As eleições de 2010, o maniqueísmo e a cidadania
O plebiscito é uma consulta ao povo antes de uma lei ser constituída, de modo a aprovar ou rejeitar as opções que lhe são propostas; uma manifestação direta da vontade do povo que delibera sobre um determinado assunto. Portanto, uma “eleição plebiscitária” é aquela em que o julgamento do desempenho do governo que sai é o centro dos debates – e não as qualidades ou a história dos candidatos.
Publicado 01/01/2010 22:15
Do outro lado, o mais celebrado líder político atualmente em exercício no mundo. Lula é uma história de vida brasileira vencedora, um sobrante que se tornou presidente da república para mudar o patamar social do país, um divisor de águas na política nacional com uma aprovação popular que se perde nas alturas.
É realmente uma pena que o Brasil não seja uma nação parlamentarista. No Canadá, salvo um breve hiato de alguns meses em 1979 quando a oposição assumiu o poder, Pierre Trudeau entrou em 1968 e só foi sair em 1984, após conseguir unir o país e repatriar a constituição canadense da Inglaterra. Trudeau mudou a cara do Canadá para sempre, mas demorou 16 anos.
Lula está terminando seu segundo mandato em uma república cuja constituição não lhe permite ser candidato em 2010. Por isso, a alternativa é encarnar sua entidade política, seu significado e sua brasilidade em uma pessoa elegível que tenha sua confiança, bem como a capacidade para dar continuidade ao que foi construído pelo governo presente. Entra Dilma.
Enquanto isso na sociedade, o PSDB-DEM se afunda numa areia movediça apocalíptica: São Paulo alagando com favelas fora de controle, carecas do mal e da dissimulação se revelando no Youtube, cuecas endinheiradas aqui, obras desabando acolá e pedágios nascendo que nem mato no estado de São Paulo. É só desgraça, escândalo e inaptidão. Sinistro. Em contraponto, o mocinho com o chapéu branco foi recentemente votado “o homem do ano de 2009” pelo Le Monde, deu um show em Copenhagen e acabou de criar uma política nacional para moradores de ruas. Em suma, um super-herói.
Não é difícil observar contornos maniqueístas se delineando. Isso, obviamente, por conta dos neoliberais demotucanos que insistem em inviabilizar a ética e o bom senso até o fim, mesmo que isso signifique a própria destruição: não há preço que não se pague para justificar a cegueira e esconder os equívocos. Protagonizam a escuridão por opção, através de políticas elitistas visando a apropriação do valor público e a dizimação do bem comum. É raro achar uma revista em quadrinhos que não tenha esses arquétipos trabalhando o mal no enredo da história.
Para os maniqueus, havia duas divindades supremas a presidir o universo: o princípio do Bem e o do Mal – a luz e as trevas. Santo Agostinho conseguiu avançar o tema na direção do livre arbítrio, pois tinha uma concepção do mal que vem da teoria platônica, onde o Mal não é um ser, mas sim a ausência de um outro ser, o Bem. Agostinho deu um grande passo adiante ao esclarecer que a ação deliberada de fazer o bem é um instrumento para vencer o mau. Assim, colocou o livre arbítrio no centro da teologia católica como indutor do comportamento exemplar previamente estabelecido por Jesus e Sócrates.
Hoje, apesar de 16 séculos de evolução no pensamento humano e na ciência desde Santo Agostinho, a tentação maniqueísta continua potente. Ainda mais com José Serra na parada…
Aí é que mora o perigo. Uma eleição plebiscitária pintada com cores de maniqueísmo é contraproducente porque corta o caminho do debate. Simplifica demais as coisas. Elimina a novidade do debate. Acelera um processo decisório que deve ter sua ordem natural de gestação e deliberação. Paradoxalmente, isso ocorreria bem na hora em que o povo brasileiro está apto a participar da democracia em grande escala e abraçar a discussão tocando o destino do país com o corpo e a alma.
Contudo, o presidente Lula tem feito o possível e o impossível para cooptar o deputado presidenciável Ciro Gomes (ou qualquer outro candidato que não seja a Dilma). Tudo para garantir a continuidade. Ora, eu também quero que as políticas do presidente Lula continuem. Mas é realmente necessário sacrificar o debate para alcançar a continuidade?
A noção de que um terceiro candidato resultaria na vitória dos demotucanos no primeiro turno de 2010 é frágil. Não existe razão para tanto temor de uma oposição inapelavelmente enferma. Então, porque não acolher os candidatos presidenciáveis e oferecer opções além do branco & preto ao cidadão brasileiro em 2010? Isso daria ao povo um terreno mais própício para exercer seu arbítrio e sua cidadania.
Em última análise, é bom lembrar que a vida brasileira é um processo costurado pelo caráter e costumes do povo. A evolução da sociedade, então, ocorre na medida em que o povo pratica o debate e produz a democracia, tornando a cidadania na realidade complementar da soberania da república.