”(500) Dias Com Ela”: Aprendendo com o amor
Com um olhar aguçado sobre as relações amorosas dos jovens deste início de Terceiro Milênio, diretor estadunidense Marc Webb desconstrói a idealização da mulher moderna
Publicado 21/12/2009 23:52
A alusão feita pelo diretor Marc Webb, num rápido flash, em seu “(500) Dias Com Ela”, ao emblemático “A Primeira Noite de um Homem” permite um paralelo entre os personagens dos dois filmes. Enquanto Mike Nichols centra sua narrativa nos conflitos entre gerações nos rebeldes anos 60, ele, Webb, debruça-se sobre os impasses dos jovens neste princípio de Terceiro Milênio. Benjamim (Dustin Hofman) tenta escapar às imposições da família burguesa, que o queria enfiado no escritório de uma grande empresa, Tom (Joseph Gordon-Livitt) se debate entre a carreira numa agência produtora de cartões de felicitações e o retorno aos birôs de projetos arquitetônicos. Cada um, à sua maneira, procura superar os obstáculos típicos de sua idade e geração.
Mas a pressão sobre Benjamim é mais insidiosa do que a que pesa sobre os ombros de Tom. Um empresário, amigo da família de Benjamim, tenta seduzi-lo para promissores negócios no incipiente ramo de plásticos, enquanto Tom tem de encontrar seu próprio nicho, porquanto tem de sustentar a si próprio.São importantes diferenças, que mostram o quanto o comportamento da juventude e as relações sócio-econômicas mudaram nos últimos quarenta anos. De um lado está Benjamim, atarantado, às voltas com uma conflituosa relação amorosa com Mrs. Robinson (Anne Bancroft), de outro Tom tenta identificar nas moças que o cercam a que será sua companheira de vida.
Jovens de hoje tentam ser honestos consigo mesmos
No entanto, se existem estas semelhanças, muitas questões históricas, comportamentais, geográficas e musicais os distanciam. O universo de “A Primeira Noite de um Homem” é o da alta burguesia, com seus códigos de conduta não muito éticos, o de “(500) Dias com ela” é o dos jovens recém formados na faculdade que procuram cavar seu espaço. Mesmo se desviando de seus objetivos originais, caso de Tom, eles encontram uma maneira de serem dignos, leais e honestos consigo mesmos e com os que os rodeiam. Benjamim, pelo contrário, insurge-se contra os pais e a amante para ser livre à sua maneira. As buscas deste são mais individuais, centradas numa rebeldia estilo “a poupança da família me garante”. Sua contribuição é, no máximo, a de virar de cabeça para baixo os cânones familiares e desmascarar a moral burguesa.
Já o mundo do jovem Tom parece assentado. Nenhuma barreira há para ser superada. Na agência onde trabalha, cheia de gôndolas, corredores e computadores, tudo está no lugar. Nas reuniões de criação, todos os redatores dão sua contribuição e o negócio segue em frente. As fragilidades dos anos 60 supostamente foram superadas, as tensões desapareceram e os conflitos resolvidos. Em “A Primeira Noite de um Homem” há um “The End”, um final que marcava o começo de vida de Benjamim com sua amada (Katharine Ross) de acordo com as perspectivas por ele criadas.
Tom conserva visão idealizada da mulher
Com o perplexo Tom a situação se inverte completamente. Ele não tem uma família a sustentá-lo. Vive de seu próprio trabalho, é o único responsável por suas escolhas. Seu juízo de valor é construído segundo as relações com os outros jovens redatores da agência e as exigências da empresa. E suas perspectivas não vão além das paredes de seu pequeno apartamento, das gôndolas onde redige os cartões de confraternização e dos bares que frequenta com os amigos. Nenhuma barreira existe para além dessas paredes, ele antevê. Até sua visão, pessimista, sobre a relação a dois esbarra num romantismo enviesado de desconfianças, de tentativas de encontrar a mulher que o fará feliz. Neste ponto, Benjamim é mais visceral, menos conservador até.
Esta situação se prolonga até ele descobrir na colega, Summer Finn (Zooey Deschanel), poucas gôndolas adiante, sinais de que existe outro tipo de vida no planeta. E com os papéis invertidos, à moda “cinema de liberação feminina”, a ela cabem as iniciativas, as aproximações, a abertura de espaços. A ela cabe conduzi-lo por trilhas jamais antevistas. Então, a partir daí, conta muito a estrutura narrativa do filme, a divisão em entrechos como se fossem capítulos, com os números de cada dia surgindo, num ir e vir, como se as idéias apresentadas tivessem que ser constantemente reavaliadas. Uma voz off (narração em terceira pessoa, nesse caso) que revela os estados de espírito, dúvidas, fraquezas, incertezas dos personagens, principalmente dele, Tom.
Comportamento de Summer gera desconfiança de Tom
Estes entrechos, espécie de fragmentos do cotidiano, vão revelando os encontros e desencontros entre Tom e Summer. Ela é escorregadia, está sempre escapando, criando mistério em sua volta, enquanto, ainda assim, se revela para ele. Isto gera desconfianças, leva-o a ter dúvidas sobre quem ela realmente é. Não a vê como a mulher moderna, independente (ela se mudou para Los Angeles e vive só), com sua maneira de encarar as relações amorosas e as relações sociais. Apenas como a “sua garota”. Ele a quer para a vida inteira, nos moldes tradicionais, do jovem encontra parceira e vão construir família.
Summer também não discute seus interesses e pontos de vista. Quando reage é para desconcertar Tom. A sequência da briga com o incômodo rapaz que a aborda, quando ele está ao lado dela no bar, bem o confirma. “Não precisava daquilo, sei me defender”, o repreende por ter socado o rapaz e acabado com o lábio ferido. Uma sequência que demonstra o quanto a declaração de amor mudou: brigar pela mulher, hoje é mais uma ofensa do que demonstração de paixão. Os dias do machão acabaram naqueles ebulitivos anos 60, de liberação feminina.
