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Carolina Ruy: os deslizes do filme Lula, o Filho do Brasil

O triunfo de quem veio das camadas mais pobres, superando as piores dificuldades e obstáculos, guiado por ideais de bondade, dignidade e humanidade, inspiram, levantam a alto estima e enchem os olhos de qualquer ser humano que tenha sangue correndo nas veias.

Por Carolina Ruy, no site da Força Sindical

Por sorte, o atual presidente da República do Brasil possui uma destas raras trajetórias. A vida formou o menino pobre das terras inóspitas do miserável sertão pernambucano. Luiz Inácio Lula da Silva fez das mazelas seu caminho para o sucesso, tornando-se um homem poderoso, bem preparado, articulado, capaz de conduzir uma política que reverteu para cima os índices de desenvolvimento no Brasil.

Trata-se de uma história que tem elementos de sobra para enriquecer qualquer biografia. Mas o filme que se propõe a esmiuçá-la desperdiça a oportunidade.

A fuga do sertão pernambucano, a dura convivência com o pai alcoólatra em Santos, os estudos no Senai, o primeiro casamento e a tragédia de perder mulher e filho, a decisão de entrar de cabeça no sindicato "para não enlouquecer", o encontro com Marisa Letícia, enfim, tudo é colocado com pressa e de modo didático, tirando o prazer da reflexão e da interpretação sobre a linguagem cinematográfica.

O foco do filme balança entre, Eurídice Ferreira de Mello, a Dona Lindu e Lula. Como contraponto, o filme 2 Filhos de Francisco (2005, Breno Silveira) não deixa dúvida de que trata da história de Francisco, sugerindo que esta traz a raiz do sucesso da dupla sertaneja Zezé de Camargo e Luciano. Diferente do que ocorre em Lula, o Filho do Brasil, em 2 Filhos de Francisco somos totalmente absorvidos pelo rústico e idealista Francisco e o espectro da dupla não fica pairando no ar.

Na cinebiografia de Lula isso não é tão claro. Se a intenção fosse centrar em Lindu, o filme poderia explorar melhor o livro no qual se baseou e reforçar os contorno daquela mulher de alma leve, que tinha olhos para a beleza (Paraná, Denise, 2009). Se o tema central, por outro lado, fosse a história de seu sétimo filho, Luiz Inácio, o filme deveria ir pelo menos um pouco mais longe, avançando sobre os anos em que o personagem tornou-se o "Lula" que temos em nosso imaginário.

Além desta indefinição em sua linha condutória, o filme traz outros deslizes. Em primeiro lugar, Lula nasceu e cresceu em tempos de profundas transformações no Brasil. O avanço do parque industrial, a consolidação das metrópoles, as grandes migrações do nordeste para o sudeste, o crescimento populacional, a ditadura militar, a reorganização de partidos, a redemocratização, a hegemonia neoliberal e recessões econômicas nas décadas de 1980 e 1990, até a retomada do crescimento e a guinada social do Brasil, são alguns dos elementos chave que atravessaram a vida deste pernambucano. Nada disso fica claro no filme. A impressão é que se trata de uma obra "a-histórica" e apolítica. Exceto para a assembleia no estádio da Vila Euclides, em que Lula discursou para 100 mil trabalhadores, e para a repetida e enfática afirmação de que Lula, não era comunista, nem de esquerda.

Em segundo lugar, o filme simplesmente desconsidera e desqualifica o movimento sindical anterior ao surgimento de Lula. Pelegos ou "radicalóides", dispostos a literalmente "matar o patrão" eram os sujeitos que, segundo o filme, dominavam o sindicalismo até então. De todos os problemas, este, certamente, é o mais grave. Ele escancara seu apoio em "achismos" ou em opiniões tendenciosas, criando uma ilusão de que as lutas do povo surgiram no Brasil no fim da década de 1970.

Desde o início do século 20, com a chegada maciça de imigrantes europeus, existem registros de importantes manifestações de trabalhadores no Brasil. Suas lutas se desenvolveram e fomentaram políticas de esquerda, populares adaptadas ao tipo de trabalhador que emergia junto com o crescimento das cidades em terras brasileiras. Quando surgiu o Partido dos Trabalhadores, na década de 1980, que deu maior visibilidade ao Lula, o Brasil já contava com partidos e movimentos progressistas maduros e atuantes. Muitos deles estão na base que sustenta o governo atualmente. Reconhecer este histórico enriqueceria o filme.

O Filho do Brasil deixa a impressão de que a história de Lula, e do movimento de trabalhadores no Brasil, em sua complexidade, ainda merece um tratamento mais profundo e apurado.

O filme estreia nos cinemas em 1º de janeiro de 2010.