Vincent van Gogh: seus quadros resultam de muito estudo
Publicado 27/06/2012 16:33
Vincent van Gogh, um pintor holandês nascido em 30 de março de 1853, escreveu mais de 700 cartas a seu irmão mais novo, Theo, que era negociante de arte nos Países Baixos e foi um apoio fundamental para seu irmão artista. Theo van Gogh apoiou não só financeiramente a Vincent, mas era muito presente na vida do irmão mais velho, dando apoio emocional e incentivo em sua carreira de artista. Diz-se que os dois eram tão unidos que no ano seguinte à morte de Vincent, Theo também morreu.
Mas o tema que nos interessa no momento, dentro das cartas de Vincent a Theo, é apontar como Van Gogh era um estudioso de sua profissão de artista. Acho importante enfatizar isso, pois vivemos em um tempo em que o sistema artístico hegemônico atual considera que técnica não serve para nada e que o aluno não precisa mais se debruçar sobre o estudo da prática e da teoria. Prega-se a instantaneidade, a rapidez das coisas. E “gênios” são fabricados a partir daí, com todo o apoio da mídia. Hoje em dia, basta ter uma boa ideia, à moda da “Caninha 51”, como aponta Ferreira Gullar.
Mas os mestres, todos, estudaram muito para produzir arte, de Leonardo da Vinci a Portinari. Se olhamos para um quadro com as cores vivas de Van Gogh, que não nos iludamos: aquilo ali é fruto de aplicação ao estudo, ao desenho, às anotações, à observação das cores, de como elas se comportam em um quadro, umas em relação às outras. Ele respeitava aqueles que vieram antes dele, sabendo que só alcançaria algum status nas artes se soubesse em que terreno pisava, se conhecesse o que falaram e fizeram os que vieram antes dele. Mesmo que fosse para inovar sobre o passado. E Van Gogh o fez.
Extraio aqui alguns trechos de cartas escritas por Vincent a Theo entre 1883 e 1885, no que diz respeito às cores. Isso pode ser do interesse de artistas e estudiosos das artes. Há muito mais nesse livro, que recomendo a leitura aos interessados. Esses excertos abaixo foram retirados do livro da Editora L&PM Cartas a Theo, de 2010:
“Escrevo-lhe a respeito de uma passagem de Os artistas do meu tempo, de Charles Blanc: ‘Três meses aproximadamente antes da morte de Eugène Delacroix, nós o reencontramos, Paul Chenavard e eu, nas galerias do Palais-Royal, às dez horas da noite. Foi à saída de um grande jantar onde se havia discutido questões de arte, e a conversação sobre este mesmo assunto tinha se prolongado entre nós dois, com aquela vivacidade, aquele calor que dispensamos sobretudo às discussões inúteis. Falávamos sobre a cor, e eu dizia: – ‘Para mim os grandes coloristas são aqueles que não pintam a cor local’. E eu ia desenvolver meu tema quando percebemos Eugène Delacroix na galeria da Rotunda. Ele veio a nós exclamando: tenho certeza de que eles estão discutindo pintura! Com efeito, disse-lhe eu (…), eu dizia que os grandes coloristas não pintam a cor local, e convosco certamente não precisarei ir além.
‘Eugène Delacroix deu dois passos para trás piscando um olho segundo seu hábito: ‘Isto é perfeitamente verdadeiro, disse ele, veja um tom, por exemplo (e indicava com o dedo o tom cinza e sujo do chão): pois bem, se disséssemos a Paolo Veronese (pintor italiano do Renascimento): pinte-me uma bela mulher loira cuja pele tenha este tom, ele a pintaria, e a mulher seria uma loira em seu quadro’.
Van Gogh continua:
“A respeito de ‘cores pobres’, não se deve, no meu entender, considerar as cores de um quadro por si mesmas; uma ‘cor pobre’ pode muito bem exprimir o verde tênue e vigoroso de uma campina ou de um trigal quando, por exemplo, estiver sustentada por um castanho-vermelho, um azul-escuro ou um verde-oliva."
