Justiça de olho doente

Ganhador do Oscar 89, filme do diretor argentino Juan José Campanella discute a impunidade, a corrupção e a falta de confiança do cidadão comum nas estruturas de segurança e de justiça argentina.

Toda a expectativa em torno de “O Segredo de Seus Olhos”, do diretor argentino, Juan José Campanella, gira agora em torno do Oscar, ganho por ele este ano. Uma delas é ver se corresponde às melhores impressões, pois superou o ótimo “A Fita Branca”, do alemão Michael Haneke, o grande favorito ao Oscar de Filme estrangeiro de 2010. Não se trata de fazer comparações, são obras com temas políticos, mas de abordagem, estética e narrativa adversas. Importa, portanto, checar conteúdos e a maneira como Campanella conduziu sua obra. À exemplo de Haneke dotou-a de múltiplas camadas, porém passeia por vários gêneros, até o espectador descobrir que ele fala sobre a impunidade em seu país. Demora pra isto acontecer. Ele desdobra sua narrativa, levando ele, o espectador, a entrar nos meandros da Justiça, onde tudo é contraditório, confuso, desarrumado, com processos sobre as mesas, montanha deles, e seus agentes atrás das mesas, pelos corredores, nas ruas, disputando espaço entre si.

Um retrato nada lisonjeiro da Justiça argentina. Porém, nesta primeira parte, a narrativa caminha em ritmo de filme policial, ou melhor, das séries televisivas estadunidenses. Os planos são fechados, a ação se desdobra em vários personagens, o eixo da história se prende à só caso. Com instantes para diálogos do “ex-inspetor” Benjamim Espósito (Ricardo Darín) com sua agora ex-chefe Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil) sobre a obra que está escrevendo sobre um crime brutal ocorrido 25 anos antes, durante a presidência de Isabelita Perón (1974/1976). Entre flashbacks e reflexões sobre a relação entre ambos a narrativa atrela o espectador ao desvendar desse crime. Este tem a impressão de que assiste a um capítulo da série policial “CSI”, depois de inúmeras outras, dado que Campanella dirigiu capítulos de algumas delas, inclusive da série drama de hospitalHouse”.

Diretor usa clichês
de filmes policiais

Mas esta primeira parte remete mesmo é aos filmes policiais dos anos 60/70, com os agentes de polícia entrando em atrito uns com os outros; Espósito discutindo com o juiz Fortuna Lacalli (Mário Alarcon), seu chefe maior na Promotoria, e agindo por conta própria. Os clichês permeiam as sequências dando a idéia de que Campanella com cortes e movimentos de câmera rápidos quer levar o espectador a entender sua história a partir apenas do crime brutal. Principalmente quando Espósito acusa outro “Inspetor”, Romano (Mariano Argento), de prender falsos culpados, troca socos com ele e o acusa de corrupção. Tem-se, portanto, o clássico filmedenúncia à Costa Gavras, sem a sua acuidade e contundência. E o espectador tem a sensação de que já viu este filme e sabe até como ele termina. Campanella então o desdobra retornando ao fio da relação Irene/Espósito.

Este sim, um dos vértices mais interessantes e criativos de “O Segredo de Seus Olhos”, pois se trata da relação entre duas pessoas que se amam, mas nunca se deram ao trabalho de romper laços estabelecidos para  torná-la real. Ficam nas nuanças, nas meias palavras, nas suposições. É como se Campanella dissesse, olha a Justiça está realmente podre, só que este casal ainda tem a capacidade de se emocionar, se envolver, um com o outro. Irene e Espósito percorrem corredores, cômodos, escadas, se unindo e se afastando, enquanto tentam desvendar o crime, cujas investigações sofrem a toda hora de interferência política. Compreendem que existe algo para além das manobras de Romano e das mudanças repentinas de orientação de Lacalli. Eles, Irene e Espósito, driblam estes impasses e se atiram um no braço do outro.

Sistema dá proteção
a agentes suspeitos

O recurso de Campanella para mostrá-lo não é dos mais sutil ou criativo se o espectador assim o quiser. Usa projeção, flashback, metalinguagem para afirmar que em dado momento eles se separaram, ele foi viver a vida dele e ela continuou na sua. Estão na estação, ele embarca e parte, ela corre atrás do trem, ele a vê pela vidraça do vagão. Um turbilhão de sequências idênticas pode brotar em sua mente, na do espectador, dado que o trem é forte símbolo do rompimento ou do reatamento amoroso, pelo menos nos melodramas. Mas o clichê logo se torna metalinguagem a partir da conversa entre Irene e Espósito, que se mostram cientes disto. Eles se referem a ele e o condenam. Um recurso que remete tanto à novela homônima da qual saiu o “O Segredo de Seus Olhos” quanto ao romance que Espósito escreve sobre o brutal crime.

Neste vai-e-vem emerge o centro da narrativa, descoberta pelo espectador através do comportamento de Ricardo Austin Morales (Pablo Rago): insatisfeito com o comportamento da Justiça decide ele mesmo desvendar o crime e punir o culpado. Se ela não lhe dá solução, ele passa a vigiar o suspeito em seu cotidiano. Campanella então abandona seus passeios por vários gêneros cinematográficos para centra-se neste importante tema: a impunidade e o descrédito do cidadão comum nos aparelhos de segurança e de Justiça argentinos e, por que não, da falência do estado burguês em proteger seus cidadãos. Conserva, porém, a relação entre Irene e Espósito, mas os faz percorrer as etapas necessárias ao desvendar do crime, que sempre volta a estaca zero, dada às citadas interferências políticas. Num desses momentos, os fios se unem, Campanella tece seu comentário sobre a proteção que o aparelho de segurança dá aos psicopatas, mantendo-os em serviço.

