se útil nem que seja através do burlesco. O espectador ri, delicia-se com sua falta de modo, para em seguida ver-se frente a frente com sua própria natureza. O povo afinal não se desfez totalmente de suas crendices e naquele momento pouco importava reflexões em contrário. Existe ainda longo caminho a percorrer até a superação necessária. E ele passa pela experiência dela saindo incólume.
Então, ele se mostra por inteiro. Sedutor, capaz de ser envolvente, mesclando humor com desejo. Perde a fragilidade, o ar de quem se desligou da realidade para se tornar um ser humano comum. Sabe ser delicado quando o momento exige. Quando o utiliza, o lúdico se estabelece. A empatia entre ele e a Doméstica começa com distanciamento e acaba em aproximação, num jogo de sedução cheio de sutilezas. E com triviais elementos de cena, como a singela pipoca, que desde já entram para as cenas antológicas do cinema nacional. Nelas sobressaem direção e interpretação. Sensível, picante, encenado por artistas em pleno domínio de sua arte. Provoca riso, dá sentido à busca desesperada do “Artista” pela vida comum e resgata seu lado gente.
Artista tem sua imagem usada indevidamente
As mencionadas sequências funcionam como preparação para o que vem a seguir, não menos evidente para o espectador, em razão da frequência com que o tema lhe é apresentado. Se este breve intermezzo lhe trouxe algum prazer, seu retorno ao mundo real, do jogo das aparências, da manipulação da imagem, lhe causa danos irreparáveis. Forçado a pagar uma dívida por algo que ignora, desconfiado de ter sido vitima de indevida intervenção cirúrgica, ele se vê no centro de uma trama política. Diante do uso de sua imagem, oportunismo, tentativa de sedução, percebe o quanto a celebridade lhe penetrou as entranhas. Ninguém o vê como um cidadão comum – só o famoso ator de novelas. Trágico. Fragilizado, ele se vê aprisionado, sem chances de escapar ao uso que o médico, Carlos (Luís Guilherme), político noviço, direitista, faz de sua imagem. É grotesca a encenação a que é obrigado se submeter para canalizar votos para o cirurgião que, supostamente, salvou sua vida.
Como nas sequências do vilarejo, Suzana Amaral retira o filme das metáforas para trazê-lo para a realidade identificável pelo espectador. Os personagens povoam seu imaginário e ele pode então desvendá-lo em profundidade. O “Artista” que tenta recuperar seu “eu” vê que o perdeu. É agora uma imagem, criada pela mídia que o expõe todo dia ao olhar de milhões de telespectadores. Devagar, sem que ele percebesse, amputaram-lhe parte de seu corpo, tirando-lhe a capacidade de deslocar-se mesmo no espaço imaginário. Preso à intricada teia da imagem, ele perdeu contato com os pequenos sonhos, os gestos simples, não vendo possibilidade de retorno uma vez que pertence agora aos que nele se referenciam. Menos para Sebastião (João Miguel), o enfermeiro que o retira do labirinto em que se debate.
Enfermeiro leva-o às pequenas coisas
O universo de Sebastião é o dos humildes, do trabalhador que sonha com o mais simples. E que pelas circunstâncias geográfica ou financeira ainda não conseguiu alcançar. Tudo fará para realizá-lo. Então, a angústia e os impasses cedem lugar à esperança. Sebastião ansioso para alcançar o almejado, ele, o “Artista”, interessado em redescortinar o futuro. Mas, como dois deserdados, eles fazem uma viagem ao desconhecido. O que surge daí é o descortinar do horizonte numa manhã de sol diante do mar – ou o reinício de uma viagem do ponto onde tudo começou. O que não deixa de ser significativo. O emaranhado de situações, códigos e rituais perde o sentido quando toda a estrutura que norteia sua vida mostra-se frágil. Há interesses demais e vinculação entre o ele e o outro de menos. Desocupado, impulsionado por uma viagem sem destino, ele encontra em Sebastião o sabor e o deleite que as pequenas coisas propiciam.
Em “Hotel Atlântico”, o que, para muitos é o ápice, ainda que dure 15 segundos, como preconizava Andy Warhol, para ele, “Artista”, é o alheamento do espaço do cotidiano. O preço pode ser a perda de movimentos físicos, de deslocar-se sem atropelos, da manipulação de sua imagem, de ser o espelho que alguém pode quebrar para alcançar a fama. Embora as situações em que ele se mete sejam muitas vezes absurdas; Suzana Amaral consegue transitar entre a simplicidade e a clareza. Tira o filme do hermetismo que tema dessa natureza impõe, e dota-o de uma agilidade notável, com a contribuição do diretor de fotografia José Roberto Eliezer. Quando provoca estranhamento, o faz pelas vias do humor, do corrosivo, levando o espectador a apreender pelas nesgas a aparente falta de sentido, mantendo-o ligado à narrativa, aos cortes pelo escurecimento de cena (fade-out), recurso pertinente ao clima que se desenvolve na tela, e o trazendo de volta à realidade quando a trama o exige.
Por outro lado, a diretora/roteirista não apresenta saídas – só expõe o dilema vivido pelo “Artista”. Ela o coloca em meio ao frenesi do Brasil moderno, ainda dominado pelo arcaico, as vivências políticas atrasadas, a violência urbana, enquanto se debate para escapar as teias da alienação. O próprio personagem não se explica – só tenta escapar às tantas armadilhas que lhe surgem pela frente. Aparentemente, ele não tem um passado, família, relações afetivas – é só um nome, uma imagem à qual se refere parte das pessoas que encontra pela frente. E percorre um caminho inverso ao que tantos tentam desesperadamente se apegar. Talvez, ao estar com Sebastião, ele encontre, afinal, a saída nas pequenas coisas ou, sem dúvida, aprofunde seus impasses. Não difere muito da realidade atual à espera de uma força (ou forças) que a recoloque na trilha das transformações.
(“Hotel Atlântico”). Drama. Brasil. 2009. 120 minutos. Fotografia: José Roberto Eliezer. Roteiro/Direção: Susana Amaral. Baseado no romance homônimo de João Roberto Noll. Elenco: Júlio Andrade. Lorena Lobato, João Miguel, Mariana Ximenes, Gero Camilo, Helena Inez.