O soldado Garrafinha

 

Tempo promissor para um soldado que manifestara rancor a camponeses insurgentes. Dois anos após mostrar-se um torturador tão frio quanto habilidoso, posto que suas perguntas coincidiam com as suspeitas dos senhores de engenho de Goiana, viu-se, ele mesmo, descendo os degraus da Cadeia Pública, com duas fitas num dos ombros da camisa cáqui.

Convém apreciar-lhe o perfil, porquanto o apelido – raro e ameaçador como os passos ligeiros e curtos de suas pernas – ajustara-se à perfeição na cabeça sobre o fino pescoço, assentado nos ombros arriados. Com as pernas curtas, a calça frouxa era segura por um grosso cinturão de couro; o revólver calibre 38 na cartucheira, com o cabo à mostra. Da ponta da cartucheira, pendiam dois cordões de couro para ajustar o peso à coxa; preferia-os soltos, para acentuar a fama de soldado com dotes próprios; afora o talhe, a presunção de soldado com prerrogativas. Como na cidade fora imposta a rotina de defuntos vivos, não foi fácil para o cabo Garrafinha vê-se objeto de acenos ruidosos, inda que maljeitosos, à custa de ter mostrado apenas dois dentes num canto da boca. A convicção de que lhe deviam sujeição desobrigava-o de acenos corteses. A não ser…

A não ser quando Sinhazinha preparou um jantar para as novéis autoridades. Não que a velha o distinguisse como o traço de um brasão já perdido nos analetos dos plantadores de cana; mas como um suporte necessário na moldura ilustrando seus antepassados. Tinha, a velha, todos os nomes da estirpe que soubera tirar proveito do massapê pastoso; sobretudo do barão de Bujari, em cujas matas ela se embrenhara para tomar banhos no açude.

– O barão criou o engenho que deu origem à usina. Plantou cana para a rapadura, e depois para o açúcar. E conservou a mata em torno do açude, porque o brasão da família se inspirou nas matas, no açude cheio de curimãs.

Repetindo as palavras do analeto do barão de Bujari, como de sua autoria; valendo-se do desinteresse do juiz, do promotor público, do delegado e do comissário de polícia, em conhecer a história de antigos proprietários de terras; também do cabo recém-promovido, cujo bigode assentara bem no rosto moreno, inda que diferente da branquidão européia, lusa, dos antigos plantadores.

Na moldura do terraço de Sinhazinha, ao lado da copa nos fundos da casa, o cabo Garrafinha firmara-se como um prego na parede sustentando o quadro. Sentou-se de modo a reproduzir a hierarquia, sendo o terceiro do lado onde se sentaram o delegado e o comissário. Não levou a arma que lhe dava graça à cintura, mas vestiu-se a caráter para dar conta das duas fitas no ombro. O arremedo de sorriso que mostrava nas ruas, desabriu-se como um jorro na cabeceira do rio Goiana, mas um jorro fora da invernia, estropiando-lhe o riso; estropiou-o a não mais se conter, convencendo-se de que, também assim, legitimaria a ordem que ajudara a instalar com o uso do cepo de goiabeira nas costas do Cabeleira.

Da igreja da matriz, veio a sonoridade do sino maior; pancadas grossas, austeras, seguidas por outras finas, agudas. As últimas com o dom de desfazer a ordem de contrição das primeiras. Sinhazinha pungiu-se para uma oração aos primeiros toques, e desfez-se em leveza com os toques seguintes. Os convivas, sem rezas na memória, contraíram-se como na frente de uma medusa; em seguida, relaxaram. O cabo Garrafinha meteu-se em ares de compunção, fechou a boca sob os fios soltos do bigode; estropiou o rosto; o resto do corpo, submisso ao juízo confuso, estropiou-se também.

A negra Beata se ausentara para a igreja, logo que servira o jantar; fazia-o todas as noites por crer-se não totalmente purgada de pecados. Quando não ia, a patroa, estranhando:

– Não vai à igreja, Beata!?

Se houvesse algum tempo, a negra se trocaria para não frustrar a ideia que Sinhazinha tinha de si.

Comido o cabrito guisado preparado pela negra Beata, Sinhazinha lembrou-se da sobremesa. O manjar de maracujá não teria graça se não fosse servido aos convidados. Mas a negra Beata demorava-se nas orações. A velha, para desfazer a desconsagração que o cabo Garrafinha fizera do próprio corpo, ordenou-lhe:

– Cabo! Vá à cozinha e traga a terrina com o manjar para a sobremesa…

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