“(…) Uma cor escura pode parecer, ou melhor, produzir claridade; isto no fundo é mais uma questão de tom."
“Mas, então, no que diz respeito à cor propriamente dita, um vermelho-cinza, relativamente pouco vermelho, parecerá mais ou menos vermelho em função das cores que lhe dão vizinhança."
“Assim como o azul e o amarelo. Basta colocar um pouquinho de amarelo numa cor para fazê-la tornar-se muito amarela, quando colocamos esta cor num – ou ao lado de um – violeta ou lilás."
(…) “Li com muito prazer Os mestres de outrora, de Fromentin. Vi tratadas nesse livro , em diversas passagens, as mesmas questões que me preocupavam muito nestes últimos tempos e nos quais penso continuamente… (…)”
“Faz muito tempo, Theo, que estou desgostoso com certos pintores atuais, que nos privam do bistre e do betume*, com os quais se pintaram tantas coisas magníficas e que, bem utilizados, dão sabor, riqueza e generosidade ao colorido, sendo sempre tão distintos. E que possuem propriedades tão notáveis e específicas.”
“Aliás, também exigem esforço para que se aprenda a utilizá-los, pois deve-se usá-los de forma diferente que as cores ordinárias, e acho muito provável que mais de uma pessoa tenha ficado assustada com as tentativas que é preciso fazer no início e que, naturalmente, não dão certo logo ao primeiro dia em que se começa a utilizá-los.”
“(…) Quando encontrar boas obras como, por exemplo, o livro de Fromentin sobre os pintores holandeses, ou se você se lembrar de uma delas (obras), não se esqueça que eu desejo muito que você compre algumas, deduzindo do que você costuma me enviar,desde que tratem de técnica. Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria; não considero isso de forma alguma inútil, e acredito que frequentemente o que sentimos ou o que pressentimos instintivamente torna-se claro e certo quando somos guiados por alguns textos que tenham um real sentido prático."
“Quando ouço dizer que ‘na natureza não há preto’, penso que na realidade o preto também não existe na cor.”
“Sobretudo não se deve cair no erro de acreditar que os coloristas não empregam o preto, pois não é preciso dizer que desde que o preto entre em composição com elementos azuis, vermelhos ou amarelos, estes tornam-se cinzas, seja vermelho-escuro, amarelo ou azul-cinzento. Acho especialmente muito interessante o que Charles Blanc no Os Artistas de meu tempo diz sobre a técnica de Velázquez, cujas sombras e semitons consistem, na maioria das vezes, em cinzas frios e incolores, em que o preto e um pouco de branco são os elementos de base. Neste meio neutro e incolor, a menor nuvenzinha, por exemplo, já é muito expressiva.”
E mais à frente:
“(…) Sei entretanto e muito bem quem são os artistas verdadeiros e originais em torno dos quais girarão, como ao redor de um eixo, os paisagistas e os pintores de camponeses. Delacroix, Millet, Corot e o resto. Isto é o que eu sinto, embora mal expresso.”
“Quero dizer com isto que, mais que as pessoas, existem regras, princípios ou verdades fundamentais, tanto para o desenho quanto para a cor, aos quais é preciso recorrer quando se encontra algo de verdadeiro.”
“(…) Quero portanto assegurar a Portier nesta carta que minha crença em Eugène Delacroix e nestas pessoas antigas é muito exata e correta.”
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* Bistre – bistre é uma tonalidade marrom escuro acinzentado com tom amarelado, feito a partir de fuligem. Muitos mestres antigos usaram o bistre para seus desenhos. Betume – decomposição de origem animal ou vegetal, de cor escura como o petróleo, serve de base também para a pintura, usando-se por exemplo para dar impressão de envelhecimento a alguma base.