O espectador pode tender a achá-lo um idiota, um jovem que tem a mulher nos braços e não entende suas perspectivas e interesses, nem consegue vê-la histórica e socialmente. A enxerga, nestas circunstâncias, só como interesse amoroso. E então nada que ele fizer será visto por ela como algo que a atrai e a leva a apaixonar-se por ele.
Espaços caracterizam o meio em que vivem os personagens
Uma abordagem e tanto, traçada pelos roteiristas Scott Neustadter e Michael H.Weber, que o diretor Marc Webb transforma numa equilibrada narrativa. Usa recursos antes vistos como novidade, como divisão de tela, ação simultânea, entrechos transformados em capítulos e voz off. Mas o faz com rara eficiência, com certo frescor até. Em certos momentos remete ao Goddard de “Masculino Feminino”, com suas originais formas narrativas, sem, no entanto, os enquadramentos criativos. Entretanto, a maneira com que leva o espectador para dentro do filme é eficaz. Toma emprestado de inúmeros filmes a fixação de espaço para o casal, pondo-os em lugares que caracterizam sua relação com o meio que os cercam. O parque, o banco, os prédios antigos ao fundo. Mostra uma Los Angeles diferente da vista, por exemplo, em “O Solista”. Chega a ser romântica.
São cenários que compõem o estado de espírito dos personagens, aquilo que eles são na verdade: jovens, tateando seus caminhos, construindo sua história. Eles serão recorrentes a Tom, quando, enfim, descobrir que idealizou Summer, que ela era mais do que interesse amoroso, tinha suas próprias visões do que seria uma vida a dois, com ele. São o reverso de “Harry & Sally – Feitos um para o outro”, pois não percorrem espaços e situações que os levam a se acomodar um ao outro. Existe, porém, o fluxo do cotidiano, ditado não pelo rumo traçado pelos roteiristas, mas tirados da vida: Summer busca outro espaço social, novo emprego, ele fica para trás. A vida do romântico e apaixonado Tom desmorona.
Perspectivas de Summer vão além do interesse amoroso
Ele é frágil demais para entender o que se passa. Summer lhe escapa como surgiu. Ela se foi, deixando a gôndola onde trabalhava vazia e a vida de Tom sem sentido. Quando se reencontram, tempos depois, são outras pessoas, menos confiantes, desconfiadas um do outro. Para Tom representa o início de seu amadurecimento, para Summer é tão só o prosseguimento de suas perspectivas de existência. Colocando as relações entre eles desta maneira, Webb e seus roteiristas modificam a visão do espectador tem de filmes que tratam das relações amorosas entre jovens. Normalmente é armada uma trama de encontro, rompimento, reconciliação, e o “the end” pontifica a redenção. Desde o início, o espectador já sabe que tudo terminará bem, salvo por um e outro entrevero.
Em “(500) Dias com ela”, eles preferem caminho adverso. Centram a narrativa na visão do inseguro e hesitante Tom, perante a enigmática Summer, cujas escolhas não são ditadas apenas pelo interesse amoroso, pelo casamento em si, mas por perspectivas que ela nem se dá ao trabalho de lhe explicar. A sequencia do reencontro deles no parque, no mesmo banco, tendo os velhos prédios ao fundo mostra o quanto eles se distanciaram. E também o quanto o comportamento dela contribuiu para o amadurecimento dele. Ajuda-o a ver a mulher para além do interesse amoroso, sem endeusamento, romantismo excessivo.
A vida então se revela em sua inteireza, com seus truques, acidentes, cursos históricos, interferências de classe e do indivíduo. Ilustra-o bem o diálogo de Tom com a jovem arquiteta com a qual concorre por uma vaga num escritório arquitetônico. Ele se interessa por ela sem projetar nela qualquer sonho ou idealização. Ela está ali e quem sabe?
Filme não escapa ao mito do ser solitário
Comportamento de transição, quase um rito de passagem, dado que implicou em ver Summer como ela realmente era; em enfrentar o mercado de trabalho para ser o arquiteto que realmente era; em desmontar as belas e vazias frases escritas nos cartões de felicitações, em plena reunião com a presença do chefão da agência. Vê-se numa situação de recomeço, só que em outras perspectivas, menos idealizadas, sonhadoras, mais elucidativas e enquadradas nas tortuosas trilhas da vida. Há nesta sua jornada, individual, solitária, muito do herói estadunidense, do homem que constrói seu próprio caminho. Faz parte, inclusive, de sua ideologia, do individual se sobrepondo ao coletivo. Em “(500) Dias com ela” se conta a mesma história usando situações aparentemente inovadoras.
O contexto histórico, de relações de trabalho, de relação amorosa que o cerca faz o espectador entender que ele é criatura do ambiente essencialmente capitalista. Até quando se insurge contra as mentiras escritas nos cartões de felicitações a primazia do individual se impõe. É um ato quase solitário, não o sendo mais porque obtém o apoio do colega de gôndola. Mas seu gesto encerra-se ali, as consequências recaem em suas próprias costas, com o resultado de que, a partir dali, não irá idealizar mais a vida e tampouco as mulheres. Ainda assim, trata-se de uma construção dialética interessante para uma comédia romântica, embalada por uma contagiante trilha sonora.
“(500) Dias com Ela”.(“(500) Days of Summer”).Comédia Romântica. EUA. 2009. 96 minutos. Roteiro Scott Neustadter, Michael H. Weber. Direção: Marc Webb. Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Zooey Deschanel.