Diretor introduz olhar
político na narrativa

É uma denúncia e tanto, inclusive para os países que viveram não faz muito tempo, como o Brasil, a cruel experiência da Ditadura Militar. Mas que ainda não puniu os culpados já, por inúmeras vezes, identificados. Eles, embora assim estejam, continuam sendo protegidos. A sequência da discussão de Irene e Espósito com Romano é das mais significativas para se entender este fenômeno políticopatológico do sistema capitalista decadente. Irene, que se mantinha reticente, seguindo as ordens de Fortuna, entende o que se passa e ainda assim o caso não segue adiante. O culpado surgido de uma identificação perspicaz de Espósito em seu instante de “CSI” e de uma intervenção inteligente de Irene desaparece e aparece quando a ele falta proteção.

Dá para entender que “O Segredo de Seus Olhos” introduz o olhar político na abordagem policial, pela via da impunidade e da cumplicidade do aparelho de segurança e da Justiça. Por outro lado, desvia-se para a relação amorosa Irene/Espósito e se fecha fundindo ambos na mesma estrutura. Torna-se interessante, mas não o eleva ao patamar de grande filme, desses que o espectador vê e se surpreende. Menos pelo desfecho, este sim, criativo, retirando-o do lugar comum. Dá a impressão de que a saída é aquela mesma, individual, o cidadão entregue à própria sorte encontra saída para os impasses que a sociedade lhe impõe. Serve, no entanto, para completar a obra que Espósito escreve e para seu diálogo instigante com Irene sobre o que tem sido a vida deles até ali e como eles podem reconstruí-la a partir daquele instante.

Premiação ajuda a tirar
cinema latinoamericano
do gueto temático

Não se sabe os mecanismos usados pelos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos para conceder o Oscar ao “O Segredo de Seus Olhos”, de Campanella. Seu maior concorrente, “A Fita Branca”, passeava menos pelos gêneros cinematográficos e não nuançava seu conteúdo: o do nascimento do nazismo numa pequena aldeia alemã no final dos anos 30. Este é de longe um grande filme, que permite várias leituras, muitas pra lá de fortes.  De qualquer forma foi o segundo Oscar ganho pela Argentina, mostrando a força de sua cinematografia (O primeiro a fazê-lo foi Luiz Puenzo, com seu “História Oficial”, m 1986, ao tratar da repressão durante a Ditadura Argentina – 1974/1983). Foi importante, retira o cinema latinoamericano do gueto do filme de festival, que premia apenas a “estética da pobreza”, ignorando outras variantes igualmente poderosas, que também dizem muito sobre a sociedade dos países que o produzem. Campanella fugiu a este espectro, mergulhou noutra vertente, como já dito: da impunidade e da corrupção dos sistemas de Justiça e de Segurança.

Mas é o chamado filme classe média, com personagens que a ela pertencem, com seus dilemas metafísicos, sua insatisfação permanente, sua depressão constante, sua indecisão entre a ascensão social e a segurança econômica, e a satisfação e realização amorosa compartilhada, igualmente familiar, sócioeconômica. Campanella, embora dote seu filme de denúncia, usa o viés da paixão mútua, Irene/Espósito, para colocá-los em meio às estruturas sociais carcomidas, às quais pertencem. Mas eles não reagem. Espósito se satisfaz em concluir seu romance, deixando a Morales a execução do que cabia à Justiça, pois agora é um aposentado.

Irene, por seu lado, vive um casamento sem amor, por comodidade sócioeconômica, e foge ao espectro do crime ocorrido 25 anos, deixando-o guardado numa pasta amarelada nos porões do prédio da Promotoria, como caso encerrado, e, enfim, compreende que a vida que leva a torna amarga, cínica, infeliz. São, portanto, personagens passivos, no limite até coniventes com a situação, pois Irene continua na Promotoria e Espósito só vem reagir depois de aposentado, pela via da ficção. E ambos ao tomar uma decisão que mudará suas existências terminam por dizer: vamos tratar de nossa vida e deixar as coisas como estão. Visão conservadora do dizer: cada um que encontre a solução que melhor atender à sua ideia de justiça.

Campanella se detém
na saída individual

É uma conclusão dramatúrgica que atende às platéias classe média conservadoras pelo lado emotivo, imediatista, refletindo talvez às inquietações do próprio diretor. O social permanece na esfera individual, não pela via da Justiça com as próprias mãos, mas tornando cativo o criminoso que devia estar atrás das grades, cumprindo pena pelo crime que cometeu. E, repita-se, nem Irene tampouco Espósito se dão ao trabalho de denunciar o responsável pelo cárcere privado. Esta a discussão que o espectador pode levantar ao deixar o cinema. Questionar a via individual, saindo pela via coletiva da transformação. É outra maneira de ver a questão, a mais difícil, porém mais eficiente. Campanella apresentou sua visão, ainda que questionável. O espectador, no caso, terá de encontrar a sua. Haneke em seu “Fita Branca” diz que este tipo de solução acabou, nos anos 30, no nazismo.

 
O Segredo de Seus Olhos”. “El Secreto de sus Ojos”. Drama Policial. Argentina. 2009. 120 minutos. Roteiro: Eduardo Sacheri/Juan José Campanella. Direção: Juan José Campanella. Elenco: Ricardo Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago, Guilhermo Francella, Mário Alarcon, Mariano Argento, Javier Godino.

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